Uma Família Ingleza/III
NA AGUIA D'OURO
Era uma das ultimas noites do carnaval de 1855.
Havia menos estrellas no céo, do que mascaras nas ruas. Fevereiro, esse mez inconstante como uma mulher nervosa, estava nos seus momentos de mau humor; mas, embora; o folgazão entrudo ria-se de taes severidades e dançava ao som do vento e da chuva, e sob o docel de nuvens negras que se levantavam do sul. Graças á cheia do Douro, a cidade baixa podia bem prestar-se n'aquella época a uma parodia do carnaval veneziano.
Á porta dos theatros apinhava-se a multidão; os altos brados dos vendedores de senhas e os agudos falsetes dos mascarados atordoavam os ouvidos. Dos cabides dos guarda-roupas, provisoriamente armados nas lojas circumvizinhas aos principaes salões de baile, pendiam vestuarios correspondentes a todas as épocas e a todas as nações, e alguns, aos quaes não era possivel assignar época, nação, classe ou condição social conhecida.
Numerosos grupos de espectadores paravam diante das exposições de mascaras á venda e tornavam o transito n'aquellas ruas quasi impraticavel. Era uma fascinação analoga á que produz um conto de Hoffmann em imaginações excitaveis, e exercida n'elles por tantas mascaras enfileiradas, cuja diversidade comica de expressão e de gesto lembrava um enxame de cabeças mephistophelicas, surgindo á luz para se rirem das loucuras da humanidade.
Estes absortos contempladores a cada passo vinham a si, desagradavelmente acordados pelas pragas energicas dos conductores de carruagens, prestes a atropellal-os, ou pela interjeição pouco harmoniosa dos cadeirinhas obrigados por causa d'elles a irregularidades no andamento da sua grave e benefica tarefa. Só então, e ainda a custo, se dispersavam, para, alguns passos mais adiante, se agglomerarem de novo.
Se é licito comparar as grandes ás pequenas cousas, veremos n'estes a imagem de todos os inoffensivos scismadores d'este mundo, a quem sempre cruelmente vem despertar o embate dos afadigados em emprezas positivas.
A animação era geral na cidade.
Todos corriam com ancia… a enfastiarem-se, fingindo que se divertiam.
Alguma cousa havia tambem na Aguia d'Ouro, a anciã das nossas casas de pasto, a velha confidente de quasi todos os segredos politicos, particulares e artisticos d'esta terra; alguma cousa havia n'essa modesta casa amarella do largo da Batalha, que desviava para lá os olhares de quem passava.
Desde as tres horas da tarde que o tinir dos crystaes e das porcellanas, o estalar das garrafas desarrolhadas, o estrepito das gargalhadas, das vozerias tumultuosas, e dos hurrahs ensurdecedores rompiam, como uma torrente, do acanhado portal d'aquelle bem conhecido edificio; e por muito tempo essa torrente, á maneira do que succede com a das aguas dos rios caudalosos ao desembocarem no mar, conservava-se distincta ainda, através do grande rumor, que enchia as ruas.
Os criados subiam e desciam azafamados as escadas, cruzavam-se ou abalroavam-se nos corredores, hesitavam perplexos entre ordens contradictorias, vinham apressar os collegas na cozinha ou entretinham com promessas os impacientes convivas da sala.
No entretanto o modesto e solitario freguez, a quem uma velleidade estomacal convidára a ir ceiar a humilde costelleta, principal trophéo culinario da casa, era pouco attendido e, farto de esperar, retirava-se sorrateiro e cabisbaixo.
Sob apparencias de modestia, a Aguia d'Ouro parecia d'esta vez aureolada de não sei que magestade, condigna do seu emblema.
A luz escassa de um lampeão da rua, batendo sobre a ave de Jupiter, que corôa a taboleta do estabelecimento, parecia dar-lhe reflexos, mais brilhantes do que os do costume.
Que era noite solemne para a casa, aquella casa que tem já dado que entender a ministerios e a emprezarios lyricos, não podia haver duvida.
Cá em baixo, os serventes do café fallavam a meia voz e mostravam no olhar certo ar de preoccupação, certa importancia no gesto, como se effectivamente se estivesse passando cousa de momento no andar de cima.
O café contrastava porém com a animação que se percebia nas salas da hospedaria.
Estavam desertos os logares d'aquella abafada quadra, em cujas paredes ainda então existiam, e ameaçavam perpetuar-se, reproducções, em lona, dos combates que restabeleceram a independencia da Grecia; a luz amortecida dos candieiros não dissipava as sombras dos recantos.
O marcador do bilhar cabeceava com somno.
Os bailes de mascaras tinham derivado d'alli até os homens politicos. N'aquella noite as discussões sobre a guerra da Crimeia, então na ordem do dia, travavam-se ao som das walsas e das mazurkas, nos theatros.
Não é pois n'este logar, agora melancolico e quasi lugubre, que eu pretendo demorar o leitor.
Subamos, e, por entre os criados que encontrarmos nas escadas e corredores, penetremos na sala d'onde provém o ruido de festa que já noticiamos.
O leitor por certo conhece o recintho. As suas particularidades architectonicas não requerem tambem as fadigas da descripção.
