Uma Lágrima de Mulher/III/VI
Continuava Sombra da Noite a discorrer por diante, enquanto Miguel, sem sequer se aperceber disto, fitava, encostado, imóvel, aos varões o jardim, a claridade colorida e alegre das vidraças de Rosalina, cujo aspecto festivo contrastava com o sombrio das grades negras e lustrosas do cárcere interior do seu espírito.
Ignorado, corria-lhe em silêncio, dos olhos, o pranto morno e copioso.
Por que chorava ele, tão bom e generoso, ao contemplar a fortunosa opulência da sua querida amiga? Não a desejava por acaso feliz? Não queria para ela todos os bens da terra e todas as bênçãos do céu? Sim! mas é que no meio da opulência daquele orgulhoso viver se haveriam de humilhar a singela blusa e a rabeca o artista.
Desgraçado! Chorava porque era moço, porque não tinha vivido bastante para saber que a vida é uma enorme decepção; chorava porque Rosalina era o seu primeiro amor, e o primeiro amor do homem é tão selvagem e feroz como o deve ter sido o do primeiro homem da natureza. Chorava porque a estrela que o conduzia na existência tingia-se de cores mundanas, em perda do celeste azul do seu fosforecer.
Era aquele chorar de Miguel um carpir triste e desesperançado sobre dois túmulos ainda mais tristes, sobre o de Rosalina e sobre o seu, porventura menos valioso que o dela; era chorar sobre o túmulo das recordações e sobre o das esperanças, o passado e o futuro, o nada e o nada.
E que mais é o nosso viver nesta espécie de mundo, senão uma ilusão entre dois nadas: o presente e o futuro? Dois nadas insondáveis e obscuros que fecham uma hipótese, chamada presente. Ontem, saudades nebulosas; hoje, mentiras e esterilidades; amanhã, sonhos mal contornados. Eis a vida!
E assim cismava Miguel, enquanto o companheiro, sem lhe dar pela indiferença, continuava a papaguear, acrescentando:
— Não seria eu capaz de morar aqui, nem que me cobrissem de ouro! Meter-me com os demos de almas penadas, que...
Nisto avivou-se e repente a luz do quarto de Rosalina.
Miguel endireitou-se todo como uma cobra e prestou atenção. Sombra da Noite calou-se de todo e ficou também a olhar para a janela iluminada, dizendo baixinho, depois de algum silêncio:
— Entrou para o quarto...
Miguel chegou-se dele e disse-lhe imperiosamente:
— Deixe-me só e vá esperar-me na tasca. Leve consigo Castor e tome dinheiro para o que for necessário.
Sombra da Noite retirou-se silenciosamente.
O artista continuou imóvel e abstrato a fitar a janela; depois, como se quisesse falar àquela claridade risonha e colorida que de lá vinha, ergueu inspirado o arco, colou com frenesi a rabeca ao ombro, e os sons encantados, com que dantes comovera a sua amada, rebentaram plangentes e harmoniosos, como um coro de beijos e suspiros, soluçando pelos anjos.
Estaria ela no quarto?
Estava, com efeito, pois essa era a noite, justamente a mesma em que Rosalina, concertada com o cavalheiro de bigodes pretos, abandonava os salões da dança, para refugiar-se voluptuosamente extenuada nos seus aposentos, e aí ouvira o murmurar choroso de uma harmonia esquisita e conhecida.
Era essa mesma a noite, mesma era também a música, a rabeca a mesma, mesmos o arco, o artista, o braço, a inspiração; só Rosalina! só ela não era a mesma, que dantes se arrebentava com aquela música bela e inocente como o amor de duas crianças.