Viagem ao norte do Brasil/I/II
CAPITULO II
Compõe-se o homem de espirito e corpo; devendo zelar em primeiro lugar aquelle como mais nobre e depois este; pareceu-nos de muita razão cuidar a principio nas Capellas para n’ellas abastecer o espirito com a palavra de Deos, e do SS. Sacramento, e depois no que diz respeito áo temporal.
Assim como uma terra, ainda inculta não dá grande contentamento á seu dono, e si elle não tivesse pão, que lhe viesse d’algures, por certo que morreria de fome, assim tambem era sem commodidades o lugar escolhido para a edificação da fortaleza de São Luiz, n’uma ponta de rocha, habitada outr’ora por selvagens, que a cultivaram a seu modo, ou para melhor dizer a esterilisaram, visto que depois de tres annos faltaram-lhe forças para produzir couza alguma, alem de matto agreste, sendo necessario descançar por muitos annos.
Foi a causa dos nossos soffrimentos no principio, pois apenas tinhamos farinha de mandioca para fazer mingau, isto é, uma especie de papa com sal, agua e pimenta, chamada pelos indios Yonker, e assim passavamos a vida.
Quem não podia comer esta farinha secca, desmanchava-a n’agoa, e assim alimentava-se com ella.
Os que em França somente usavam de comidas delicadas, n’aquelle paiz apenas achavam legumes bem agradaveis.
Conto isto para louvar a paciencia dos francezes em serviço do seo Rei, para destruir essa macula, que ordinariamente lhes lanção, de impacientes, imprudentes e desobedientes, porque na verdade eu só vi o contrario.
Os que desejarem muito ir para aquelle paiz, não se admirem de ouvir fallar em tanta pobresa, porque não soffrerão mais do que nós, visto a terra ir melhorando diariamente, e os viveres se augmentarem gradualmente.
Para remediar esta falta, resolveo-se mandar pescar peixe-boi[NCH 5], á 30 ou 40 legoas distante da ilha: estes peixes tem a testa como os bois, porem sem cornos, duas patas adiante debaixo das mamas, párem filhos como as vaccas, nutrem-nos com seo leite, mas a cria tem a propriedade notavel de abraçar a mãe pelas costas com suas patinhas, e nunca as deixa embora mortas, pelo que alguns são agarrados vivos, e assim trazidos para a Ilha: são muito delicados.
Sirva isto d’instrucção aos meninos, cumprindo a Lei de Deos, que manda honrar Pae e Mãe, isto é, amar e respeitar, e de advertencia aos catholicos para ficarem firmes e unidos no seio da Igreja, sua Mãe, d’onde perseguição alguma as possa arrancar, amando todos os bons francezes, seo Rei e sua Patria.
São apanhados estes peixes-bois nos pastos, ou nas hervas que crescem nas praias.
Vão os selvagens remando mansamente suas canôas por detraz d’ellas, atiram-lhe duas ou tres setas, e apenas mortas são puxadas para terra, retalhadas e salgadas.
Coisa igual acontece aos glutões, que no meio dos banquetes são surprehendidos e n’um instante lá vão para o inferno.
Encontra-se o sal necessario ás commodidades da vida, na distancia de 40 legoas da Ilha, em terrenos arenosos, onde se mostra naturalmente, em forma de gelo, duro e luzente como cristal, por occasião do fluxo e refluxo do mar, e quando este se retira o sol o cresta e é melhor que o sal de França e de Hespanha.
È necessario apanhal-o antes da estação das chuvas para que ellas lavem o lugar onde elle estava.
Chegado a este ponto, dispersou-se uma parte dos francezes pelas aldeias, conforme o costume do paiz, que é ter Chetuasaps, isto é, hospedes ou compadres, aos quaes por pagamento se dava generos em vez de dinheiro.
Esta hospitalidade ou compadresco é entre elles muito intima, porque estimam seos hospedes, como se fossem seos proprios filhos, vão caçar e pescar para elles e conforme o seo costume entregam-lhes as filhas, que desde então se chamam Maria, e tem por sobrenome o do Francez a quem se ligam, de sorte que dizendo-se Maria de tal sabe-se logo de quem é concubina.
Com certesa não sei porque dão este nome ás concubinas: mostrei um certo dia a um selvagem um registro da Mãe de Deos, e lhe disse Koai Tupan Marie, «eis a Mãe de Deos,»
Notas Criticas e Historicas sobre a viagem do padre Ivo de Evreux por Mr. Ferdinand Diniz
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Ao norte do Brazil e no interior da Goyanna havia então prodigiosa abundancia d’esta especie de fóca, cuja carne era muito saborosa: chamam-na os portuguezes peixe-boi, e os indios manati. Ainda hoje os habitantes ribeirinhos do Amazonas e do Tocantins nutrem-se com a excellente carne d’este peixe. (Vide Osculati, America equatoriale). Claudio d’Abbeville lhe deo o nome de Uraraura.