É um jantar de rapazes a festa, a que viemos assistir.
Chegamos, porém, tarde.
O fumo dos charutos ennevoa a sala e empana o fulgor das luzes; o jantar vae no fim, a desordem portanto no ponto culminante.
Ha já calices partidos, vinhos preciosos extravasados, convivas em todas as posições, algumas indescriptiveis.
A vozeria é atordoadora. A confusão póde dar uma ideia de Babel.
Tratam-se simultaneamente todos os assumptos; as transições fazem-se com uma rapidez, que surprende e embaraça os proprios interlocutores; attenção, que se desvie um segundo, é attenção perdida; não encontra depois já o dialogo onde o deixou; ás vezes a conversa generalisa-se; momentos depois, distribue-se em especialidades por diversos grupos; mais tarde, generalisa-se de novo; em certas occasiões, todas as bôcas fallam, cada um se escuta a si; n'outras algum orador consegue por instantes fazer-se escutar de todos, até que um áparte, um incidente, um gesto, restabelece a independencia primitiva. Dão-se tambem verdadeiros encruzamentos de conversas; o dos pés da mesa responde ao dito que ouve ao da cabeceira, emquanto que os intermedios se entreteem de outros objectos; é um baralhar de palavras, em que a custo se tira a limpo a expressão do pensamento.
Alli falla-se em litteratura e ouve-se, de quando em quando, pronunciar o nome de algum romancista ou poeta de vulto ou da moda; perto, discute-se politica e julgam-se n'um momento, e com a mais desenganada critica, as primeiras capacidades financeiras, diplomaticas e militares da época; conversam mais longe de aventuras de amor dois rapazes fronteiros e, atravessando-se diagonalmente com tão agradavel prática, o dialogo de outros dois exerce-se sobre modas de casacos; um grupo exalta-se, tratando assumptos de theatro lyrico e premeditando pateadas e ovações; juntos d'este, dois enthusiastas de hippicultura fazem a historia pittoresca de compras, vendas e manhas de cavallos. A propria philosophia allemã fornece alimento á animação dos discursos; e tudo isto interrompido de gargalhadas, de cantigas, de juras e exclamações em todas as linguas.
Seria igualmente difficil determinar o elemento commum dos individuos reunidos alli.
Ha-os das mais diversas condições; desde o joven padre, que põe a tractos a sciencia e a paciencia dos cabelleireiros para disfarçar, quanto for possivel, os vestigios da tonsura, até o official do exercito, todo possuido das branduras civilisadoras do seculo e para quem a mesma caça é occupação barbara e afflictiva da sensibilidade; ha-os das mais diversas idades, desde o collegial de hontem, ainda imberbe e embriagado com as primeiras commoções da vida de adolescente, até o velho, que, ingenuamente persuadido de que o tempo se esqueceu de lhe ir contando os annos, deixa passar a geração, contemporanea sua, e insiste em viver, entre rapazes, vida de rapaz; ha-os em diversas circumstancias monetarias, desde o capitalista, que vê correr descuidado a fonte dos seus rendimentos, com tranquillisadora confiança no inesgotavel manancial que a alimenta até á classe dos encostados, verdadeiros martyres da moda, cuja vacuidade de bolsa lhes constrange a imaginação a fabricar systemas quotidianos para os manter, embora á custa de humiliações n'aquella atmosphera, fóra da qual já não sabem respirar; ha-os de todos os graus de intelligencia, desde o escriptor applaudido e que, sem favor ou com elle, conquistou reputação nas lettras, até o analphabeto, cujas sandices são saudadas com gargalhadas que ninguem procura reprimir na presença d'elle proprio.
Finalmente, esta reunião de elementos, debaixo de todos os pontos de vista tão heterogeneos, é uma porção da sociedade, que pretenciosamente se decora com o titulo de elegante e para pertencer á qual é difficil fazer resenha dos requisitos necessarios; pois que nem a propria elegancia—na verdadeira accepção do termo—é dote generico dos seus membros.
O motivo do jantar… O jantar não tinha motivo e era esta outra circumstancia que o caracterisava. Um jantar póde muito bem ser motivo de si mesmo: sendo possivel d'elle dizer-se de alguma sorte, em linguagem philosophica, que tem em si a «razão sufficiente da sua existencia».
Na companhia encontraremos alguem já conhecido nosso.
E como, até agora, só tenho apresentado ao leitor tres pessoas, não será prova de grande perspicacia, da sua parte, adivinhar qual d'essas tres será.
Effectivamente é Carlos Whitestone um dos convivas e não dos mais sisudos.
Ficava proximo da cabeceira da mesa. Carlos era quem mais vezes conseguira encaminhar a um fito unico todas as attenções e modificar a assembleia a ponto de se lhe poder referir o conticuere omnes da Eneida;—verdade é que não tão completamente o fizera como o heroe troyano, pois nem tinha destruição de Ilion a descrever, nem a paciencia dos tyrios a escutal-o.
Carlos Whitestone passava por estar muito em dia com os boatos comicos e escandalosos, de que sempre e em toda a parte é tão sôfrego o paladar social.
Por isso o escutavam todos com prazer.
