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Sonhos D'ouro/XIV

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Que luzida companhia desfila pela estrada do Jardim?

Assim é conhecido o caminho que serpeja pelas encostas da serra da Tijuca, e contornando a base da montanha desde a Cruz, no alto da Boa Vista, vai morrer nas praias de Copacabana.

Cerca de dez cavaleiros, entre os quais elegantes amazonas, baralham-se na marcha ligeira e trote dos fogosos cavalos, soltando à brisa da manhã e aos ecos das quebradas, exclamações de prazer, réplicas joviais, e o saboroso riso da alegria descuidosa.

A uma quadra de distância aprecia outro pequeno grupo, do qual cavaleiros e cavalgaduras faziam com o primeiro absoluto contraste.

Era figura proeminente nele Mrs. Trowshy, flanqueada à direita pelo Visconde da Aljuba, e à esquerda pelo Sr. Benício, um dos mais assíduos comensais da casa do comendador. Seguia-os à cola o Sr. Daniel, como sempre metido naquele sério e empertigado, que lhe servia de estojo.

Os quatro iam montados em mulas baias, que no mais cadente chouto os chocalhava dentro das roupas e da pele, como sacos metidos em bruacas. Por vezes Mrs. Trowshy, amiga da palestra, buscou travar conversa com o visconde; mas a voz, já prestes a sair da boca aberta, com o solavanco afundou-se-lhe pela garganta abaixo; e não houve meio de tirar senão um gorgotão.

Condenados assim ao silêncio forçado, e sacolejados até o âmago, os quatro companheiros de passeio, temendo esbroarem-se com o trote infernal, haviam tentado cada um por sua conta moderar o ardor à respectiva mula; mas fora baldado o intento. As baias estavam apostadas, e não havia modo de dobrar-lhes os queixos, por mais que puxassem dos freios.

Se uma parasse, todas a imitariam; mas aí estava a dificuldade, que nenhuma queria ser a primeira; entendiam lá entre si que a sua dignidade burresca sofreria com semelhante condescendência.

Afinal a inglesa não pôde mais com o vascolejo, que estava por um triz a sacudi-la pela boca fora; pediu socorro ao Sr. Daniel, que também se via nos mesmos apertos.

— Se... nhor, nhor, nhor... Da... ni, ni, ni...

Ouvindo afrautar-se a voz de Mrs. Trowshy à maneira de fuga entre bemol e sustenido, pensou o criado que a mestra ensaiava alguma ária italiana, onde figurasse um tenor com o seu nome, o que lhe fazia lá por dentro umas cócegas mui gostosas.

Foi quando a última sílaba de seu nome, depois de gargarejar algum tempo na sonora laringe da professora, e rompendo afinal dos queixos britanicamente cerrados como uma bala raiada, vibrou um grito de angústia, que o Sr. Daniel, subitamente arrancado ao seu enlevo, compreendeu o susto da mestra.

No trêmulo olhar que lhe permitia o chouto valente da mula, viu o grosso volume da inglesa aos trambolhões na sela, e por tal modo, que ia a despencar-se ao chão, e só por milagre escapara até aquele momento.

Bem quis o Daniel parar a mula e apear-se para acudir a tempo; mas ainda uma vez convenceu-se que nem sempre governa o de cima. Quando ruminava essa reflexão filosófica, ouviu-se um gemido, e a inglesa adernando então completamente como uma corveta inglesa de quarenta canhões, despenhou-se da sela abaixo.

Deu-se nesta ocasião, porém, um incidente, que precisa de explicação.

As mulas em que vinham os quatro companheiros de passeio, eram as baias do tiro do Comendador Soares, acostumadas a trabalhar juntas, quando a vitória ia à Tijuca ou ao Jardim, puxada a quatro. Naquela manhã, crescendo o número dos passeantes, foi necessário recorrer a esses animais, que passavam por dar sela.

A Gatinha, que era a mão da primeira parelha, tocou a Mrs. Trowshy; e a Sinhá, sua companheira, ao Daniel. Da segunda parelha deram a da mão ao visconde, que por exceção naquele domingo arvorou-se em passeante, e meteu-se no meio da rapaziada; a da sela ficou para o Benício.

