Sonhos D'ouro/XXVI

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Meio-dia.

Abrasa o sol a rechã onde se desdobra o bairro do Andaraí, precintado por um cordão de montanhas que lhe interceptam a passagem das brisas do largo.

É um desses dias de verão, que chofram de repente no meio de frias temporadas como vedetas ou postos avançados do estio a explorar as névoas do inverno, e fazer experiências no barômetro dos calos e reumatismos dos velhos fluminenses.

Um tílburi para no portão da chácara de D. Leonarda; e dele apeia-se um mancebo trajado com a severa elegância, que revela o espírito superior, irisado pelo prisma brilhante da imaginação, mas contido pelo recato da dignidade.

No fim do curto passeio de murtas apareceu um negrinho que dobrava o outão de casa; logo após outro pirralho, e outro, até que formou-se uma pinha dos tais diabretes.

O mancebo caminhou a eles para confiar a um o seu cartão de visita; mas não tinha dado três passos, que a alcateia alvoriçou, dispersando-se pelo terreiro afora e escondendo-se por trás da casa.

Abrira-se porém a porta de entrada, e apareceu no patamar uma mucama:

— O senhor é Sr. Doutor Ricardo?

— Ricardo Nunes, confirmou o advogado.

— Pode entrar.

Achando-se o mancebo na sala de visitas, extensa peça, embora um tanto estreita, com cinco janelas rasgadas sobre o jardim, cujas ramadas lhe cobriam as portadas de verdes sanefas, por onde de envolta com a fragrância do jasmim coava-se a luz, peneirada no crivo das folhas e roseada pelo reflexo dos lilases.

Esta sombra luminosa, como a chamara Mílton, derramava no aposento uma tinta de serena e doce quietude, que repassava a alma de um indefinível enlevo, especialmente ao surdir-se das torrentes de um sol tropical. Sentou-se o mancebo à espera, com alguma curiosidade de conhecer ao justo o fim de sua vinda ali.

Dois dias antes lhe aparecera no escritório o obsequioso Sr. Benício; depois dos usuais oferecimentos, sacara do bolso as três clássicas e enormes carteiras, colocara-as diante de si em cima da mesa, esvaziara dois dos profundíssimos bolsos, tornara a atopetá-los baldeando a carga da direita para a esquerda, e afinal depois de toda essa pesquisa como não a faria melhor a polícia aduaneira, desenterrou das cavernas de uma algibeira uma nota de que deu leitura ao advogado:

— “Dr. Ricardo de Melo Nunes, advogado. Escritório, Rua do Rosário n.º 27.” É isto?

— Deve ser! respondeu Ricardo a rir, senão o senhor cá não chegaria.

— Eu cá trago estas cousas em ordem, tornou o amanuense; e acabou de ler a nota. — “Negócio de D. Leonarda.”

Depois dessa formalidade explicou o Benício ao mancebo que a sogra do Soares o incumbira de pedir-lhe o favor de achar-se em sua casa terça-feira ao meio-dia em ponto, para na qualidade de advogado aconselhá-la em negócio importante e até mesmo arranjar certos papéis necessários.

Assegurou Ricardo que as ordens de D. Leonarda seriam cumpridas; e ali estava exato no dia e hora que lhe fora designado. Viera o mancebo com certa emoção incompreensível, que ainda naquele momento não pudera dominar ao todo, e menos assinar-lhe a causa.

Atribuía à curiosidade. Que lhe queria a senhora? Teria ele de penetrar nos segredos de sua vida? Pretendia a velha incumbi-lo de redigir seu testamento? Ia ele tornar-se o confidente de alguma dessas dissensões intestinas que às vezes lavram no seio das famílias?

Abriu-se a porta; e Guida apareceu em companhia de Mrs. Trowshy.

