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Uma Lágrima de Mulher/I/XVII

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Entretanto, as nuvens negras cresciam no céu, como os fantasmas crescem na sombra, como remorso cresce no coração, como a ferrugem cresce no ferro e como a úlcera cresce nos pulmões.

O mar, cada vez mais encarapinhado, quebrava-se de encontro à rocha, salpicando-a de cuspiduras espumosas e grossas, como as de um ébrio.

Com este salivar a pedra se tornava mais e mais escorregadia. Já o pé não encontrava resistência.

Peito a peito, braço a braço, lutavam os dois homens; ora escorregava um e se firmava no adversário: ora cambaleava o outro, e restabeleciam o equilíbrio.

A luta continuava.

Abraçaram-se mais. Estreitavam-se com o frenesi de dois amantes moços que se encontram depois de longa ausência.

E lutaram!

De repente, deslocou-se o ar com a detonação da queda de um só corpo.

Foi uma queda para dois; rolavam formando um só vulto.

Lembrava aquilo uma besta informe nas agonias da morte: os dois formavam uma fera.

Era a mocidade fundida na cólera de um velho. A força dos vinte anos e a cólera dos cinqüenta eram o motor dois do bruto negro, que engatinhava, rolava e se torcia na lisura da pedra, um monstro marinho, fora d’água.

A claridade fosfórica do mar, a besta movia-se em todos os sentidos e tomava novas proporções; parecia fantasticamente ora crescer, ora diminuir.

A boca espumosa do velho esfregava-se pela cara do moço, segredando-lhe em tom terrível e quebrado pelo cansaço estas palavras:

— Pois morrerás! Miserável!...

E mordiam-se.

— Pois morrerás!

Procuravam matar um ao outro.

Lutavam!

E a rocha cada vez mais escorregadia, o céu mais negro e o mar mais bravo.

A luta tendia a enfraquecer: a fera ia sossegando; a massa bruta dilatava-se: a mole negra parecia diluir-se.

Era o cansaço.

Desfaziam-se como uma nuvem negra no horizonte.

Como um urso enorme e velho, arrastavam-se surda e vagarosamente para a borda do precipício.

Miguel se apercebera disso e reagiu: com um esforço supremo lograra tomar sob si o velho, ficando de gatinhas sobre ele. Tinha um aspecto feroz; o sangue escorria-lhe por entre os dentes e pelas ventas; a posição, como o olhar, eram irracionais. Nesta atitude, ia atirar-se à garganta do adversário, quando este, concentrando o resto das forças, reagiu por sua vez: com um empurrão expeliu de si o moço.

Miguel rolou pela pedra até segurar-se nas asperezas das bordas do precipício.

Maffei não lhe dera tempo para mais, de um salto deitou-se ao comprido no chão, e engatinhando com ligeireza de tigre, agarrou-o pelas costas.

Cinqüenta pés os separavam do mar, e nesse ponto a pedra era inteiramente íngreme, quase cavada.

Miguel torcia-se todo nas mãos do velho.

De repente, um grito agudo e rápido sucedeu a uma gargalhada surda, estalada pelo cansaço. Gargalhadas como só sabem dar um velho mau ou uma mãe doida.

Maffei, e bruços sobre a roda, via tranqüilamente rolar pelo precipício o corpo ensangüentado de Miguel. Um sorriso cansado e triunfante encrespou-lhe os lábios esfolados, ao ouvir o ruído cavo de um corpo que cai na água.

A tempestade, que se preparava ameaçadora, desabou encerrando o espetáculo; e o mar, contente de sua presa, gargalhou com seu rir de espumas.

Começou a chover copiosamente.

Tranqüilo, como nos seus dias mais tranqüilos, o velho levantou-se, sacudiu a roupa molhada e pôs-se a andar para casa silenciosa e pacificamente, como uma menina quando volta do banho do mar.