Sonhos D'ouro/XIII

Wikisource, a biblioteca livre

A partida estava empenhada. O Barros fizera a vaza; cabia-lhe a mão.

— Quem joga? perguntou Soares.

— É o conselheiro! respondeu o barão.

— Então podemos ir jantar. Temos tempo, e ainda chegaremos cedo.

De feito o Barros, na forma do costume, esperava que o concílio dos sujeitos que o estavam aperuando, decidisse a grande questão da melhor carta a jogar.

— O homem quer abarrotar-nos? observou o visconde. Está pensando.

— Anda, conselheireiro, instou o Soares; se pensas tanto, ficas em branco para outra vez.

O banqueiro queria bem, do fundo d'alma, ao filho de seu falecido benfeitor, e por ele faria todos os sacrifícios. Mas a veia sarcástica, que ao próprio dono não poupava, às vezes sem ele o querer, beliscava o inofensivo e pachorrento amigo. Nunca o Soares pudera tomar ao sério o título de conselheiro do Barros; e por isso inventara aquele termo mais apropriado, pela etimologia idêntica à de cabeleireiro.

Impassível como sempre, o Barros nem se ressentiu, nem se apressou.

Foi nessa ocasião que aproximou-se o Guimarães, acompanhado de Ricardo e Fábio, a quem fora receber na entrada:

— Sr. comendador, tenho o prazer de apresentar-lhe os meus amigos, os Srs. Dr. Nunes e Dr. Araújo!

— Tenho muito prazer em conhecê-los! Esta casa está sempre ao seu dispor, quando queiram. Nada de cerimônias. Estamos em família!

Estas palavras, Soares as proferiu soerguendose da cadeira, no tom de cortesia e amabilidade corriqueira, de que na sua qualidade de milionário era obrigado a fazer gasto frequente com a turba de parasitas e gaudérios, que assaltam as casas ricas.

Depois do usual aperto de mão, voltava à partida de que fora um instante distraído, e já esquecera os novos hóspedes, em cujas feições nem reparara, quando sentiu no ombro o doce toque da mão de Guida:

— Papai, é o Dr. Nunes que esta manhã encontramos no passeio.

— Ah! exclamou o milionário erguendo-se e abandonando a mesa de jogo.

Notara Guida de parte a desagradável impressão que deixara na fisionomia de Ricardo aquele acolhimento de carregação que lhe fizera o banqueiro; e por isso indiretamente advertira o pai de que tratava-se de um hóspede especial, e não de um intrometido.

— Eu é que devia primeiro visitá-lo, doutor, para agradecer-lhe seus obséquios; mas os velhos merecem desculpa dessas faltas, não é assim?

— Quando as há; mas neste caso, só vejo uma extrema fineza da sua parte, sr. comendador.

— Perdão! Não tenho comenda de qualidade alguma; é uma intriga de certa gente. Não faça caso. Chame-me Soares, sem mais.

— Queira desculpar, acudiu Ricardo. Eu não sabia, Sr. Soares.

— Sem dúvida, nem vale a pena falar mais nisso. Quero apresentá-lo à minha mulher. Onde está tua mãe, Guida?

— Na sala.

Apresentando Ricardo a D. Paulina, o Soares deixou-o em companhia das senhoras.

— Desceu muito depressa a Pedra Bonita? disse Guida ao advogado. Nós voltamos logo depois e já não o avistamos.

— Estavam à minha espera.

— E o seu cavalo é muito bom!

— Está acostumado aos morros. É um bonito passeio o da Pedra Bonita; não o tinha feito ainda.

— Que pena! Não chegarmos até acima! disse D. Clarinha.

— Iremos outra vez! acudiu Guida.

— Depois que o encontramos, o senhor não faz ideia, Guida ficou impaciente por voltar! disse a sonsa da Clarinha.

— O sol estava muito quente! observou Ricardo.

— Não foi por isso; o passeio tinha perdido a graça para mim, respondeu a altiva menina com serena candidez.

Fábio conversava com D. Paulina, que ria-se dos seus gracejos. Guida, que se afastara do grupo das senhoras para sentar-se perto da mãe, tomou parte na conversa; e à hora do jantar estavam, ela e Fábio, muito camaradas um do outro.