Sinto que não chegassemos a tempo de ouvir o principio da narração, que elle levava em meio.
—O nosso homem—dizia Carlos, accendendo um charuto no de um jornalista; seu vizinho—apesar do aviso que recebera, resolveu na melhor das boas fés…
—Então é a boa fé dos maridos—commentou a meia voz um padre, que, atrazado nas operações gastronomicas, investia com denodo contra um tymbale de pombos, ainda miraculosamente intacto, e acrescentou:—Não sei de outra, que a exceda.
—Regula por essa a dos amantes ingenuos—acudiu Carlos ao commentario.
—Mas é de menos consequencias—respondeu o outro.
—Silencio, padre Manoel!—bradaram algumas vozes—Vamos lá, Carlos; e depois?
—Depois—proseguiu Carlos—enfeitou-se, perfumou-se, aparamentou-se, frisou-se…
—E tingiu-se; que não esqueça—acrescentou do fim da mesa uma voz.
—E tingiu-se; sim—disse Carlos—e feitos todos estes aprestos, caminhou para a entrevista.
—E como se realisava essa entrevista?—perguntou um militar.
—De uma maneira muito singular;—proseguiu Carlos—o conselheiro, todas as noites, depois de pousar na relva o chapéo, a bengala e as luvas, trepava como um eschilo, pela faia que fica junto da varanda e…
—Ora! Impossivel!—exclamaram alguns, rindo.
—Palavra!
—Isso é contra todas as leis da mechanica, aquelle bojo…—principiou a dizer um estudante da Universidade.
—Pelo contrario;—atalhou outro—é exactamente o bojo que o faz subir. Lembra-te do principio de Archimedes. Os aereostatos… A quéda do conselheiro seria uma bella experiencia para um curso de physica…
—Divertida…—annotou uma voz.
—Como exemplificando as leis da quéda dos graves… um tão grave personagem—concluiu o primeiro.
Estes sujeitos guindavam o calembourg ao supremo grau da escala do espirito.
—Então? deixem fallar Carlos; e depois?—disseram alguns curiosos.
Carlos continuou:
—N'aquella noite, porém, estava reservada ao conselheiro a mais triste surpreza; ao entrar na espessura da folhagem, deu de cara com o outro.
—Com o Victor?
—Exactamente, com o Victor. Imaginem agora vocês o soberbo dialogo, que se seguiu ao encontro.
—Devia ser preciosissimo! Que harmonioso certame de rouxinoes!
—O conselheiro principiou talvez por dizer-lhe:
Tytire, tu patulæ recubans sub tegmine fagi Formosam resonare doces Amaryllida silvas
—Protesto contra o recubans. A posição de Victor era menos commoda.
—Mutatis mutandis, já se sabe.
—Ó padre Manoel, dize-nos como a tua latinidade exprimiria a posição em que estava o Victor.
—Não interrogues o padre. Não vês que elle está, como os antigos agoureiros, consultando as entranhas das aves? respeitemos a solemnidade do acto.
—Mas as consequencias, Carlos, quaes foram as consequencias?
—As consequencias foram as que vocês já sabem, o conselheiro…
N'este ponto, a narração de Carlos foi interrompida por o criado da hospedaria, que se aproximou d'elle para lhe entregar a carta.
—Com a sua permissão, meus senhores,—disse Carlos, preparando-se para abril-a.
—Bravo!—exclamou o jornalista—temos carta de algum Ecco impaciente.
—E un foglio a me lasció—cantarolou um dilettante, voltando as costas da cadeira para a mesa.
—É a proposta de capitulação de alguma Troya sitiada—disse o militar.
—Cheira-me a fumo de gambiarra e ribalda; temos intriga de camarim.
—Antevejo então uma descarga de bilhetes de beneficio, a que poucos escaparemos.
Carlos sorria, ao abrir a carta.
—Ó Carlos, olha que são perigosos para as digestões os sobresaltos de coração—notou o estudante de medicina.
—Socega; é um excitante a que já estou habituado—respondeu Carlos.
De repente tornou-se serio.
—Má nova!—disseram alguns.
—O caso complica-se.
—As exigencias da beneficiada sobem até o acrostico, querem ver?
—Não é isso; aposto que mais outro conselheiro trepa uma segunda faia, e d'esta vez vinga o collega, na pessoa de Carlos.
Carlos não os escutava já. Ergueu-se, aproximou-se do aparador, e escreveu no verso do bilhete, que recebeu, algumas palavras á pressa.
Emquanto fazia isto, os companheiros do festim, fingindo dictar-lhe a resposta, diziam:
—Meu anjo, se no céo…
—Vôo nas azas do amor…
—Qual outro Leandro, eu, naufrago…
—Minha Heloïsa; se o infortunio de Abeillard…
—Julieta, quando o rouxinol…
Carlos voltou para a mesa, depois de fechar a carta e de entregal-a ao criado.
Esforçava-se por manter nos labios o sorriso; mas o esforço era visivel, circumstancia que, como sempre, lhe annullava o effeito.
—Que é isso?—disse o militar, que lhe ficava defronte—respiraste a peste n'essa carta?
