Uma Campanha Alegre/II/IX

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IX

Janeiro 1872.

Não queremos privar os nossos amigos da história de um concurso, cintilante de jovialidade, que estala de riso por todos os poros, espuma paradoxalmente de pilhéria.

Havia um lugar de cirurgião do banco no Hospital de S. José. O concurso era documental. Dois médicos aparecem, concorrendo. Um o Sr. Boaventura Martins, apresenta como documentos os certificados de onze cadeiras do curso médico, tendo dez aprovações plenas com louvor, e seis diplomas de prémios. O outro concorrente não tem nos seus documentos nem louvor, nem prémio; e tem apenas um R. A administração do hospital classificou o Sr. Boaventura em primeiro lugar, como lhe impunha a lógica e a força inatacável dos documentos. O Governo também o considerou digno dessa classificação. Somente sucedia que o ministro não que ria despachar o Sr.

Boaventura e ansiava por despachar o cavalheiro do R. Mas (supremo embaraço!) os documentos, os louvores, os prémios, tinham uma evidência iniludível. «Que fazer?» como se diz nas óperas cómicas. O Governo ruminou nas profundas do seu peito, e tirou dele esta sentença: «O Sr. Boaventura não pode ser despachado por não ter sido recenseado». Surpresa! Assombro!...

Eis o que sucedera:

A lei diz: — «Não pode exercer lugar público o indivíduo que não tenha sido recenseado...». Ora acontecera que o Sr. Boaventura não fora recenseado em tempo competente por descuido da câmara. Quando reconheceu esta omissão, requereu precipitadamente à câmara para ser incluído no recenseamento. A câmara respondeu com bom senso que, tendo passado os 21 anos da lei, o Sr. Boaventura não devia ser recenseado, e que seria inútil que o fosse, porque o contingente do seu ano estava plenamente preenchido.

O Sr. Boaventura juntou aos seus papéis este atestado da câmara. Pois foi justamente fundado nele que o Governo o excluiu do lugar! Não podendo negar-lhe a superioridade de classificação — negou-lhe a validade do concurso!

De sorte que, tacitamente, o Governo confessa:

Que dez louvores e seis prémios num curso habilitam, com superior razão, o Sr.

Boaventura a exercer o lugar de médico do banco do hospital: somente que de nada lhe valem louvores e prémios, porque a câmara municipal se esqueceu de o recensear!

Debalde a câmara exclama pela voz dos seus documentos: «Não, por causa de mim, não! esse cavalheiro requereu para ser recenseado! somente é agora inútil que o seja porque o seu contingente está preenchido!»

O Governo insiste: — «Não! desde o momento em que a câmara se esqueceu de o recensear, esse médico pode ser um hábil carpinteiro, um fino miniaturista, mas é-lhe vedada a clínica! E imediatamente se aproveita desta interdição do Sr. Boaventura — para despachar um cavalheiro protegido e querido!

Portanto, o que se colige é que o concurso não tinha esta interrogativa racional: —

«qual é o melhor médico?» Tinha esta estranha interrogativa: — «qual é o mais bem recenseado?»

O mais bem recenseado seria o mais apto, segundo o Governo, para curar, operar, tratar doentes.

Logo o recenseamento substitui o curso. Ora ninguém negará que qualquer soldado do 5 ou do 18 está mais bem recenseado, e prova melhor a eficácia do seu recenseamento, do que o sábio professor Tomás de Carvalho. Portanto quem, segundo a doutrina do Governo, deveria reger a cadeira de anatomia, seria um soldado do 18 com a autoridade da sua fardeta suja, e não o Sr. Tomás de Carvalho com a autoridade do seu largo saber.

Tal é a história jovial e imunda deste concurso!