A moça trajava nesse dia com extrema simplicidade. Estava toda de branco, e a alvura de suas vestes de cambraia sob a nívea cútis dava-lhe a serena transparência da luz mate. Sua bela estátua parecia flutuar nesse éter diáfano onde brilhavam com vivo fulgor os olhos negros e as tranças opulentas de seus cabelos. O lábio talvez pálido em outro semblante menos puro, no seu era folha de rosa nadando em leite; e por ele perpassava um sorriso merencório como deve ser a pétala aveludada da flor quando se despede da luz, de que embebia-se.

Ao vê-la entrar na sala como uma doce visão de manhã de abril, Ricardo, imaginação de artista, com o culto da forma e o entusiasmo do belo, não pôde conter os raptos de seu espírito; e esteve por alguns momentos no enlevo da admiração.

— Está cansado de esperar? disse Guida saudando o advogado.

Feitos os cumprimentos, Mrs. Trowshy foi sentar-se na outra parte da sala, no vão duma janela, com um volume de Dickens. Os dois moços ficaram onde estavam, Guida no sofá, e Ricardo na cadeira do lado.

— Minha avó está arranjando sua papelada. Talvez se demore, e por isso incumbiu-me de uma cousa bem difícil; distrair-lhe a impaciência.

— A senhora dispensa o cumprimento? perguntou Ricardo gracejando.

— Decerto; cumprimentos a esta hora entre o advogado e seu cliente... Porque eu estou aqui representando minha avó. Não é verdade?

— Assim o entendo; e eu não seria advogado se não houvera aprendido a fundo a paciência; além de que, não tenho pressa. Consagrei o dia de hoje à Sr.a D. Leonarda.

— Então não lhe incomoda esperar?

— De modo algum; antes me dá o prazer...

— Ai! ai!... que lá se vai o advogado.

— É verdade!

— Estimo bem que não estivesse aflito por ir-se, porque minha avó é muito vagarosa, coitada, tão doente; e eu não sabia como fazer-lhe passar desapercebido esse tempo. O piano... Se ainda tivesse cordas, podia tocar-lhe o Capenga não Forma. Mrs. Trowshy quando se agarra com seu romance, ninguém conte com ela. Então Dickens!

— É o seu autor favorito?

Acenou a moça que sim.

Não estava Guida, essa manhã, no seu natural, que era uma doce jovialidade, salpicada às vezes de ironia, e outras de meiga afabilidade. Em seu vulto perpassavam, como na face cristalina de um lago, as mutações do pensamento.

Ao entrar tinha ela a atitude séria e concentrada, porém ao mesmo tempo decidida e serena, de quem atravessa um momento difícil da vida, mas arrima-se, para transpô-lo, a uma resolução inabalável.

A conversa tirou-a dessa reserva, sem contudo dissipar-lhe de todo na fronte a sombra da preocupação. Buscou reassumir o seu gentil e gárrulo sorriso, mas a harmonia e a graça dessa mimosa expressão ressentia-se de uma ligeira crispação. As fibras nervinas desse delicado organismo, alguma forte comoção as tinha percutido.

Agora, em meio de um gracejo, deixava-se colher por súbita distração, como se o pensamento, transformado em uma borboleta, lhe fugisse pela janela a farfalhar entre as flores do jardim; mas, a ser assim, depressa achara a ideia que buscava, pois tornou logo à conversa.

— Dickens?... É o autor de sua paixão, disse afinal confirmando o aceno, e com uma ligeira confusão.

Delicadamente Ricardo fingia observar Mrs. Trowshy, para não se mostrar apercebido do enleio da moça.

— Gosta dos romances ingleses? perguntou Guida.

— Poucos tenho lido. A literatura francesa nos invadiu; e por algum tempo foi nosso único fornecedor de ideias. Das outras apenas conhecíamos as obras-primas, os grandes poetas. Ultimamente já entramos em comércio com outras literaturas; mas a mim falta-me o tempo e o gosto.

— Alguns acham os romances ingleses muito insípidos.