—O nosso Manrique terá de correr a salvar a sua Leonora das garras de um conde de Luna?—disse o dilettante.
—Ulysses voltou aos lares domesticos; o que vale por um mandado de despejo aos…
—Um capellista, menos attencioso, insiste pelo prompto pagamento de uma avultada conta de enfeites.
—Um dominó leva a sua ingratidão até…
—Já vão numerosas as hypotheses—disse Carlos, enchendo um calix de vinho e procurando conservar ás suas palavras o tom jovial do principio da noite; depois acrescentou:—Este bilhete era para me recordar…
—Ai! recordações!…
Te souviens tu, de même, De nos transports brulants…
—Para me recordar que era hoje o dia dos meus annos—concluiu Carlos.
—Devéras!
—É o que eu te digo.
Quan tu m'as dit: «je t'aime!» J'avais alors vingt ans.
—E estavas calado com isso.
—Se o ignorava! Quando o soubesse a tempo, não me teriam aqui.
—Então? Receber-nos-hias em tua casa?
—Tambem não. Costumo consagrar estes dias exclusivamente á vida de familia.
—Oh! oh! sentimentalismo!
—Britannico! Pés no fender, punch na mesa, Times na mão. E de quando em quando um monossyllabo rosnado, ou uma interjeição, que produz na garganta o effeito do acido prussico. Delicioso!
—Deve ser um céo aberto!
—Mas céo inglez, um pouco turvo de nevoeiros.
—E de carvão de pedra.
—Não esquecendo uma paraphrase de algum texto biblico.
—E umas variações vocaes sobre motivos do God save.
Carlos sorriu, respondendo:
—Creiam-me, de vez em quando, tem seus prazeres tambem um dia passado assim.
Eu quero acreditar que, dos circumstantes, muitos, se não todos, sentiam a verdade do que acabára de dizer Carlos, e tambem possuiam faculdades para apreciar estes intimos gosos de familia; mas envergonhavam-se de fazer tão claro, e em plena ceia de carnaval, tal confissão. Que querem? não está em moda trazer o coração á vista. É costume tratar, como ridiculas, todas as manifestações de sentimento; consideram-se como pequenas fraquezas que com milhares de outras, só se devem confiar na discrição das quatro paredes do nosso quarto.
Carlos porém não sabia dissimular; com verdadeira convicção e franca ingenuidade, dissera aquellas palavras, que lhe valeram allusões epigrammaticas ao que elles chamavam «respeitabilissima tendencia para pae de familias».
O bilhete, que motivára esta scena e que parecia haver impressionado devéras Carlos, era da irmã e dizia apenas:
«Charles.
É hoje o dia 19 de fevereiro. Fazes vinte annos. Julguei que seria desnecessario pedir-te para nos dares o prazer de te vermos comnosco. O pae esperava-te. Adeus.
Jenny.»
A este pequeno bilhete, Carlos respondeu apenas:
«Jenny.
Confiaste de mais na minha memoria; acredita que me esqueci. Não me succederia o mesmo de certo, se, em vez do meu, fosse o dia do anniversario de qualquer de vós. Fazes-me a justiça d'essa supposição, não é verdade? Agora não posso valer-lhe. Obriguei-me a seguir até o fim companheiros tão doudos como eu; e, quando os deixasse, não sei se ainda iria em estado de poder, sem profanação, sentar-me ao teu lado, á santa e patriarchal mesa de familia. Bem vês que nem vale a pena festejar o dia, em que veio ao mundo mais uma cabeça leve. Ámanhã te pedirei perdão… Como me lembrei tambem de fazer annos na segunda-feira de entrudo?!
Teu mau irmão
Charles.»
A final, após algumas explicações mais, um dos convivas levantou-se e empunhando o calix:
—Meus senhores, proponho que saudemos o anniversario de Carlos—bradou, em tom de brinde.
—Apoiado—responderam todos, imitando-o.
—Carlos—continuou o primeiro—bebo aos teus vinte annos! Contes pelos trezentos e sessenta e cinco dias, que se vão seguir ao de hoje, as paixões que fizeres nascer; e possas tu…
—Não se admittem longos speeches; olá! Bebamos!—disse uma voz.
—É sempre mais expressivo o gole que entra, do que a phrase que sáe—acrescentou outra.
—Até porque, devendo sempre dar-se a primazia ao mais sabio, é o vinho que a merece; pois é elle, n'este momento, o que mais sabe.
—Ora faze-nos o favor de nos poupar, ao menos agora, á difficil digestão dos teus calembourgs.
—Então? Bebamos!—insistiu o côro.
E o brinde foi geral.
Carlos correspondeu constrangido áquella saudação. Parecia-lhe estar vendo Jenny a olhal-o com uma expressão de amigavel desgosto; Jenny, a unica a fazer companhia ao velho negociante, que não pouco devia ter sentido a ausencia do filho. Durante toda a noite já não era para o pobre rapaz dissipar completamente aquella impressão penosa.
Apoderára-se de Carlos Whitestone um pensamento fixo, um quasi remorso de se ver alli; e este effeito, se não lhe distrahia completamente a attenção dos assumptos, que na sala se tratavam, enfraquecia-lhe a intensidade d'ella a ponto de nem já tomar parte nas discussões, nem o occuparem, por muito tempo, as ideias aventadas por os outros.