Na ocasião de passarem à sala da comida, Fábio aproximando-se de Ricardo, disse-lhe rapidamente ao ouvido:

— Então ainda achas que fiz mal?

Ricardo encolheu os ombros. Fábio o tinha resolvido contra vontade a aceitar o convite do Soares. Para isso foi necessário afiançar-lhe que dera sua palavra de honra a Guimarães, e o fizera para esmagar a calúnia de que ele se tornara eco.

Era Ricardo dos homens para quem não há bagatelas em matéria de probidade. Desde que exigiam dele um sacrifício em nome dos escrúpulos de consciência e do respeito à palavra de honra, era certo obtê-lo ainda que se tratasse de uma ninharia. Assim exprobrando a Fábio de se haver comprometido sem o consultar, e quando já conhecia sua repugnância, se resignou à humilhação de que bem desejava poupar-se.

O primeiro acolhimento de Soares foi como uma nomeação que ele recebesse, ali ante toda gente, de parasita da casa. O sentido daquelas palavras confeitas em amabilidade, à guisa de filhoses de algodão, ele bem o compreendeu. “Entra; eu te admito no rol dos gaudérios desta casa; come, diverte-te, intriga; arranja teus negócios; caloteia os meus amigos; namora nossas filhas; desfruta-me por todos modos. Dou-te licença para tudo, até para falares mal de mim; contanto que mobilies minha casa com decência. Tenho grandes salas, ricos tapetes, cadeiras de estofo, soberbos jantares; mas preciso de gente de casaca, para encher estas salas, pisar esses tapetes, sentar-se nessas cadeiras, e comer estes jantares.”

A Ricardo não surpreendeu a recepção: ele a esperava. Todavia incomodou-o tanto a realidade que decidiu eclipsar-se no meio da confusão, e retirar-se antes do jantar, sem prevenir Fábio.

Demoveu-o desse intento a distinção com que logo depois o tratou Soares e a família. As prevenções que trazia, se de todo não se dissiparam, ao menos emudeceram, diante do caráter franco do banqueiro, da singeleza ingênua de D. Paulina, e da natural e graciosa isenção de Guida, que parecia flor exótica naquele áureo clima do milhão.

Sentiu que deixara de ser um número de rol, um anônimo perdido na turba; e por conseguinte não tinha já o direito de se escapar, sem dar satisfação. A delicadeza, e também o assomo ainda vago dum desejo a espontar, exigiam que assistisse ao banquete do Soares.

— Chamam-nos para jantar! disse o dono da casa convidando com um gesto seus hóspedes a passarem ao salão.

A Ricardo estava destinado um lugar à direita de D. Paulina; quanto a Fábio, como não se lembravam dele, e pela simples razão de já haver tomado conta da casa, a igual de conhecido velho, foi colocando-se ao lado de D. Guilhermina, que mostrava-se encantada com a lábia cintilante e espirituosa do bacharel.

— Doutor Nunes, cuide de si! disse o Soares logo depois de tomada a sopa, senão minha mulher deixa-o com fome.

— Fico prevenido! respondeu Ricardo sorrindo.

— Está sempre a brincar! observou D. Paulina, respondendo ao sorriso do moço.

— Como quer começar? À francesa pelo peixe, ou cá à nossa moda brasileira pelo cozido? tornou o dono da casa.

— Já estou servido.

Um criado acabava de trazer o prato de peixe, que lhe servira a Guida fazendo como de costume as honras da casa.

No correr do jantar conversando com D. Paulina, Ricardo sentia um prazer íntimo, como que um aroma das rosas guardadas no seio d'alma. Era que o aspecto sereno da senhora, a efusão de bondade que ressumbrava de toda a sua pessoa, e especialmente as maneiras tão lhanas, lhe estavam retratando na imaginação o aspecto venerável de sua mãe, e mostrando-a tal como havia de ser, se a fortuna a colocasse no pináculo da riqueza.

Às vezes, Guida sentada à cabeceira e atenta a seus deveres de dona de casa, que ela exercia com exímio tato, intervinha com alguma observação na conversa de D. Paulina; e Ricardo recordava-se de Bela, tão linda como a filha do banqueiro, embora lhe faltasse o garbo que dava ao talhe da última supremo realce.

