Uma Campanha Alegre/I/XL
Outubro 1871.
A companhia dos caminhos de ferro, com intenções amáveis e civilizadoras, coloca-nos em embaraços terríveis. Digamo-lo rudemente: nós não estamos em estado de receber visitas! Vivemos aqui ao nosso canto, sem cerimónia, em chinelas - e não gostamos que gente culta venha ter a revelação da nossa mobília pobre e da nossa conversação simplória.
E tanto que pedimos claramente ao Governo, em nome do País envergonhado e com a barba por fazer, que proíba, sob as penas mais severas, à companhia dos caminhos de ferro, o facilitar assim por preços baratos, a essa aparatosa Espanha, viagens de recreio através da nossa miséria!
O País não pode em sua honra consentir que os Espanhóis o venham ver. O País está atrasado, embrutecido, remendado, sujo, insípido. O País precisa fechar-se por dentro e correr as cortinas. E é uma impertinência introduzir no meio do nosso total desarranjo, hóspedes curiosos, interessados, de luneta sarcástica!
Imaginemos que amanhã chega aí, ao largo arquejar da máquina, num desses comboios impudentes, uma coorte espanhola, descaradamente ilustre - estadistas, oradores, generais, literatos, pintores, professores, arquitectos, jornalistas... Que vergonha, meus senhores, que vergonha!
Imaginemos que esses homens políticos, esses oradores, esses parlamentares,
Sagasta, Martos, Py y Margal, Zorrilla, Rivero, Castelar, Canovas, conservadores e revolucionários, ministros e tribunos, filósofos e dialécticos, se vão sentar, num dia de sessão, na galeria desbotada de S. Bento, e que vêem, piedoso Deus! as nossas câmaras, a nulidade do pensamento, a relice da palavra, o abandono de todo o decoro, os insultos e os desmentidos, a compostura plebeia e grossa, a ciência que lá falta, a intriga que lá abunda, a horrível baixeza daquela pocilga constitucional!
Imaginemos que esses estadistas conversam com esses que são entre nós os estadistas - e vêem, vergonha eterna! que eles ignoram a administração, a economia, a história, as questões do tempo, toda a ideia, todo o facto, e que por única verve e por única profundidade sabem afirmar que o regedor de Cabanelas é amigo do ferrador da
Cortegaça e que este compadrio aldeão dá cinquenta votos combinados ao Governo de
S. M. F.!
Imaginemos que esses generais, que venceram em África e que venceram em
Espanha, estudam o nosso exército, visitam os nossos quartéis, examinam o nosso armamento, conversam com os nossos generais!
Oh por piedade! consideremos que esses professores podem entrar na obscura vergonha das nossas escolas! Que esses jurisconsultos podem querer ver os nossos tribunais! Que esses arquitectos podem deitar a luneta às nossas construções! Que esses pintores podem perguntar pelas nossas galerias! Que esses homens do mundo podem tratar com os nossos dândis, ou mirar-lhes a toilette! Que vergonhas! que vergonhas!
A companhia dos caminhos de ferro está abusando um pouco da amizade impaciente que (no seu entender) nós e a Espanha nutrimos reciprocamente. A cada momento nos facilita entrevistas baratas e ternas. Sim, decerto, nós e os Espanhóis meigamente nos amamos! Mas não sentimos a necessidade urgente e ávida de nos pre-cipitarmos, assim, todos os oito dias, nos braços uns dos outros!
Ah! meus senhores, não consintamos que essa cruel Espanha, que se levanta, que se organiza, que se engrandece - venha, de luneta no olho e gargalhada na boca, fazer o inventário jocoso do nosso abaixamento! Não consintamos que nos vejam!
Aferrolhemo-nos! Os Chins, outrora, não permitiam que os europeus vissem o seu esplendor. Sejamos a China da miséria!
E se por acaso a companhia dos caminhos de ferro, para fingir que tem passageiros e movimento, precisa impreterivelmente fazer passar a fronteira a alguns viajantes curiosos - então ao menos que só dê lugar nos seus velhos vagões àqueles de quem nós não tenhamos vergonha, e com cujas civilizações possamos competir: -
Cafres, Patagónios, Lapónios, Abexins, Etiópios, Tártaros, e Hotentotes! E estaremos então em família.
A Espanha, porém, a garrida Espanha, é que parece desejar profundamente que nós os Portugueses examinemos de perto o seu salero político, económico, artístico, religioso e teatral: porque, com uma originalidade cómica, que excede tudo quanto contaram os romances picarescos do século XVII, a Espanha condecora todos os por-tugueses que cometam o arrojado feito de ir a Madrid! Sem distinção, sem escolha! O viajante português chega, o dono da Fonda traz-lhe chocolate - e um contínuo do Paço
Real traz-lhe a comenda. Ou porque a Espanha queira compensar os incómodos e os tédios de lhe ir ver a capital: ou porque o rei Amadeu, que nunca foi visitado pela aristocracia espanhola, se comova até à lágrima e até à condecoração quando se digna ir vê-lo a burguesia lusitana - o português que chega recebe em pleno peito, sem pre-venção, sem água vai, uma comenda e um diploma enrolado!