Á placa da camara escura, não preparada na officina photographica, é comparavel o pensamento, em occasiões assim. Lá se gravam ainda as imagens das cousas exteriores, mas, não as fixando a attenção, dissipam-se rapidamente, removidos os objectos que as motivaram.
D'ahi o tom distrahido e indifferente das raras observações feitas por Carlos no resto da noite, e a impaciencia de algumas respostas, que foi forçado a dar.
Entre muita cousa, que se disse na sala, eis o que elle ouviu, sem escutar; a qualquer d'estes assumptos não costumava Carlos, nas ordinarias disposições de espirito, recusar attenções, nem esquivar a concorrencia propria.
O jornalista, que ficava ao lado d'elle, interpellou-o pela preoccupação em que o viu.
Ora uma observação qualquer da parte d'este jornalista tendia fatalmente a degenerar em longa revista litteraria, que era difficil interromper.
—Que tem você, homem? O tal bilhete produziu um effeito quasi apopletico. Coragem! É negocio de coração? Alguma loura e nevada miss? hein? Oh! as inglezas! A desassombrada candura do seu suavissimo to flirting!—d'aquelle flartar, como, com tanta razão, traduz Garrett, á falta de melhor vocabulo.
E elle ahi principiava:
—Você já leu Garrett, Carlos? Que me diz d'aquellas Viagens, hein? Oh! é inquestionavelmente o melhor dos seus livros. Prefiro-as ás de Xavier de Maistre. Que eu não participo da admiração geral por Xavier de Maistre; é preciso que saiba. Pausa, durante a qual saboreou um gole de Xerez. Depois de alguma asserção mais arrojada, a pausa era de rigor.
Carlos, já se sabe, não redarguiu. N'este intervallo, pôde ouvir o conviva proximo, que dizia:
—Eu agora o que desejava era ter, pelo menos, trezentos contos de réis; ia d'aqui a Paris; depois…
O jornalista proseguiu:
—Xavier de Maistre inspirou-se de Sterne; é evidente; ficou porém a grande distancia d'elle. A Viagem sentimental, sim. Oh! A Sentimental journey. É um livro delicadamente temperado de uma certa especiaria philosophica, unica que se combina com vantagem á litteratura amena. O humour morreu com Sterne.—Pausa.—A demasiada philosophia gela a inspiração litteraria. Ahi tem Pope. É frio, é árido, é marmoreo.—Pausa.—Os poetas francezes não teem tanta tendencia para se deixarem philosophicar, permitta-me o neologismo. Victor Hugo, ás vezes… Qual prefere você, ó Carlos, Lamartine ou Victor Hugo? Victor Hugo é mais byroniano. E é notavel que fosse Lamartine quem cubiçasse o Childe Harold. Força de contrastes! Aquelle Childe Harold! aquelle Childe Harold! Que me diz você áquelle Childe Harold? É o unico poema verdadeiramente romantico, que se tem escripto até hoje.—Pausa.—Perdôo-lhe o Poor, paltry slaves! com que nos mimoseia. E note que eu não sou admirador cego do Byron.
Nova e maior pausa, durante a qual o orador accendeu um charuto.
Carlos continuava calado.
Percebeu então que n'um grupo vizinho se dizia:
—Quem tem uma bonita parelha é o visconde de Custoias.
—Melhor é a do Manoel Galveias.
E mais adiante:
—Perdão, menino; mas para mim a synthese não é uma mera condensação dos factos analyticos; a synthese precede a analyse, e dá a esta a força que vae buscar ao mundo interior, isto é, verte n'ella o immutavel, os principios evidentes; Kant…
O jornalista continuava:
—Eu não me regulo pela critica convencional. É o meu systema. Não me resolvo a entoar amen á opinião dos povos.—Pausa.—Por exemplo, tenho a sinceridade e a coragem de confessar que não me fascina Dante.
Grande pausa.
—Padre Manoel—dizia n'esta occasião, do fundo da mesa, um dos convivas, apontando para o calix, que levava aos labios—Ecce Deus qui lætificat juventutem meam.
O padre sorriu, mas não disse nada. Comia.
—Porque a final de contas—proseguiu o discursador—você ha de concordar commigo; Dante é um rapsodista quasi como Homero. Que é a Divina Comedia, senão o compendio das crenças religiosas d'aquelle tempo?
Pausa.
—O que ha a respeito da revolução carlista em Pamplona?—ouviu Carlos perguntar.
—Nada mais se sabe por emquanto, apenas que estão implicados alguns sargentos, cabos e paizanos—respondia outra voz.
E continuava a dissertação litteraria:
—O grande merecimento de Dante é o da fórma. Lá essa qualidade tem elle. Logo os primeiros versos:
Nel mezzo del cammin di nostra vite…
Acho porém dotes superiores em Boccacio.—Então que quer? É um espirito encarnado em corpo de menor vulto, mas… você já leu o Decamaron? Deve ler. É um livro excepcional. Ha n'elle alguma cousa que vae além do seculo, em que foi escripto. E esse é o signal supremo do genio. As imitações de La Fontaine são pallidas. Desengane-se. La Fontaine, a final, era contemporaneo de Luiz XIV. N'aquella côrte não podia existir a verdadeira inspiração. Abomino a litteratura d'esse tempo. Detesto Luiz XIV e o seu seculo.—Pausa.—Molière salva-se, mas porque? Porque o genero comico tem uma índole especial. Não é a inspiração que o regula; é a analyse, é a reflexão philosophica.
