Sonhos D'ouro/VI
Do lado que olha para o mar, a serra da Tijuca apresenta um aspecto muito diferente. As encostas que descem para o Andaraí, como os vales e eminências que se encontram pelo dorso da montanha, têm a fisionomia risonha e pitoresca: são ondulações amenas ou recortes caprichosos, que deleitam a vista.
Na outra face, a natureza é agreste; dir-se-ia uma terra convulsa. O fogo subterrâneo ferveu nas entranhas da terra, e rasgando-lhe os flancos, arremessou aqui e ali pelas encostas aqueles enormes calhaus ou maciços de rocha, fragmentos da primeira carcaça do globo.
A superfície da terra conserva ainda um aspecto combusto e árido; vê-se que por aí passou a lava em tempos remotos. De espaço a espaço o trabalho do homem cobriu a encosta da montanha de plantações; mas entre esses pontos cultivados destaca-se ainda mais a bronca aspereza dos sítios agrestes.
No domingo em que estamos, Ricardo dirigiu o seu passeio a pé para aquelas bandas. Já tinha algumas vezes feito essa excursão até a Cascata Grande, um dos pontos mais frequentados pelas pessoas que passam o verão na Tijuca; naquele dia porém tencionava ir mais longe, até à habitação de uma pobre gente, conhecida de D. Joaquina, e às vezes por ela socorrida em suas misérias. O saquinho da boa velha, apesar de escasso, tinha sempre uns vinténs para as esmolas do sábado.
Justamente na véspera, D. Joaquina recebera por intermédio de algum quitandeiro um recado da pobre gente e exprimira a intenção de mandar-lhe qualquer pequeno socorro, como costumava. O advogado lembrou-se disso, quis dar a seu passeio um fim caritativo; tinha na véspera recebido dez mil-réis, como honorário por um requerimento. Estava rico; podia pois aliviar dessa vez o saquinho de D. Joaquina daquela despesa.
Com este pensamento tomou às seis horas da manhã o caminho da Barra.
Aí, próximo à Restinga, havia então, e talvez ainda exista, uma cabana coberta de palha de sapé, com paredes de emboço. Em muitos lugares porém tinha caído o barro, deixando entre as varas grandes buracos, tapados com ramas secas.
Esta choça miserável ficava a algumas braças do caminho. Para chegar à porta, Ricardo tomou uma vereda que rodeava uma quebrada de terreno. Estendida em varas via-se a enxugar alguma roupa de chita e algodão, muito bem lavada, mas aberta em crivo de tão gasta e rasgada que já estava. Sobre o capim do terreiro estava emborcada alguma pouca louça branca de beira azul, uma panela, uma frigideira e uma colher de pau.
Esse terreiro era, não chovendo, a lavanderia, a copa, a cozinha e a sala da pobre gente. A choça tinha apenas um compartimento, onde se acomodavam Simão, a mulher, e três crianças.
Esse homem sustentava sua família com o produto da pescaria e de uma pequena plantação de bananas; assim iam vivendo pobremente, mas sem grandes privações, quando de repente tudo começou a desandar. O peixe fugia da tarrafa do pobre Simão; as bananeiras começaram a mirrar; e até os ovos da galinha goravam ao menor ronco da trovoada.
O pescador era homem ativo, incansável no trabalho, porém caráter débil, que desanimava com os reveses. As contínuas decepções o acabrunharam; caiu em uma prostração moral, muito mais perigosa do que a enfermidade do corpo. Convenceu-se de que o seu infortúnio era um castigo do céu por algum pecado que cometera; e resignou-se a sofrer sem lutar.
— Não se resiste a Deus, mulher! dissera ele.
A Gertrudes porém atribuía a desgraça ao quebranto que algum invejoso deitara à sua casa. Ela se lembrava que um dia passara por ali e pedira água um inglês muito magro, sem dúvida chupado pelas almas do outro mundo. Desde esse dia tudo andava às avessas, dizia a mulher; porque o sujeito saindo zangado com o pequeno que o chamara de goddem, deitara à casa uma figa.
Entrando na choupana, viu Ricardo o Simão deitado em uma esteira sobre a cama de varas da altura de um palmo apenas. A magreza extrema, a atonia e lividez do semblante, estavam indicando uma moléstia grave. A mulher, sentada defronte em um toco de pau, cismava na sua vida, enquanto descansava um momento da lida de cada dia. Era ela quem valia agora à desgraçada família, com seu trabalho e sua diligência.
— Então que é isto? disse o moço correndo os olhos do marido à mulher.
— O Simão anda bem doente!
— Que tem?
— Nada, nada, meu senhor. Isto vai assim mesmo até acabar de uma vez.
A mulher levantou os ombros:
— Ninguém lhe tira aquilo da cabeça.
— Mas o que sente? perguntou Ricardo ao doente.
— Eu sei!