Ora, desde o princípio do passeio que as mulas procuravam emparelhar-se, como de costume; mas a Gatinha, fustigada pela inglesa, metera-se entre as duas da outra parelha; e a Sinhá, a quem o Daniel trazia bem esticada a rédea, era obrigada a ficar atrás.

Com o susto, soltou o criado de todo a rédea; de modo que a Sinhá, metendo o focinho, alongou-se pelos ilhais da companheira, e tão a tempo, que o busto respeitável da matrona, ao virar de querena, encontrou o toro magriço mas rijo do Daniel, que lhe serviu de espeque.

Emparelhadas e de rédeas soltas, as duas mulinhas despregaram pelo macadame um trote bonito, que era o orgulho do cocheiro do Soares, mas nesse momento causava o desespero do Daniel, agarrado ao arção para escorar a rotunda que desabara sobre ele.

Todavia, ao cabo de alguns instantes sentiu que ele próprio ia aluir-se ao peso da carga; na sua aflição gritou aos outros:

— Acudam, ó senhores, que eu só não aguento!

O visconde e o Benício, cuja parelha trotava no couce da outra, como se a prendessem os tirantes e guias da carruagem, não pediam aos céus outra cousa senão que lhes fosse dado parar as mulas e pôr um termo àquele chouto formidável, que ia com certeza esmoer-lhes os ossos e bater-lhes manteiga dos miolos amassados dentro da cachola.

— Então, senhores! exclamou o Daniel já esmagado, mas tentando um surto. Deixam cair a mestra de D. Guidinha?

O principal cuidado do ilhéu era a sua pessoa, ameaçada seriamente de ser despenhada com aquele desabe humano que por seguro o achatava em terra.

Na impossibilidade de sofrearem as mulas e fazê-las parar a fim de, apeados, acudirem ao Daniel, e ampararem da queda a inglesa, os dois acólitos tiveram nesse transe supremo um rasgo heroico. Estendidos, quase deitados ao pescoço das baias, cada um inteiriçando o braço direito, meteu mão ao trambolho luso-britânico e o afincou na sela.

Afinado cada vez mais no trote largo e cadente, o tiro das mulas despejou o caminho às braçadas, conduzindo em charola a grotesca penca dos quatro; e com pouca demora apanhou a luzida comitiva, que já tinha moderado o primeiro ardor.

Ao dar com o grupo cômico, digno de uma farsa equestre em circo de cavalinhos, despregou-se o riso de todos os lábios, e uma gargalhada estrepitosa rolou pelas quebradas da serra, como a cascata grande da Tijuca a espadanar por entre os fraguedos.

Topando com os outros animais, as baias moderaram o entusiasmo e afinal estacaram, pois a um aceno de Guida alguns cavaleiros tinham saltado ao chão a tempo de apararem na queda a cambulhada humana, que já de todo pendurada sobre as ancas da Sinhá ia finalmente despencar-se.

Concertada a marcha da comitiva, continuou ela a passo por algum tempo, não só para dar respiro à batida dos animais, como sobretudo para que Mrs. Trowshy e os seus companheiros de tiro tornassem a si da esfrega, e pudessem de novo soldar-se na sela.

Na frente ia Guida, montada no Galgo, que ela governava com a mesma elegância e correção do costume, mas com certa prevenção que se revelava na firmeza do gesto e vivacidade do olhar. Ela sentia que não tinha de haver-se com a arrogância aristocrática do filho de Albion, mas com a briosa independência do árdego curitibano.

Perto da moça vinha Ricardo em Edgard, conversando com D. Clarinha. Aos lados, Guimarães e o Bastos disputavam a direita ou a esquerda da moça, conforme as sinuosidades do caminho e evoluções da cavalgada.

No segundo plano notava-se D. Guilhermina a par com Fábio, que se desempenava em um soberbo cavalo campista, cujo defeito único era ser um tanto pesado. Seguiam-se outras moças e cavaleiros, sem contar a bagagem pesada, que fechava agora o bando.

Eram sete horas da manhã, e pouco havia que o rancho alegre partira.