—Eu aposto—berrava um politico—que se os alliados se metterem a dar o assalto a Sebastopol, não fica um só vivo.
—Veremos—questionava outro.—Deixa Omer-Pachá occupar a estrada de Sebastopol a Simphirepol e depois fallaremos. Olha que elle já desembarcou na Eupatoria com quarenta mil homens.
O jornalista continuou:
—Ha um unico homem que admiro, em qualidades comicas, mais do que Molière, é Rabelais. Oh! o Rabelais é o meu livro! Ha tres livros que nunca tiro da minha banca de estudo, nem da minha mala de viagem.
—É a Biblia, os Lusiadas e o Paulo e Virginia. Já sei. É o costume—disse emfim Carlos, levantando-se, já impaciente e procurando subtrahir-se á torrente de perguntas, respostas, apreciações criticas, cotejos e citações, que saíam, em tom categorico, da palavrosa bôca do vizinho.
—Não ha tal—respondeu este, porém, tomando-lhe o braço e levantando-se igualmente.—Esses são a formula dos tres grandes sentimentos da alma—o da religião, da patria e do amor;—bem o sei; mas confesso-lhe, o que, por temperamento, mais me seduz é a pintura social e a analyse das paixões, e só tres homens as fizeram bem: Lesage, Richardson e Rabelais. A creação de Pantagruel e Gargantua é famosa!
—Quem dizes tu que tem uma garganta famosa?—exclamou, voltando-se, um dilettante, por traz de cuja cadeira os dois passavam n'aquelle momento..—Fallas de Ponti? Oh! que mulher! Que vocalisação! Que sentimento!
—Ahi tornas tu com a Ponti—disse um velho rapaz, pronunciado adversario da prima-donna e um da numerosa seita, que passa metade do anno a suspirar pelo theatro lyrico e outra a dizer systematicamente mal das companhias escripturadas.—És capaz de sustentar que vae bem na Norma. Se ouvissem a Rossi-Cassi…
—A Rossi-Cassi! Oh! por quem és, desalmado! Não sacudas reputações cobertas pelo pó do tempo! Pff! Que poeira! Vive da actualidade.
—Fallar na Rossi com esse enthusiasmo de conhecedor equivale a um assento de baptismo feito pelo menos em 1800.
—Nego—bradou embespinhado o velho rapaz.
—Parce sepultis—disse o padre.
—Lascia la donna in pace—trauteou outro dilettante.
Carlos e o jornalista tinham passado adiante. O jornalista ia já a fallar em librettos de operas, em Felice Romani, em Manzoni, no Ei fu! do Cinque maggio… etc., etc., etc…
Carlos foi retido agora pela mão de um rapaz, junto do qual tinham chegado.
—Aqui está quem nos póde informar—dizia o que o segurava.—Ó Carlos, dize-nos uma cousa: conheces a Laura Viegas?
—Não—respondeu Carlos, distrahido.
—Conheces por força. A filha do Viegas, d'aquelle brazileiro, que comprou a quinta do Pedroso.
—E então?
—Mas conheces? Bem. Que dote achas tu que terá aquella rapariga?
Carlos encolheu os hombros, significando a sua ignorancia e preparava-se já para seguir para diante, quando outro, a quem igualmente preoccupava esta sciencia dos dotes, o segurou por sua vez.
—Não tem que ver; o Viegas não lhe póde dar mais de nove contos.
—Triplique, e não lhe faz favor nenhum—disse, do alto da mesa, o padre, conseguindo passar esta nota por meio de uma briga travada entre os mais disparatados assumptos.
—Ora ahi tens!—disseram os disputantes, aceitando o auxilio, como de valia provada.
O padre limpava tranquillamente os beiços e enchia um calix de malvasia.
—Então diz o padre Manoel que o Viegas…
—O Viegas tem pelo menos…—dizia de lá o padre, elevando o calix entre os olhos e a luz, e revendo-se na limpidez do licor; e antes de completar a phrase, levou-o á bôca e despejou-o de um trago.
Depois continuou:
—Tem pelo menos … pelo menos…
Aqui, enxugou os labios e emfim concluiu:
—Sessenta e sete contos de réis.
—Ora!
Carlos passára para o outro lado da mesa, seguido ainda do jornalista, que lhe ía dizendo:
—É a questão do dia—O dinheiro—A litteratura resente-se…
E d'aqui passou a fallar de Alexandre Dumas, filho, de Emile Augier, de Ponsard … etc., etc… —Deixa-te d'isso;—dizia no ponto da sala a que os dois chegavam, um rapaz imberbe e ainda em estudos de preparatorios—a Emilia Victorina é outra qualidade de mulher. Ainda hontem, em casa do barão de Tavares, me encontrei com ella. Trajava de Maria Stuart. Era uma perfeita rainha, uma mulher distincta, esplendida.