— É assim uma fraqueza, que já nem se pode levantar, respondeu a mulher. Há uma semana que está aí, nessa cama, que nem ata, nem desata.
— Não tem tomado remédio?
— Que há de tomar, meu senhor?
Ricardo achou-se embaraçado na resposta; nada absolutamente entendia de medicina, ciência aliás em que todos arranham seu tanto. Tirando da carteira uma nota de dois mil-réis, pô-la na mão da mulher do pescador.
— É D. Joaquina que lhe manda!
— Deus lhe há de pagar a ela as esmolas que nos tem feito, disse a Gertrudes.
— E como vão agora? Têm sido mais felizes?
— Qual, meu senhor! O quebranto não nos deixa. A pescaria... não se fala; depois que Simão caiu de cama, ainda eu fui deitar a rede com o pequeno; mas é à toa! As bananeiras enfezaram de uma vez. Se não fossem uns pintos... Que para bem dizer não foram os pintos, mas a cachorrinha. Se não fosse isso, a gente já estava morta de fome.
— Então sucedeu-lhe alguma cousa boa? Sinal de que a fortuna está voltando.
— Foi boa e foi má; porém no fim de contas saiu pelo melhor. Imagine o senhor que a muito custo eu tirei uma ninhada de pintos, que estavam-se criando muito espertinhos. Sempre eram uns cobrinhos... Mas um dia apareceu aqui uma moça a cavalo, bem vestida, com uma velha gorda e mais um português que é um espirro de gato. Eles já tinham passado na véspera e estiveram falando com o pequeno. Então salta do colo da moça uma cachorrinha, e vai-se aos pintos e mata a todos, um por um.
— Uma cachorrinha branca felpuda, que tem brincos de ouro?
— Isso mesmo. O senhor conhece? É muito bonitinha; mas também nunca vi uma demoninha assim.
— Então matou-lhe os pintos?
— Um por um. E a moça ria que era um gosto, dando estalinhos nos dedos; mas depois que a cachorrinha acabou de matar os pintos, então a senhora ficou muito zangada e ralhou bastante com ela. Disse que tinha pena do que sucedera, e mandou entregar a Simão um dinheiro para pagar os pintos. Foi dinheiro que chegou para a gente viver até agora.
— E depois? A moça?
— Esteve atirando no capim umas moedinhas de prata; a cachorrinha de aposta com os pequenos corria para apanhar: aquele que achasse ganhava. Uma vez o Pedrinho quis tomar da cachorrinha; mas ela ia mordendo-o na mão. Se não fosse a moça que acudiu tão depressa com o chicotinho!
Enquanto Ricardo conversava com a Gertrudes, e o Simão ouvia mergulhado no mesmo torpor, dois meninos e uma menina, acocorados a um canto, cochichavam entre si. A penúria tinha apagado naquelas crianças a vivacidade natural da infância. Havia no seu gesto e semblante um espasmo de tristeza, que afligia.
Enfiando a vista pelo buraco da parede, as crianças se agitaram com certa curiosidade tímida, despertada por alguma cousa que tinham visto. O rumor de passos de animais indicava a chegada ou passagem de pessoas a cavalo.
— Mamãe! disse uma das crianças.
— A moça!... acrescentou a outra.
Gertrudes reclinou-se, para estender a vista pela abertura da porta. Ricardo imitando seu movimento reconheceu Guida, acompanhada pela habitual comitiva.
O moço ergueu-se contrariado.
— Adeus. Voltarei depois.
— Não quer ver a moça? Ela é bem bonita.
— Já a conheço; e por isso não quero que me encontre aqui. Sairei pelo fundo.
— Mas então o melhor é ficar aqui dentro porque ela não se apeia.
Nisto a Gertrudes que se chegara à porta voltou ao moço:
— Ora, está vendo! Que artes desta moça!
A Guida tinha dirigido Edgard para o lugar onde estava a secar a mesquinha louça da pobre gente, e o elegante cavalo divertia-se em espedaçar desdenhosamente com a pata cada um dos pratos.
Os meninos assistiam à cena admirados; Guida ria-se como uma criança; a inglesa despedia da garganta uma cascata de ohs! e o Sr. Daniel impassível estava mentalmente calculando o custo da louça quebrada.
Ricardo viu esta cena pelas fendas da choupana. Quando não houve mais nada a quebrar, Guida, sofreando com força o cavalo, exclamou com um fingido assomo de mau humor:
— Este cavalo é insuportável! Está sempre fazendo destas! Não posso mais aturá-lo!
A mãozinha afilada vibrou o chicote com força. Edgard, saindo de sua habitual impassibilidade, começou a pinotear, o que espalhou a mestra, o português e as crianças cada um para seu lado. O resultado dessa escaramuça foi atirar ao chão a vara da roupa, que o lindo isabel despeitado pisou acabando de esgarçar com os cascos aqueles andrajos.
— Tome, Daniel, dê a esta gente: é para pagar o estrago que fez o cavalo.