— É natural. Somos uma raça tão diversa! Eles hão de achar os nossos extravagantes.

— Oh! quanto a extravagância, quero contar-lhe o desfecho de um que li há tempos; creio que é de... Não me lembro! disse Guida com certo assomo nervoso.

Fitou a moça os olhos nas grinaldas que pendiam da janela, acompanhando o volutear de um colibri que chupava o mel das flores. Deste modo não se podia cruzar o seu olhar com o do advogado.

— O título... não me lembro. Era uma moça, filha de um banqueiro muito rico. Quanto à descrição, imagine o senhor, que sabe desenhar: o romancista a dá como bonitinha; não era nenhum primor; bem longe disso.

— Aí está-se revelando a escola inglesa, observou Ricardo.

Riu-se Guida maliciosamente da observação do moço, e continuou:

— O pai tinha declarado à filha quando ela tornou-se moça, que a não constrangiria, mas ao contrário lhe deixava plena liberdade para escolher um marido; contanto que chegando aos dezoito anos se casasse. Também é inglês, não lhe parece?

— Genuíno.

— Vai ver o resto. Chegou a moça aos dezoito anos; e completou os dezenove. O pai exige o cumprimento da promessa.

— E ela casa-se! exclamou Ricardo com vivacidade, levado por estranho impulso.

Retraiu-se porém o moço; e desfolhou dos lábios um irônico sorriso. Guida, que deixara suspensa um instante a exclamação do moço, continuou galanteando:

— O senhor quer precipitar o desenlace. Não seja tão sôfrego. Ouça; temos muito tempo. Avozinha não vem tão cedo.

Guida parecia recobrar sua habitual isenção e garridice:

— O pai exigiu o casamento; mas a moça não tinha escolhido.

— Ah!

— E não só não tinha, como não podia escolher. A ninguém amava; não conhecia um homem por quem sentisse as doces emoções, os estremecimentos, que fazem a felicidade conjugal. Donde provinha isto, não sabia explicar o romancista, e menos eu. Não teria coração essa moça, ou se lhe havia cegado? Era isso efeito da educação, ou da sociedade em que vivia, cercada de galanteios ridículos, de cálculos vis, e de grosseiras afeições? Pode ser que sucedesse à alma da moça o mesmo que a um botão de cacto, quando há tempestade: chocha e não abre em flor. Pode ser!

— Mais tarde. Quem sabe! disse Ricardo sorrindo.

— É a minha...

Atalhou-se Guida em cujas faces espontava um vislumbre de púrpura. Ricardo olhava-a com emoção.

— “É minha esperança”, repetiu Guida pausadamente. Assim disse a moça, uma vez que lhe acudiu esse mesmo pensamento. Mas os dezoito anos eram passados; fugia o tempo, e seu pai que a amava extremosamente, afligia-se com a ideia de a deixar só no mundo à mercê da especulação. Reconheceu a moça que era forçoso o sacrifício; e não hesitou em jogar seu destino ao azar, para sossego de quem morria-se por ela. Escolheu.

Ricardo recolheu-se todo em si como se tivesse de assistir a uma importante revelação.

— Não careceu escolher, continuou Guida. Conhecia um moço, que fora algumas vezes à sua casa; tinha plena confiança em seu caráter e na sua educação. Era um homem probo e delicado. Podia confiar-lhe o seu destino. A primeira vez que o encontrou, confessou-lhe tudo; disse-lhe que, se não lhe tinha afeição, ou nunca a teria por ninguém, ou só ele a podia inspirar.

Guida que falava sôfrega, moderou-se.

— “Se pois não lhe repugna aceitar a mão de uma mulher nestas condições, e pensa que ela vale a pena de arriscar a sua independência, o senhor me salva da maior humilhação.” Eis o que ela disse, concluiu Guida.

Os olhares dos dois moços se encontraram e fugiram-se:

— Não considera extravagante este procedimento? disse Guida rindo, para disfarçar a emoção.