—Foi, foi; já não é. Descobriam-se-lhe os primeiros estragos, quando em ti appareciam os primeiros dentes.
—A idade…—dizia outro.
—Ora a idade! a idade! A mulher tem sempre a idade que parece ter.
—Concordo; mas, depois dos quarenta e tantos annos, a mulher parece ter a idade que tem.
—Barbaro! Ó Carlos, que dizes tu?
—Digo que sim—respondeu Carlos, que nem attendera á discussão.
—Está esta creança do Duarte a affirmar que prefere a Emilia Victorina á Marianna Prazeres. —E prefiro, repito.
—Não sejas impio. Quem não acha admiravel aquella bonita cabeça da Marianna? —E a mão? Aquella mão comprida e delgada, onde as veias se desenham em azul; a verdadeira mão artistica, aristocratica.
—No assumpto «mãos», peço licença para citar a primeira…—das provincias do Norte pelo menos, a da Clementina Rialva—lembrou um individuo, a quem a conversa arrancou a uma quasi modorra.
—Apoiado!—entoaram muitas vozes.
—A proposito da Clementina Rialva—exclamou uma chronica viva de boatos do dia—sabem que o Chico da Lousã, sempre a tira por justiça?
—Devéras?!
—Asseverou-m'o hontem o Brito, que, como sabem, é todo d'elle.
—Terrivel catastrophe!
—Deixa lá. O Chico o mais que quer é empregar-se. Ora o Rialva, pae, tem influencia e, feitas as pazes do estylo…
—Sim, as pazes sentimentaes dos quintos actos dos dramas.
—Que influencia tem o Rialva?—perguntou, encolhendo os hombros, um mallogrado aspirante á eleição popular.
—Não. Está feito! O cunhado é empregado na secretaria do reino…
—E o ministerio deve-lhe serviços.
—Estás enganado. Foi moda fallar-se ahi muito nos serviços eleitoraes do Rialva; pois eu digo-vos que elle nem quatro votos arranjou ao Roboredo.
—Como não arranjou? Ó menino! Pois quem levou lá o Roboredo?
—Quem levou lá o Roboredo, foi…
—Eu te digo, Pires; elle teve em tempo alguma influencia no ministerio, mas depois de um certo emprego na alfandega que pediu para o sobrinho, e que não obteve, abandonou a regeneração…
—Que sobrinho? O que nós em Coimbra chamavamos o gigante Polyphemo? Oh que alarve!
—Sempre foi um homem, que teve a habilidade de concluir o curso, e que nunca se pôde conformar com a existencia dos antipodas. Dizia elle que até lhe fazia mal pensar na posição incommoda, em que haviam de viver esses pobres diabos, se existissem…
—E um dia em que elle…
Unisona e estrepitosa gargalhada, partindo de um grupo, que estava já em pé no outro extremo da sala, interrompeu a historia.
Todas as attenções e todos os olhares convergiram para alli.
Eram quatro os rapazes que riam e riam até lhes caírem as lagrimas dos olhos. Junto d'estes, o quinto mostrava, em certo ar constrangido, poucas disposições para expansão igual.
—É impagavel este homem!—dizia um dos que riam.
—Que foi? que foi?—perguntavam os que não faziam parte do grupo, rindo já com anticipação tambem.
O dos ares constrangidos respondeu:
—Não façam caso; são doudos.
—Que foi? digam—insistiam todos na sala.
—É aqui o Claudio Pires, que fez uma das suas descobertas.
—Eu disse…—tentou este interromper.
—Silencio!—bradaram muitos a um tempo.
—O Claudio!—continuou um dos que mais ria—ouvindo aqui o Lourenço fallar com elogio em um systema de comportas que viu no estrangeiro, observou-nos que havia de se dar bem por lá, porisso que nada se lhe accommoda melhor com o estomago, depois de jantar, do que as comportas.
—Comportas de marmellos, ou assim uma cousa, é o que eu disse.
A justificação foi suffocada por um côro geral de gargalhadas.
—O barbaro era capaz de roer os diques dos Paizes Baixos e sacrificar a Hollanda a uma geral inundação. —Que terrivel capricho estomacal!
—Vejam do que está dependente a sorte dos imperios! Esta escapou a Volney! E os ditos succediam-se, e cruzavam-se os epigrammas, e a confusão subia de ponto com isto.
Até que emfim uma voz dominou o tumulto.
—Reparem que são onze horas e que é tempo de fazermos a nossa entrada solemne nos bailes de mascaras.
Era o velho rapaz que fallava, e erguendo-se da mesa, exclamou, enchendo o calix:
—Ás nossas conquistas d'esta noite!
—Apoiado!—disseram todos, imitando-o.—Ás nossas conquistas.
E seguiu-se tal arrastar de cadeiras, que parecia uma tempestade.
Passados alguns minutos, desembocavam do portal da Aguia os joviaes companheiros, depois de um jantar, que durara oito horas.
Os passos de muitos resentiam-se do emprego d'esta terça parte do dia.
