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Viagem ao norte do Brasil/I/III

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CAPITULO III

Da construcção do Forte de São Luiz, e do interesse dos selvagens em carregar terra.


Chegado o tempo proprio de trabalhar nas fortificações da praça designada á defeza dos francezes, fincada a madeira segundo o plano dado para servir de cercadura ao Forte, e de sustentar as terras, mandou-se então avisar por todas as aldeias da ilha e da provincia de Tapuytapera,[NCH 6] que viessem Indios uns após outros conduzir a terra tirada dos fossos para os terraços das cortinas, esporões e plata-formas, depois cobertas por grandes e grossas Apparituries, «mangues» arvores duras como ferro e incorruptiveis; de forma que seria contra ella quasi inutil o tiro do canhão, e mui difficil a escalada: assim se disse e assim se fez: de todas as aldeias pouco a pouco vinham os selvagens com suas mulheres e filhos, trazendo viveres para o tempo, que calculavam demorar-se no trabalho, e sempre debaixo das ordens dos seos Principaes, costume que geralmente observam, trazendo-os sempre na frente da Companhia, fazendo-lhes a natureza conhecer, que o exemplo dos superiores anima infinitamente os inferiores.

Mais do que nós são elles fieis á natureza, pois vemos o contrario na Republica Christã, d’onde provem os erros e a corrupção dos costumes, porque ainda que devamos prestar attenção somente á doutrina e não entregarmo-nos a má vida, os fracos fazem o que querem sem cuidar do máo nome, que adquirem.

Apenas chegavam estes selvagens entregavam-se ao trabalho com incomparavel dedicação, mostrando na voz e nos gestos admiravel coragem, parecendo antes que iam á um festejo de casamento do que para o serviço, rindo e brincando uns com os outros, correndo dos fossos para os terraços com uma especie de emulação para vêr quem dava mais caminhadas, e conduzia maior numero de cestos de terra.

Notareis agora, que não ha ninguem no mundo mais infatigavel do que elles, quando de boa vontade trabalham em qualquer coisa; não cuidam em comer e beber com tanto que tenham á sua frente o seu chefe, e quando encontram difficuldades, por maiores que sejam, riem, cantam e gritam para se animarem reciprocamente.

Se ao contrario o tractardes com asperesa e ameaças, nada farão que preste, e conhecendo o seo natural nunca constrangem seos filhos e nem seos escravos, e antes os governam com doçura.

O francez, especialmente os nobres, tem igual naturesa; não soffrem constrangimento, porem não duvidam expôr sua vida, afim de comprirem as doces ordens dos seos Principes: bello argumento para convencer os que governam, que mais vale a doçura e clemencia do que o rigor e a força, respeitando assim o natural da Nação francesa.

Não trabalhavam somente os homens e sim tambem as mulheres e os filhinhos, aos quaes elles davam pequenos cestos, para carregar terra conforme suas forças.

Vi muitos meninos, apenas com dois ou tres annos d’idade, fazer a carga com suas mãosinhas e não ter força para conduzil-a.

Perguntei a alguns velhos porque consentiam que trabalhassem os meninos, servindo isto para distrahir os que os vigiavam, especialmente seos paes, que assim não podiam adiantar a tarefa, achando-se elles sempre em perigo, ou por estarem nùs apezar de tenrinhos, ou por poderem ser feridos pelo desabamento de algum pedaço de terra, ou por alguma pedra, que se desprendesse do monte.

Respondeo-me assim o interprete. Temos muito prazer vendo nossos filhos comnosco trabalhando n’este Forte, para que um dia digam á seos filhos e estes a seos descendentes «eis a Fortalesa, que nós e nossos paes fizemos para os Francezes, que trouxeram Padres, que levantaram casas a Deos, e que vieram defender-nos de nossos inimigos.»

É mui commum esta maneira de communicar á seos filhos o que entre elles se passa, já que por escriptos não podem fazel-o aos vindouros, e ir assim á posteridade.

Para nada esquecer, como que gravam na memoria as occorrencias, e só d’esta maneira se pode explicar como contam muitas coisas passadas nos seculos, em que viveram seos avós, ou no tempo da sua mocidade: vão passando por esta forma o que sabem a seos filhos, como ainda diremos ádiante.

Desejaria muito, que nossos Paes assim se empenhassem para gravar no coração de seos descendentes...

... mente e em abundancia, os selvagens lançam fogo nos espinhaes e moutas, onde se recolhem esses reptis.

Ha de tres qualidades:[NCH 7] uma de terra, que mora nos mattos; outra de agoa doce, que mora nas margens dos rios e lugares pantanosos: a ultima, é do mar, e a que vem pôr seos ovos na areia, que fica bem perto, e onde os occultam com geito. Parece-se muito com os ovos de galinhas, menos na casca, que não é tão dura, e sim mais flexivel e molle, nem tão grossos e agudos, e sim mais redondos, porem muito saborosos, quer comidos na casca, quer de outra qualquer maneira.

