Uma Lágrima de Mulher/III/VII

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Miguel continuava a tocar inspirado.

A luz da alcova de Rosalina amortecia-se e as horas da noite foram-se sucedendo, tristes, frias, uniformes e silenciosas como as brisas do outono.

Os últimos arrancos do instrumento confundiram-se com os primeiros estremecimentos da aurora. Quando Miguel chegou à tasca, era já dia alto; estava deserta a praia de pescadores, que não tinham ainda voltado da pescaria.

Ligeiro enfiou-se o artista pelo quarto onde se acomodara Sombra da Noite, depôs num canto a rabeca e precipitadamente escreveu num pedaço de papel ordinário o seguinte:

"Rosalina:

Não morri e desejo viver só para te amar. Estou resolvido a fazer tudo o que me ordenares, até mesmo a minha própria desgraça, se ela a ti for necessária; em troca disso, peço-te, com a alma de joelhos, meu amor, que me concedas amanhã à meia-noite, uma entrevista. O teu lenço, atado ao balcão da tua janela, será o sinal de que ainda te mereço alguma coisa. O teu escravo - Miguel Rizio. "

Escrito, dobrado e subscritado este bilhete, Miguel acordou Sombra da Noite, que dormia a somo solto.

— Entrega, disse-lhe ele, do melhor meio que te acudir, hoje à noite, esta carta a Rosalina, se não lhe puderes falar, faze ao menos porque lhe chegue às mãos, mas sem falta hoje! Entendes?

— Descanse! que será entregue, disse Sombra da Noite, metendo o papel no bolso.

A missiva de Miguel chegou de efeito às mãos de Rosalina, e, como vimos no *em que justamente a deixamos, ela, acendendo ao pedido do ressuscitado amado, atara à meia-noite, como ele lhe pedira, o seu lencinho de rendas francesas no marmóreo balcão da janela.

Feito o sinal, Rosalina voltara a reclinar-se tranqüilamente no divã, como quem se submete ao aborrecimento de qualquer cerimônia política; e, nessa dúbia postura, mareando com o pé o compasso dos segundos, dobrava e desdobrava o papel, que lhe chegara às mãos por intermédio de Sombra da Noite.

A pêndula marcara afinal a hora da entrevista. Um silêncio perfumado e voluptuoso recendia em torno de Rosalina, como uma auréola de desejos.

Há sempre nos aposentos de uma mulher bela um não sei o que de indizível e sedutor, que encanta e embriaga; uns perfumes de cabelos, de flores e de carnes.

Pode-se chamar a esse fluído esquisito o perfume do amor.

A claridade coalhada do globo de alabastro, a tepidez preguiçosa da atmosfera, o macio surdo do tapete, tudo tudo juntamente desatinava e endoidecia os sentidos.

Rosalina, encantadoramente reclinada no divã, pendente para trás a cabeça, mole, úmido o olhar, as narinas sôfregas, os lábios entreabertos e ressequidos, comprazia-se em ver, espiando pelo franjado sombrio das pestanas, o arfar voluptuoso das carnes macias do colo. A garganta carnuda, pálida e estendida, tinha uns tons frescos e uns estremecimentos de carnes gordas de criancinha de peito; as covinhas dos cotovelos, os saltinhos das carnes dos dedos, as unhas cor-de-rosa, os dentes cor de leite, os cabelos lânguidos, serpenteados e frouxos, a respiração comprimida, a língua úmida e vermelha, como um pedaço de carne viva e ensangüentada, em cuja pontinha refletia a brancura ferina dos dentes, tudo, enfim, levantava com explosão a chama doida e selvagem dos sonhos.

E, todavia, ela estava quieta e letárgico, nesse quase sonambulismo, que não é bem indiferença, mas um esquecimento de si mesmo, um doce abandono de forças, comparável ao estado comatoso, que sucede aos prazeres cansativos, nesse dolce far niente de uma mulher rica, que é mais formosa para os outros do que para si, quando, súbito, no quadro escuro da janela, aberta de par em par, se desenhou o busto desgrenhado de Miguel.

Vinha transformado e pálido como uma caveira.