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Sonhos D'ouro/XII

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O Comendador Soares jogava a manilha com seus parceiros habituais, três velhos amigos e camaradas.

O primeiro, à direita, era o Barão do Saí. Natural de Minas, onde começara a vida como tocador de tropa, em uma de suas viagens à corte arrumou-se de caixeiro no armazém de mantimentos do consignatário.

Aos cinquenta anos achou-se o João Barbalho possuidor de algumas centenas de contos; e convencido que não era próprio de um grande capitalista chamar-se pela mesma forma que um moço tropeiro, trocou por um título à toa aquele nome que valia um brasão; fidalgo brasão, se já o houve, pois era o do trabalho e perseverança, e tinha por timbre e divisa a probidade.

O parceiro da esquerda fazia com o precedente o maior contraste. Curto, esguio e encarquilhado, quanto o outro espaçoso e amplo, as mínguas do corpo sobravam-lhe nas mãos e nariz, ou como diziam os malignos, nas garras e no bico. Tudo o mais era miniatura.

O Visconde da Aljuba começara a sua vida mercantil na escola, onde exercia o mister de belchior. Livros, lápis, roupa, tudo ele comprava por bagatela aos meninos, em princípio como agente de um negociante de cacaréus da esquina, e depois por conta própria.

Quando o deram por pronto na escrita e tabuada, arranjou ele uma espelunca, chamada casa de penhor, onde emprestava dinheiro, especialmente aos pretos quitandeiros. A pouco e pouco elevou-se a clientela, até que pôde fechar em sua carteira as primeiras firmas da praça do Rio de Janeiro.

Foi então que, de repente, apareceu o Camacho transformado em visconde, sem que ninguém pudesse atinar com o meio por que obtivera, logo de supetão, aquele título, quando o costume era começar por barão. Diziam uns que fora comprado, outros que lho tinham dado.

— Nem dado, nem comprado! acudia o Soares em tom de pilhéria. O velhaco do Camacho empalmou o aljube, que lhe tinham dado de penhor, e fez-se visconde. Com todo o direito! Não resta dúvida.

Os ouvintes riam; e o visconde, imperturbável, metia as mãos nos bolsos e repetia com certo sonsonete que lhe era próprio, um dito muito conhecido:

— A alma do negócio é o segredo.

Os amigos mais íntimos do Soares, sobretudo o Barão do Saí, por vezes lhe tinham feito observações a respeito da privança a que ele admitia o visconde, cuja reputação dava para um excelente herói do romance galeote, atualmente na moda.

Mas o Soares, que lhe sabia as anedotas, galhofava.

— É preciso lidar com essa gente, para aprender-lhe as manhas, senão corre-se o risco de ser-se enganado a cada instante. E quem as conhece melhor do que o bicho?

Por isso o Soares, que era um gaiato de conta, a toda a hora, no jogo ou em negócio, chamava o visconde de – “meu mestre”; com o que este se lisonjeava, pois tinha para si que não era pequena glória dar lições de velhacaria a um espertalhão daquele tope.

O último dos parceiros, que ficava fronteiro ao comendador, mostrava uma figura respeitável. Poucas fisionomias possuem aquela sisudez, tocada por uma expressão de mansuetude, exalação, ou eflúvio d'alma, a ameigar as asperezas de uma consciência rígida e austera.

Nada mais enganador porém do que esse prospeto de homem importante, conhecido por Conselheiro Barros. Dentro, o que havia, era um desses entes ambíguos, destinados a viver em perpétua irresolução, almas bonachas e inertes, a quem a natureza deu em vez de cabeça um cabo, em lugar de coração uma azelha, para serem empunhados por outrem, sem o que não se movem, nem se abalam.

Em casa, o Barros era manejado pela mulher; se ela não tinha de véspera à noite apartado sobre um cabide a roupa necessária para o dia seguinte, ele não se vestia, e era capaz de ficar até meio-dia de chambre e chinelas, como já lhe acontecera. Nunca sabia quando tinha fome, e seria escusado perguntarem-lhe; era D. Guilhermina quem lhe regulava o apetite, o sono, e até a moléstia. Uma ocasião, ardendo ele em febre, a mulher o persuadiu de que estava perfeitamente bom; levou-o a um passeio em que apanharam sol e chuva. À noite, quando se recolheram, o homem nada sentia.

Fora de casa, não saindo com ele, entregava-o a mulher a um lacaio de confiança, que o levava a visitas e negócios indicados no rol; ou o conduzia direito ao escritório, onde tomava conta dele o seu jovem sócio e “suplente no mercantil e doméstico”, segundo o maligno Visconde da Aljuba.

Filho do consignatário, onde se arrumara em rapaz João Barbalho, quando deu demão ao ofício de tocador de tropas, herdara o Barros bom patrimônio, o qual se lhe multiplicava na burra, sem que ele se apercebesse do como isso se fazia. Quando o sócio no fim do ano lhe atestava com o balanço os grandes lucros da casa, não se imagina o pasmo em que ficava por muitos dias.

Chegado o tempo de entrar para a roda dos figurões, lembrança que bem se vê não partiu dele, mas da mulher, e entabulada a negociação, tratou-se da escolha do título. D. Guilhermina tinha paixão pelo de condessa, e achava que uma coroa de três castelos ia às maravilhas com as tranças opulentas de seus cabelos negros.

Desta vez, porém, o marido quis ter voto e ser homem. Preferiu o título de conselheiro; e turrou de modo que não houve meios de arrancá-lo daí. Nem a mulher, nem o sócio, nem mesmo o Soares, que era um oráculo para ele, o demoveram do seu propósito. Essas almas de gelatina têm isso de particular, que em se inteiriçando, tornam-se guascas; não dobram mais.