Conforme o ajuste do domingo precedente, Ricardo às seis horas se dirigira à casa do Soares. Não lhe causava o mínimo alvoroto esse passeio; dispunha-se a ele, como ao cumprimento de um dever de cortesia.

Guida o convidara para obsequiá-lo; e ele, que reconhecia-se injusto nas prevenções que nutrira contra o banqueiro e sua família, considerava-se obrigado em consciência a aceitar de rosto alegre o agasalho que lhe faziam nessa casa. Era o único meio que tinha de agradecer a fineza.

Todavia, não foi esse o principal motivo. Da conversa de Fábio, percebeu ele que o amigo ardia em desejos de tomar parte no passeio e não faltaria por certo, se o Galgo pudesse dividir-se em dois ou estivesse em moda a garupa.

Desde então Ricardo, que tinha suas razões, não hesitou mais; e decidiu-se a ir ao passeio, para evitar que Fábio o substituísse.

Muito cedo, pois, chegou à casa do Soares. Grande porém foi a sua surpresa, e não menor a contrariedade, avistando no pátio, entre o grupo de senhoras e cavaleiros, que se preparavam para montar, a Fábio ocupado em apertar a cilha do cavalo de D. Guilhermina.

Madrugando nesse dia, contra o costume, o sobrinho de D. Joaquina se aprontara e saíra a passeio para o lado da Boa Vista. Afagava-o uma esperança.

Em caminho encontrou D. Guilhermina que voltava do banho com outras:

— Então não vai à Vista dos Chins? perguntou ela.

— Não arranjei animal! respondeu Fábio.

— Que desculpa! Eu lhe empresto um. Venha!

Fábio acompanhou as senhoras à casa do Soares. No pátio já estavam arreando os animais. D. Guilhermina chamou um escravo:

— O cavalo do Sr. Lima aqui para o Sr. Dr. Fábio.

— Sim, senhora.

— Este castanho é o seu? perguntou Fábio.

— Acha bonito?

— Soberbo!

Guida, que descia os degraus da escada, viu Ricardo apear-se, e foi-lhe ao encontro.

— Como passou?

Saudara ao moço com estas palavras e um aperto de mão; mas o olhar cheio de afagos foi para o Galgo. Havia nesse olhar a angélica voluptuosidade com que a moça cobiça um capricho, e a menina uma boneca.

Edgard estava pronto e esperava pela senhora. O estribo de Guida era feito de modo que lhe permitia montar sem auxílio de banco, apesar da altura do cavalo. Era uma simples invenção de seu gênio travesso, a qual o melhor correeiro da corte, o Lambet, se incumbira de pôr em prática. A volta do loro passando na mola atravessava o suadouro e prendia-se no outro lado a um pequeno gancho pregado na armação do selim e elegantemente disfarçado por uma aba de couro.

Antes de montar o loro frouxo descia o estribo até o ponto de não constranger; elevando-se rapidamente sobre esse apoio, de um salto a moça galgava o selim; e recolhendo então o loro, prendia-o mais curto, encaixando o ilhó no gancho.

Assim tinha ela a liberdade de apear-se quando queria, durante o passeio, e montar sem auxílio estranho.

Já estava com o pé no estribo, e a ampla saia do roupão mostrava a ponta da bota castanha a brincar sobre o disco de aço quando, tomada de súbito desgosto, afastou-se de Edgard:

— Aborrece-me este cavalo!... disse ela com enfado. Pedro!...

O preto acudiu.

— Não há outro animal para mim?

— E o alazão? perguntou o preto embasbacado e apontando para o isabel.

— Não quero este!... É muito feio.

— Oh! que injustiça! disse Ricardo sorrindo.

— O senhor acha bonito?

— É um soberbo animal.

— Pois vá nele.

— E a senhora?

— Eu irei em qualquer.

— De modo algum. Se o Galgo não fosse tão esperto!

— Por isso não! Mas o senhor não se há de privar por minha causa. Não; eu fico, vou passear a pé.

Depois de alguns escrúpulos mais por parte de Guida, a instâncias de Ricardo, fez-se a troca; e partiu enfim a passeata.