Um dos convivas, que estivera até alli quasi sempre silencioso, tomou então o braço de Carlos e, apoiado n'elle, caminhou, com movimentos mal seguros, por o largo da Batalha, dizendo em tom confidencial e quasi commovido, estas palavras, que ia entremeiando com prolongadas aspirações no tubo do volumoso cachimbo.
—Carlos, tu és meu amigo; talvez o único amigo que eu tenho… Por isso vou confiar de ti a ultima das impressões que eu revelei em verso… Eu gósto de fallar d'isto só com quem me entenda. Os poetas precisam de um coração para ecco. Almas de sensitiva…
Apesar da intimidade, em que ia feita a confidencia, muitos dos que a ouviram acercaram-se d'elle, porque tinha certa nomeada o engenho poetico e improvisador do que fallava assim.
Alguns porém já tinham travado conhecimento com varias mascaras desgarradas, que encontravam caminho do theatro. Dois seguiam cantando a plenos pulmões o duetto da Lucia:
O' sole più rapido a sorger t'apresta
O poeta confidencial principiou a recitar com certo enthusiasmo quasi selvagem, o seguinte hymno ao tabaco, o qual, devemos confessar, não era muito para produzir ecco nos corações:
No centro dos circulos
De nuvens de fumo,
Um deus me presumo,
Um deus sobre o altar!
Nem d'outros thuribulos
Me apraz tanto o incenso,
Como o d'este immenso
Cachimbo exemplar!
Em divans esplendidos,
Cruzadas as pernas,
Fuma, horas eternas,
O ardente Sultão.
Subindo-lhe ao cerebro
O magico aroma,
Esquece Mafoma,
Houris e Alcorão.
Longe, oh! longe o opio,
Que os sonhos deleita
Da misera seita
Dos Theriakis!
Horror ao narcotico
Que vem das papoulas!
E ao que arde em caçoulas,
No altar do Caciz!
Que a raça gentilica
Das zonas ardentes
Consuma as sementes
Do arabio café.
Despejem-se as chavenas
Da atroz beberagem
Da côr do selvagem
Da adusta Guiné.
E a tal folha exotica,
Delicias da China,
Por nossa má sina
Trazida de lá,
Servida em familia,
N'um morno hydro-ínfuso?…
Anathema ao uso
Das folhas do chá!
Nem tu, ó alcoolico
Humor dos lagares,
Terás meus cantares,
Meus hymnos terás.
Embora das amphoras
Vasado nas taças,
Aos outros tu faças
A lingua loquaz.
Cerveja britannica,
De furor espuma!
De cousa nenhuma
Me podes servir.
Quando ouço do lupulo
Gabarem proezas,
Ás bôcas inglezas,
Desato-me a rir.
Nem venha da camphora
Prégar maravilhas
O das cigarrilhas
Famoso inventor.
Raspail é scismatico
E eu sou orthodoxo,
O seu paradoxo
Não me ha de elle impôr.
Meu canto é da America,
Paiz do tabaco,
Perante o qual Baccho
Seu sceptro partiu.
A Europa, Asia, e Africa
E a terra hoje toda
Este heroe da moda
De fumo cobriu.
Até na Laponia,
Da gente pequena,
Se fuma; e no Sena,
No Tibre e no Pó,
No Volga e no Vistula,
No Tejo e no Douro;
Que immenso thesouro
Se deve a Nicot!
Meus áridos labios
Mais fumo inda aspirem
Que os parvos suspirem
Por beijos, aos mil.
Não quero outros osculos,
Não quero outra amante.
Qual mais doudejante
Que o fumo subtil?
Tornadas Vesuvios,
As bôcas fumegam.
De nuvens que cegam
Vomitam montões.
Fumar! Oh delicias!
Prazer de Nababo!
E leve o diabo
Do mundo as paixões!
—Bravo!—disseram quantos o escutavam, devéras enthusiasmados com a musa do recitador.
O proprio Carlos sorriu, menos preoccupado já. Principiava a dissipar-se-lhe a nuvem.
—Quem compra uma senha?!
—S. João! quem quer?
—Doze vintens, meus amos, doze vintens.
Com estes analogos pregões caiu um bando de negociantes de senhas sobre os recem-chegados da Aguia, que trataram de obter bilhetes da melhor maneira possivel. Cêdo entravam no salão do theatro, onde já centenares de pessoas morriam de calor, de asphyxia e de tédio; e eram trilhadas, apertadas, esmagadas quasi, aos encontrões dos mascaras, arrebatados n'um galope vertiginoso.
O leitor, que todos os annos costuma saturar-se de fastio alli tambem, com boa vontade me dispensará de o constranger a repetir mais outra vez a operação, recordando essas horas de insipidez, a que se sujeita, sob pretexto de gosar o carnaval no Porto, e para fazer o que todos fazem;—uma das mais poderosas razões dos nossos actos na vida.
Pedindo venia por tanto tempo o haver demorado, em diversão fóra dos seus habitos, provavelmente mais pacificos—o que fiz só por a necessidade que tinha de mostrar em acção o caracter do nosso heroe e exemplificar o seu systema de vida e sua companhia habitual—concordo em que nos retiremos e vamos a scenas menos agitadas do que estas, que nem consolam, nem divertem.