Foi o único momento, em que esse homem, habituado desde a sua vinda ao mundo a ser qualquer, foi eu. Toda a energia que devia ter despendido a pequenas doses durante quarenta anos, acumulou-a para empregá-la de um só jacto. Debalde tentaram persuadi-lo que podia ser conselheiro e conde ao mesmo tempo, contanto que pagasse em proporção. Na paga, não havia dúvida de sua parte; mas a prática do mundo lhe ensinara que o conde mata o conselheiro; e se ele caísse em afidalgar-se, ninguém o trataria jamais por “Conselheiro Barros”, que era a sua grande ambição.

A maior concessão, a que chegou, foi consentir que a mulher se fizesse condessa, ela só, ficando ele conselheiro. Neste sentido, a instâncias de D. Guilhermina, deram-se os passos necessários; mas o governo, depois de ouvir os mestres da lei, decidiu que uma condessa só pode ser mulher de um conde.

Resignou-se pois D. Guilhermina, com o maior pesar, ao seu nome de batismo; mas não perdeu de todo a esperança. Consta que apelou para a emancipação das mulheres, ideia de que era ardente sectária, e com razão, porque de seu casal foi ela sempre sem contestação o cabeça.

Já agora aproveitemos a ocasião para completar o quadro, com alguns traços biográficos do Soares.

Era ele paulista; e dos quatro o mais moço, e mais rico ele só do que todos os outros juntos. Viera ao Rio de Janeiro pela primeira vez aos onze anos de idade, tocando uma porcada, que trazia ao mercado seu tio, velho roceiro de Lorena.

Naquele tempo as porcadas percorriam as ruas, como ainda hoje os bandos de perus. Estando parados em uma rua, enquanto o velho comprava chita, um moleque à sorrelfa introduziu no ouvido de um leitão uma bicha. Ao estalo do foguete, espirrou o bacorinho, e ei-lo a correr espavorido. O rapazinho barafustou atrás, para atalhar-lhe a corrida.

Mas corrida foi aquela que o meteu por um labirinto de ruas, onde a cabo de uma hora achou-se às tontas, sem novas do bacorinho nem do tio. Quanto mais procurava orientar-se, mais se atrapalhava; e todo o resto do dia levou a quebrar esquinas, até que exausto de fome e de cansaço, acocorou-se no vão de uma porta, a engolir as lágrimas que lhe queriam saltar aos bugalhos.

Passava um menino de volta do colégio, acompanhado de seu pajem, que sentindo lhe puxarem pelo jaquéu, voltou-se e viu o lapuzinho, de mãos postas a implorá-lo.

— Que tem você? perguntou-lhe com pena.

— Me perdi!

O menino era o Barros, filho do consignatário, onde já estava de caixeiro João Barbalho. Levou o caipirinha para a casa; e a família compadecida o agasalhou, mandando em busca do velho roceiro, que não foi possível encontrar apesar de todas as pesquisas. Resolvido a encarreirar o rapazito, o consignatário o arranjou de caixeiro em casa de um cambista; e aí começou ele a carreira que devia levá-lo ao apogeu da riqueza.

De gênio franco e jovial, tinha Soares uma fonte perene de alegria, com que orvalhava as agruras da vida; mas através dos risos e pilhérias, seu espírito pronto e seguro trabalhava com a inflexibilidade da mola de aço que move as figuras de um realejo.

Suas melhores operações, combinava-as no meio de um jantar ou de uma partida de jogo, e executava-as a galhofar. Brincava com seus milhões, como um menino com seus trebelhos.

Sendo de todos o mais rico, era para notar-se que fosse o menos graduado. A comenda era uma história, e vale a pena de saber-se.

Quando a riqueza de Soares tornou-se sólida e incontestável, até para os invejosos, começaram a chamá-lo de comendador, e por mais que o milionário metesse a cousa a ridículo, defendendo-se contra a honraria, por tal modo vulgarizou-se o tratamento, que não houve meio de resistir-lhe. O público soberano entendeu que um homem tão recheado de ouro não podia existir sem que fosse ao menos comendador, como qualquer troca-tintas.

— Ora pois! dizia o Soares, eis-me comendador por unânime aclamação dos povos. Mas há de ser da ordem do bacorinho!

Essa referência à humildade de sua origem, ele a fazia frequentemente; e percebia-se que tinha sua vaidade em ter subido de tão baixo àquela sumidade financeira. Custava-lhe a compreender o vexame do Barão do Saí, quando aludiam ao começo de sua carreira, e por isso estava sempre a apoquentar o amigo chamando-o de Barão do Lote, com o que este se resmoía.

Ficou pois o Soares comendador, por uso e cortesia, como tanta gente boa; e ninguém havia nesta corte imperial que não o acreditasse inscrito no grande livro das ordens; no que de todo não erravam, pois era ele terceiro de São Francisco de Paula. Mas este Santo não consta que fosse cavaleiro, e palmilhava como qualquer plebeu sem esporas, nem prosápias.

Em cartas, sobretudo nas de empenho, em listas de acionistas de banco, chapas de diretores, e gazetilhas, lá vinha estampado o infalível “comendador”; que aderira ao nome do Soares, como uma dessas alcunhas implacáveis que perseguem certos indivíduos toda a vida, e afinal colam-se à geração, criam raízes e transmitem-se a toda a descendência. O público é um tirano, e bem gaiato às vezes.

É bem possível, pois, que à imitação dos mais, já o tratasse eu de comendador e continue a fazê-lo.