A Guida tirara de uma carteirinha de tartaruga uma nota de cinquenta mil-réis.
— Mas agora me lembro: talvez eles não tenham louça para comer hoje. Mande o moleque comprar!...
— Não é muito, senhora?
— Sr. Daniel, eu não pedi a sua opinião.
O Daniel abaixou a cabeça.
— Onde está sua mãe? perguntou a moça a uma das crianças.
— Estou aqui, senhora dona.
— Já sabe o que fez este cavalo mal-educado?
— Vi, sim senhora. Foi como da outra vez a cachorrinha com os pintos!
— É verdade! Fiquei depois tão arrependida de a ter trazido!
Mrs. Trowshy atalhou em francês, com um olhar de exprobração:
— Allez! Vous l’avez fait exprès, par méchanceté!
— Mais non! disse a Guida sorrindo; e voltou-se para continuar a conversa com a mulher.
— Sabe? A Sofia depois daquela travessura quase morreu!
— De que, gentes!
— Quis morder o cavalo de um moço que passava, e levou um couce que a atirou da montanha abaixo.
— Jesus!
— Foi bem feito para não ser tão travessa. Ainda está de cama.
— É como o meu companheiro. Vive ali espichado, que não se levanta mais.
— Ah! Seu marido está doente? De quê?
— Ninguém sabe; depois que o peixe lhe fugiu da rede, começou assim a desandar.
— Onde está ele? Chame-o.
— Qual! Não pode consigo.
— Chame sempre.
O Simão a custo arrastou-se até à porta da choupana.
— O senhor amanhã há de levar peixe em nossa casa. Olhe lá.
— O peixe conhece as minhas tarrafas! É à toa.
— Verá. Eu sou muito feliz; obtenho tudo que desejo. Basta que eu lhe encomende o peixe, para o senhor tirar a rede cheia.
— Mas é castigo, senhora.
— Castigo de estar aí deitado, sem fazer nada, enquanto a pobre da mulher se amofina de trabalhar.
— Mas ele está doente! acudiu Gertrudes.
— Doente de manha!
Guida lançou o cavalo contra o pescador, que, vendo-se ameaçado pelas ferraduras de Edgard, arrancou-se à prostração para recuar de um salto, com uma rapidez aliás desnecessária, porque a mão firme da moça obrigara o cavalo a girar sobre os pés.
— Não vê como ele salta? disse Guida soltando uma risada. Que vergonha! Curtindo a preguiça enquanto os filhos e a mulher não têm que comer!
A moça chamou o menino mais velho:
— Venha cá, menino. Amanhã tome a rede e vá pescar, já que seu pai de nada serve.
O pescador deu no ar um safanão; apanhou a tarrafa ao canto e foi resmungando estendê-la na cerca ao lado da choupana; Daniel chegou-se a ele para tratar a respeito da louça quebrada; e a Guida despedindo-se partiu com a mestra.
Ricardo do interior da choupana ouvira todas as palavras da moça, e por várias vezes enfiando os olhos entre as fendas da taipa, estudara a expressão daquela fisionomia encantadora, que lhe aparecia então como uma espécie de mito.
Havia com efeito nas ações e nas palavras da moça alguma cousa de estranho e confuso, que escapava à compreensão do jovem advogado, aliás espírito profundo e observador. A volubilidade do pensamento, saltando dos gracejos infantis às cousas mais sérias; o estouvamento que se notava em certas ocasiões, para logo ceder à reflexão; e finalmente as liberalidades com que ela desculpava suas travessuras, davam a essa fisionomia moral um caráter vago e indeciso.
Era um espírito leviano ou sensato? Era um bom ou mau coração? Ou seria acaso uma e outra cousa: a luta perigosa da alma na transição da infância à juventude? Nessa crise surgem as paixões, que sopitam as puras crenças e as ilusões da inocência. Se a alma tem para ampará-la a educação e os germes da sã moral, sai triunfante da luta: a virtude coroa a inocência. Se porém o coração não é defendido nem pelo princípio, nem pelo exemplo, sucumbe; e a flor da mocidade quando brota da infância, vem já eivada.
À noite, quando conversavam esperando o sono, Ricardo disse a seu amigo:
— Sabes, Fábio! Aquela Guida assim mesmo não é tão má, como nós pensávamos.
— Por quê?!
O advogado referiu a cena a que assistira pela manhã, e o que anteriormente lhe contara a Gertrudes.
— O que pensas disso então?
— Penso que no meio das travessuras desta moça há um escrúpulo de consciência, direi mesmo, um fundo de bondade. Estouvada, como é, não pode resistir à vontade de brincar, e faz cousas de que logo se arrepende; mas esse arrependimento pelo menos é generoso. Assim as faltas que ela comete são ocasiões para uma liberalidade, que talvez nunca lhe inspirasse espontaneamente o sentimento da caridade.
Fábio, que não apreciava as demonstrações fisiológicas, tinha adormecido.