Falando a mãe dos vários sítios da Tijuca, a moça disse para Ricardo:

— Domingo, havemos de ir à Vista Chinesa!

— Com muito prazer.

— É um passeio agradável! observou D. Paulina.

— A vista é soberba; mas como passeio, a Barra.

— E tem razão; é mais pitoresco! replicou Ricardo.

— Por que então não convidaste antes o Sr. Dr. Nunes para ir à Barra?

— Por quê?... repetiu Guida a sorrir. O caminho do Jardim é melhor para galopar.

— Travessa! disse D. Paulina com bondade.

— Gosta muito de andar a cavalo? perguntou o advogado.

— Muito! É minha paixão!...

Ao exíguo visconde, sumido atrás do enorme peru, não escapavam as várias impressões que se manifestavam na fisionomia do banquete, sob o ruído da conversa banal travada de uma à outra ponta da mesa, e acompanhada do tinir dos cristais e rangir dos talheres.

“O prato é o homem”; tradução livre do axioma de Brillat-Savarin: Dis-moi ce que tu manges, je te dirai ce que tu es. Diante do visconde erguia-se um coculo de iguarias; mas era um cúmulo usurário e avarento; compunha-se de uma nica de cada cousa. Servia-se do primeiro ao último dos acepipes; mas só tirava o juro: uns magros 3%.

Com dois daqueles pratos enciclopédicos, estava jantado.

Nesse momento comia ele rapidamente, resmoendo com um dos tais bocados esta palavra, que lhe estava a fazer cócegas nos lábios:

— Que álgebra!... Que álgebra!...

Na linguagem peculiar do visconde “álgebra” significava uma dessas operações intrincadas de juros acumulados e múltiplos, inseridos em cláusulas aleatórias e onzeneiras, que fulminam o mísero caído nas garras de um capitalista mitrado.

Notara o modo atencioso com que o Soares, depois da sutil advertência da filha, tratara a Ricardo; também a fineza de o colocarem à direita de D. Paulina; e por último o gesto sério e meigo com que lhe falava a Guida, para os outros sempre desdenhosa com o remoque a frisar-lhe o lábio.

Lobrigou nesse concurso de circunstâncias um plano de casamento, que, bem conduzido, podia ao cabo de um ano tornar Ricardo o feliz possuidor de um dote milionário, com o acessório de uma galante pequena.

E o capitalista, que houvesse fornecido ao noivo em projeto os fundos necessários para sustentar a posição, poderia retirar da operação um lucro prodigioso.

No meio deste monólogo que reproduzimos sem o sainete de seu estilo financeiro, o visconde começou a calcular, como se fossem algarismos, os grãos de ervilha que espetava no garfo:

— Vamos a ver: 500$ por mês, para o patife lordear por aí e meter num chinelo a rapaziada da Rua do Ouvidor; em um ano, temos 6:000$, dois anos que digamos, 12:000$. Para o alfaiate, charutos, carro e o diabo, ponhamos 8:000$, sem falar dos calotes que ele há de pregar à grande. Aí temos 20:000$. Com um juro magro, de 3%, acumulado de mês em mês, vai ficar-me o tal boneco um tanto salgadete. Mas pode render uns duzentos conteclos...

Nesse ponto o visconde foi interrompido por um incidente.

O Dr. Nogueira observara o enlevo de D. Guilhermina a escutar os floreios que Fábio murmurava-lhe a meio-tom; derreando-se no encosto da cadeira, passou por fora da mesa ao Bastos, colocado três lugares mais longe, uma observação maliciosa.

O Guimarães que de passagem apanhara o dito, percebendo pelo riso do Bastos que havia espírito, assentou de aproveitá-lo.

— Meus senhores, uma novidade!

— O quê?

— A firma Barros e C.ia vai admitir um sócio de indústria, gritou repetindo textualmente o dito do Nogueira.

Felizmente poucos lhe davam atenção; mas nestes o pasmo foi geral. Percebendo pelo espanto quanto era crespa a graça, o Guimarães tratou logo de tirar de si a responsabilidade.

— Foi o Dr. Nogueira que disse!

— Não costumo falar por procurador, meu caro! acudiu o candidato, carregando na palavra.

O Guimarães, que se envergonhava da profissão do pai, amoitou-se, remexendo-se na cadeira.