Senhora/Quitação/IV

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Seixas ouvira falar da menina de Santa Teresa, mas ocupado nesta ocasião com uns galanteios aristocráticos, não o moveu a curiosidade de conhecer desde logo a nova beldade fluminense.

Aconteceu porém jantar na vizinhança em casa de um amigo, e em companhia de camaradas. Veio a falar-se de Aurélia, que era ainda o tema das conversas; contaram-se anedotas, fizeram-se comentos de toda a sorte.

Depois do jantar, no fim da tarde, saíram os amigos a pé, com o pretexto de dar uma volta de passeio; mas efetivamente para mostrar a Seixas a falada menina, e convencê-lo de que era realmente um primor de formosura.

Seixas era uma natureza aristocrática, embora acerca da política tivesse a balda de alardear uns ouropéis de liberalismo. Admitia a beleza rústica e plebéia, como uma convenção artística; mas a verdadeira formosura, a suprema graça feminina, a humanação do amor, essa, ele só a compreendia na mulher a quem cingia a auréola da elegância.

Em frente da casa de D. Emília, pararam os amigos formando grupo, e Seixas pôde contemplar a gosto o busto da moça. A princípio examinou-a friamente como um artista que estuda o seu modelo. Viu-a através da expressão de altiva e triste indiferença de que ela vestia-se como de um véu para recatar sua beleza aos olhares insolentes.

Quando, porém, Aurélia enrubescendo volveu o rosto, e seus grandes olhos nublaram-se de uma névoa diáfana ao encontrar a vista escrutadora que lhe estava cinzelando o perfil; não se pôde conter Fernando que não exclamasse:

— Realmente...

Atalhando, porém, esse primeiro entusiasmo, corrigiu:

— Não nego; é bonita.

Nessa noite, Aurélia, quando trabalhava na tarefa da costura, quis lembrar-se da figura desse moço que a estivera olhando por algum tempo à tarde; não o conseguiu. Vira-o apenas um instante; não conservara o menor traço de sua fisionomia.

Mas cousa singular. Se recolhia-se no íntimo, aí o achava, e via-lhe a imagem, como a tivera diante dos olhos à tarde. Era um vulto, quase uma sombra; mas ela o conhecia; e não o confundiria com qualquer outro homem.

Dois dias depois Seixas tornou a passar pela Rua de Santa Teresa, mas só, desta vez. De longe seus olhos encontraram os de Aurélia, que fugiram para voltar tímidos e submissos. Ao passar, o moço cortejou-a; ela respondeu com uma leve inclinação da cabeça.

Decorreu uma semana. Seixas não passara à tarde como costumava; era noite, Aurélia ia recolher-se triste e desconsolada. Ao fechar a rótula distinguiu um vulto, e esperou. Era Fernando. O moço apertou-lhe a mão; declarou-lhe seu amor. Aurélia ouviu-o palpitante de comoção; e ficou absorta em sua felicidade.

— E a senhora, D. Aurélia? interrogou Seixas. Ama-me?

— Eu?

A moça pronunciou este monossílabo com expressão de profunda surpresa. Pensava ela que Fernando devia ter consciência da posse que tomara de sua alma, com o primeiro olhar.

— Não sei, respondeu sorrindo. O senhor é quem pode saber.

Não compreendeu Seixas o sublime destas palavras singelas e modestas da moça. O galanteio dos salões embotara-lhe o coração, cegando o tacto delicado que podia sentir as tímidas vibrações daquela alma virgem.

Fernando freqüentou assiduamente a modesta casa de Santa Teresa, onde passava as primeiras horas da noite, que de ordinário ia acabar no baile ou no espetáculo lírico. Quando saía da sala humilde, onde a paixão o retinha preso dos olhos de sua amada, sentia o elegante moço algum acanhamento. Parecia-lhe que derrogava de seus hábitos aristocráticos, e inquietava-o a idéia de macular o primor de sua fina distinção.

Um mês durante, Aurélia inebriou-se da suprema felicidade de viver amante e amada. As horas que Seixas passava junto de si eram de enlevo para ela que embebia-se d’alma do amigo. Esta provisão de afeto chegava-lhe para encher de sonhos e devaneios o tempo da ausência. Seria difícil conhecer a quem mais vivia, se do homem que a visitava todos os dias ao cair da tarde, se do ideal que sua imaginação copiara daquele modelo.

Como Pigmalião ela tinha cinzelado uma estátua, e talvez, como o artista mitológico, se apaixonasse por sua criatura, de que o homem não fora senão o grosseiro esboço. E não é esta a eterna legenda do amor, nas almas iluminadas pelo fogo sagrado?

Entre os apaixonados de Aurélia, contava-se Eduardo Abreu, rapaz de vinte e cinco anos, de excelente família, rico e nomeado entre os mais distintos da Corte.

Apesar de sisudo e não propenso a aventuras, Abreu foi tentado pela fascinação do amor fácil e efêmero. Alistou-se à já numerosa legião dos conquistadores de Aurélia, mas andara sempre na retaguarda, entre os mais tímidos.

Quando os namoradores de profissão debandaram, ele perseverou, sem apartar-se todavia de seu modo reservado e esquivo. Um velho sapateiro que tomara a si o registro dessa barreira, continuou a ver todas as tardes o rapaz que passava em seu cavalo do Cabo.

A impressão que Aurélia deixara no espírito do moço tornou-se mais profunda, à proporção que se foi manifestando a pureza da menina. Vendo afinal quebrar-se de encontro à sua virtude, a audácia dos mais perigosos sedutores do Rio de Janeiro, a afeição de Abreu repassou-se de admiração e respeito.