Já se sabe de antemão aquela graça. Pode-se até telegrafar assim para Madrid: -
Hotel de los Embajadores, calle S. Jeronimo: Ao Sr. Moreto, proprietário. - Chego amanhã, prepare-me quartos e a comenda de Carlos III.
Podia, até, para maior franqueza, ser a condecoração indicada na lista dos hotéis:
Gravanzos ............................................................................. 1 duro
Grã-cruz de Isabel a Católica ................................................. grátis
Dizem que o Governo espanhol resolveu condecorar assim os que tomam bilhetes de 1ª a ou 2ª classe para Madrid, com o fim único de favorecer a companhia dos caminhos de ferro.
Em tal caso era mais cómodo entregar logo a condecoração em Santa Apolónia.
— Um bilhete de 2ª classe, e a condecoração! - gritaria o viajante ao postigo do vendedor de bilhetes.
E a companhia pregava-lhe a marca no bojo do saco de noite - e a comenda no peito do fraque. E o sr. comendador entrava para o seu vagão!
Há, evidentemente, duas intenções delicadas naquele derramar de condecorações:
A primeira é compensar as contas dos hotéis. Depois da guerra de Marrocos, aqueles que podiam mostrar uma cicatriz apresentavam-se na Secretaria da Guerra e recebiam a Medalha de África. Agora parece que, depois de alguns dias de Madrid, aqueles que puderem mostrar, não uma cicatriz mas uma conta de hotel, recebem na
Secretaria da Gobernacion a comenda de Carlos III! Nesse caso aqui estamos! Temos uma conta da Fonda de Madrid, em Cádis, Plaza Santo António, inumerável em gravanzos - e em duros inumerável! Em boa lógica não pode deixar de nos ser dada uma capitania geral! E ainda perdemos!
A segunda intenção é premiar os que viajam. Mas então que honras se reservam àqueles que vão ainda além de Madrid? Que grã-cruzes se dão a quem vai a Barcelona?
Que títulos de nobreza esperam aqueles que chegam às Vascongadas?
Porque enfim se um de nós se perfilasse diante de S. M. Amadeu, e lhe falasse destarte:
— Real senhor! o vosso humilde servidor já foi a Espanha, daí a Malta, depois ao
Egipto, depois à Arábia, depois à Palestina, e a Jerusalém; atravessou os montes da
Judeia, peregrinou até o Jordão, subiu à Síria, visitou o Líbano...
...S. M. Amadeu não podia deixar de descer os degraus do trono, e gritar comovido:
— Viajante dessa ordem, reina sobre os Espanhóis!
Gloriosa Espanha, faceta Espanha! - A Cristóvão Colombo, que fez a viagem maravilhosa e chegou ao Novo Mundo, deste umas poucas de palhas para ele morrer num cárcere: - a quem empreende a viagem de Madrid e chega à Calle Reale, dás uma comenda de prata, gloriosa Espanha, faceta Espanha!
Andávamos bem enganados com os méritos humanos. O nosso espirituoso amigo
Pinheiro Chagas tem sido, desde a mais distante mocidade, um trabalhador. Jornalista, poeta, romancista, historiador, dramaturgo, crítico, sempre à sua mesa de trabalho com o valor de quem está numa trincheira, tem belamente despertado com a sua pena vigorosa a nossa curiosidade indolente. Nenhum governo lhe pôs nada ao peito, nem um botão de rosa no casaco. A Espanha nunca pensara em lhe dar os bons-dias! Pinheiro
Chagas lembra-se um dia de se meter num vagão do caminho de ferro. O Governo espanhol acorda, fita-lhe o peito, e, com um grito de amor, crava-lhe a placa de Carlos
III!
Qual é a ilação? Que, aos olhos do Governo espanhol, o maior feito que pode cometer um varão contemporâneo não é fazer um grande livro, ganhar uma grande batalha, descobrir uma grande máquina - mas ter a sobre-humana coragem de ir a
Madrid. Haverá nada mais humilhante para Madrid? E fazer uma pavorosa ideia de uma capital o considerar como um acto de coragem - ir lá! O Dr. Levingstone, que tem viajado os desertos desconhecidos, os ásperos sertões, os rios bárbaros, as tribos antropófagas - é grande; mas falta-lhe a façanha suprema - ir, ao meio-dia, à Rua de
Alcalá!
E nós Portugueses, levando nossos filhos pela mão, quando encontrarmos mais tarde algum dos heróicos viajantes de Madrid, diremos a nossos filhos:
— Vês, meu filho, aquele senhor condecorado, meneando a sua bengala?
— Sim, papá.
— Admira-o, menino, e imita-o! Aquele homem sublime, num momento de coragem, contando em nada a vida, cheio só da fé em Deus e do amor da humanidade, teve um dia o valor febril, a audácia estonteada, de tomar o comboio de recreio e de ir a
Madrid!
E quereis saber, amigos, como começará o novo poema que mais tarde ou mais cedo tem de ser feito sobre os Novos Lusíadas? Começará assim:
Eu celebro os varões assinalados
Que da ocidental praia, heróicos, sós,
Em vagões nunca dantes franqueados
Passaram ainda além de Badajoz.