— Está fora do comum; é novo, excepcional, como as circunstâncias que o determinaram; mas não há nele que repreender. Admiro a energia e espírito dessa moça, que em tão difícil conjuntura de sua vida, não sucumbiu à debilidade de seu sexo e teve coragem para decidir ela mesma e deliberadamente de sua sorte. Surpreende-me esta iniciativa, que atribuo à educação; e ainda assim parece difícil de vê-la produzir-se na vida real.

— Pois há de ver, disse Guida a meia voz.

— Como?

— Mas o senhor que aprova o procedimento da moça, no caso de ser a pessoa por ela escolhida, o que responderia?

— Eu não podia ser essa pessoa, disse gravemente Ricardo.

— Por quê? perguntou Guida com afã.

— O homem a quem essa moça se dirigiu estava livre; podia dispor de seu coração e de sua vida!

— Ah!

Descaiu-lhe à Guida, a fronte abatida. Ricardo olhou-a um instante com uma ternura melancólica. Depois, reclinando-se para não arrancá-la à sua posição, fez-lhe a confidência de sua vida em breves palavras:

— É uma afeição de infância. Brincamos juntos, e aprendemos a amar-nos. Esperava formar-me, mas tendo falecido meu pai, fiquei único arrimo de uma família pobre e endividada. Meu tio, o pai de Bela, adiou o nosso casamento, apelando para minha honra. Que futuro reservava eu para sua filha, pobre também? Parti para a corte; vim pedir ao trabalho os recursos indispensáveis para desempenhar a velha casa onde mora minha mãe, e que é nosso único patrimônio.

— E é preciso muito dinheiro? perguntou Guida com interesse. Quanto?

— Acanho-me de falar-lhe dessas particularidades.

— Não adquiri esse direito fazendo-lhe minha confidência? tornou a moça com meiga exprobração.

— Tem razão.

E Ricardo completou a breve história de sua vida; e contou-lhe, como o faria à sua mãe, as ânsias dos seis longos meses passados no Rio de Janeiro, os desânimos que tantas vezes dele se apoderavam; até lhe escaparam as mágoas causadas pela volubilidade de Fábio, e os receios pela ventura de Luísa, sacrificada com tamanha ingratidão.

— Avozinha está-se demorando. Com licença, vou saber a causa, disse Guida.

Ficando só na sala, pois Mrs. Trowshy continuava ausente, em Inglaterra onde se passa a ação do romance que lia, buscou Ricardo compenetrar-se da realidade dos fatos em que tomara parte, e não o pôde. Seu espírito, ainda atônito pela estranheza do episódio em que se envolvera imprevistamente sua existência, não recobrara a reflexão: tudo quanto podia no meio da surpresa, era recordar-se.

A espera foi breve. D. Leonarda veio finalmente à sala, acompanhada por Guida.

— Aqui tem os papéis, senhor doutor, disse a velha depois dos cumprimentos usuais, e volvendo a miúdo os olhos para Guida. Quero que examine bem para ver quem tem direito, porque não desejo questões, sobretudo com vizinhos.

— É então uma questão de limites? perguntou o advogado.

— Não sei... É isso mesmo, respondeu a velha corrigindo-se ao aceno da menina.

— O senhor me permite? Eu lhe explico. O vizinho da esquerda pretende apoderar-se de um pedaço de terreno, que foi sempre de minha avó. O senhor doutor leva os papéis, para examiná-los; depois dará sua opinião. Não é melhor, avozinha?

— Eu acho que é! disse a velha batendo com a cabeça.

Na ocasião de se despedirem disse Guida ao advogado, em cujo semblante não se apagara a tinta de melancolia que derramara a cena anterior:

— Não se aflija. O romance que eu lhe contei, acaba alegre.

E para confirmar o dito, o seu lindo semblante banhou-se em um riso feiticeiro.