É natural que esse moço, em condições de aspirar às melhores alianças na sociedade fluminense, vacilasse muito, antes da resolução que tomou. Mas uma vez decidido, não hesitou em realizar seu intento. Dirigiu-se a D. Emília e pediu-lhe a mão da filha.

A viúva, ainda abalada do inesperado lance da fortuna, falou a Aurélia.

— Deus ouviu minha súplica. Agora posso morrer descansada.

A moça escutara, sem interrompê-la, a exposição que D. Emília lhe fez das vantagens de um casamento com Abreu. Nas palavras de sua boa mãe, não somente sentiu os extremos de uma ternura ardente; reconheceu também o conselho da prudência.

Não obstante, sua resposta foi uma recusa formal.

— Tinha resolvido aceitar o primeiro casamento que minha mãe julgasse conveniente, para sossegar seu espírito e desvanecer o susto que tanto a consome. Meus sonhos de moça, que bem mesquinhos eram, sacrificava-os de bom grado para vê-la contente. Agora tudo mudou. Não posso dar o que não me pertence. Amo outro.

— Sei, o Seixas. E tens certeza de que ele se case contigo?

— Nunca lhe perguntei, minha mãe.

— Pois é preciso saber.

— Eu não lhe falo nisso.

— Pois falarei eu.

Efetivamente, essa noite, quando Fernando chegou, D. Emília dirigiu a conversa para o ponto melindroso. No primeiro ensejo interrogou o moço acerca de suas intenções. Fez valer o argumento formidável da sombra que um galanteio ostensivo projeta sobre a reputação de uma menina, quando não o perfuma os botões de laranjeira a abrir em flor. Lembrou também que a preferência exclusiva afugentava os pretendentes, sem garantia do futuro.

Seixas perturbou-se. Por mais preparado que esteja um homem de sociedade para essa colisão deve comovê-lo a necessidade de escolher entre a afeição e as conveniências. Ainda mais, quando para furtar-se ao dilema, esse homem delineou uma vereda sinuosa, por onde se arraste como o réptil, serpeando entre o amor e o interesse.

— Assevero-lhe, D. Emília, que minhas intenções são as mais puras. Se ainda não as tinha manifestado, era por aguardar a ocasião em que possa realizá-las de pronto, como convém em semelhante assunto. Minha carreira depende de acontecimentos que devem efetuar-se neste ano próximo. Então poderei oferecer a Aurélia um futuro digno dela, e que lhe invejem as mais elegantes senhoras da Corte. Antes disso não me animarei a associá-la a uma sorte precária, que talvez se torne mesquinha. Amo sinceramente sua filha, minha senhora; e esse amor dá-me forças para resistir ao egoísmo da paixão. Prefiro perdê-la a sacrificá-la.

— Este procedimento de sua parte é muito nobre, Sr. Seixas. Não podia com efeito dar maior prova de estima a Aurélia, do que renunciar a ela para não servir de obstáculo a um enlace, que há de fazê-la feliz.

Ditas estas palavras, a valetudinária senhora a quem a conversa havia fatigado em extremo recolheu-se ao interior. Fernando ficou na sala aturdido com a conclusão que tivera a conversa, tão outra da que ele havia esperado.

De feito acreditara que D. Emília, embalada na esperança do futuro brilhante por ele dourado com palavras maviosas, e comovida pelos acentos de sua paixão, o deixaria cultivar docemente o amor-perfeito, aí, no canteiro dessa pobre salinha, mal alumiada por um lampião mortiço.

Erguendo-se afinal, o moço dirigiu-se ao canto da sala, onde Aurélia trabalhava inteiramente absorta em suas reflexões, e alheia à cena que se acabava de passar, da qual entretanto era ela o assunto, e quem sabe se a vítima.

Que motivo tinha a inexplicável indiferença da moça naquele momento? Talvez ela própria não o soubesse manifestar. É possível que as conseqüências da conversa preocupassem mais seu espírito, do que as palavras trocadas entre sua mãe e Seixas.

— Que significa isto, Aurélia? perguntou o moço.

— Ela é mãe, Fernando, e tem o direito de inquietar-se pelo futuro de sua filha. Quanto a mim, sabe que amo sem condições, e nunca lhe perguntei onde me leva esse amor. Sei que ele é minha felicidade, e isto me basta.

No dia seguinte D. Emília comunicou à filha o resultado da conversa que tivera com Seixas, e reiterou os seus conselhos com as razões do costume.

— Se eu tivesse a desgraça de perdê-la, minha mãe, sua filha já não ficaria só. Teria para ampará-la além de sua lembrança, um amor que não a abandonará nunca.

A viúva deixou escapar um gesto de dúvida.

— Creia, minha mãe; o desejo de conservar-me digna do homem a quem amo, me protegeria melhor do que um marido do acaso.

D. Emília não insistiu mais. Lembrou-se que ela também sacrificara-se por um amor igual, e não podia exigir da filha mais coragem do que ela tivera para resistir ao impulso do coração.

Seixas que a noite anterior deixara Aurélia, comovido pela cândida abnegação da menina, quando soube que ela havia rejeitado sem ostentação um partido por que suspiravam muitas das mais fidalgas moças da Corte, não pôde conter os impulsos da alma generosa.

Apresentou-se em casa de D. Emília e pediu a mão de Aurélia, que lhe foi concedida.