Nas margens d’este rio encontram-se arvores medicinaes, muito melhores do que as que se achavam commummente, como eu e muitos dos meos companheiros verificamos: alem d’esta virtude, são mais fortes que as do Levante, mostrando a experiencia que uma onça d’estas faz tanto effeito como duas d’aquelle paiz. Sendo bem preparadas certas composições são excellentes laxantes, e assim conservam o corpo para seo beneficio. Existem bellos prados, largos e compridos á perder de vista, que produzem herva fina e macia. Encontra-se a piteira, de cujos productos se fazem na China muitos tafetás: crescem seos ramos como a cauda de um cavallo, tem a bellesa da seda e é ainda mais forte. A terra é forte e feraz e produz com mais certesa, que a do Maranhão, ou de suas visinhanças, e dizem-me que dá duas colheitas annualmente. As florestas são altas, virgens, e ricas de muitas especies de madeiras, quer proprias á tincturaria, quer á medicina, e asseguram-nos os selvagens, que lá moram, a existencia ahi do pau brazil. No meio d’estas florestas, ha muitos viados, capivaras, cabras, vaccas bravas[NCH 8] e javalis, e em poucas horas matareis tantas quantas precisardes, e para que não me accusem de hyperbolico, invoco o testemunho dos que viajaram pelo Miary, e hoje se acham em França: se lerem isto, dirão que são estas as informações, que me deram, e que os selvagens, remadores das suas canoas, lhes traziam tanta caça, que d’ella não sabiam o que fazer.

Contou-me um fidalgo, que andou n’essa viagem, haver morto com um só tiro tres javalis,[NCH 9] o que não poderia acontecer se estivessem espalhados.

Ha muitas arvores carregadas de cortiço de mel de abelhas, as quaes são mais pequenas e franzinas do que as nossas, porem mais industriosas, pois fabricam mel excellente, liquido, e tão claro como agua potavel pura, guardado em pequenas celulas de cera da grossura da casca de um ovo, similhantes na forma á nossas garrafinhas de vidro, e penduradas com alguma ordem n’uma arvoresinha de cera, que se acha encostada ou presa pelos ramos ao tronco, ou nas cavidades das arvores das florestas ou dos prados.

Com este mel fabrica-se vinho muito forte e quente para o estomago, similhante na côr e no gosto ao de Canaria. Nossa gente, quando por lá andou, fez algum vinho, e com elle embebedou-se.

Existe tambem ahi uma especie de mel, impropriamente, assim chamado, porque é tão azedo, como vinagre, e fabricado por outra especie de abelhas.

Alguns dias depois que ahi chegou nossa gente, procuraram os Tabajares,[NCH 10] e suas habitações: encontraram, não os que procuravam, e sim os Aiupaues,[NCH 11] e caminhos recentemente abertos.

Vendo que diminuia a farinha, da qual apenas poderia ter quanto bastasse para regressar a Maranhão, essa mesma muito pouca, deliberou regressar com os seos selvagens, deixando ahi somente dois escravos Tabajares, a quem deram farinha para um mez, e diversos generos, promettendo-lhes liberdade com certesa, e boa recompensa si fossem procurar e achassem seos similhantes, o que acceitaram e cumpriram aproximando-se das suas aldeias e gritando para não serem flexados, visto andar esta Nação em guerra com uma outra visinha. Aos seos gritos accudiram muitos, aos quaes contaram o que traziam, como estavam em Maranhão os francezes bem fortificados, que entre elles se achavam os Padres, que os foram procurar; mas que se viram obrigados a retirar-se por falta de farinha, sendo elles escolhidos para ir procural-os, e dando-lhes os presentes fortaleciam mais as suas palavras, mormente sendo proferidas por dois individuos, seos conhecidos, que foram escravisados na guerra pelos Tupinambás.

Bem podeis calcular como elles ficaram alegres com as noticias dadas pelos Tabajares. Ahi descançaram por tres ou quatro mezes para contarem tudo bem a sua vontade, e regressamos com nossa gente para a Ilha.

 

Notas Criticas e Historicas sobre a viagem do padre Ivo de Evreux por Mr. Ferdinand Diniz

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6

Esta localidade, ja citada, ainda o será muitas vezes.

O vasto territorio, ainda hoje conhecido em Maranhão pelo nome de Tapuitapéra, está hoje dividido pelas comarcas de Alcantara e de Guimarães. Antigamente foi occupado por onze aldeias de indios, das quaes a maior era Cumã. Tapuitapéra dista 40 legoas de Maranhão.[1] Pensa Martius que esta palavra quer dizer — habitação de indios inimigos. Vide Glossaria linguarum brasilensium. Erlanguem. 1863, em 8.º

N’esta obra acham-se tambem os nomes dos lugares, dos vegetaes e dos animaes.

O Aparaturier, que deo tão felizes comparações ao padre Ivo, é simplesmente o mangue (Rhyzophora. Lin.) Esta arvore das praias americanas tão util á industria, forma vastas florestas maritimas, e em roda da costa do Brasil e de Venezuela. Com muita frequencia se tem destruido estas arvores, em varios lugares, e temos ouvido até attribuir-se a invasão recente da febre amarella á destruição systematica d’este bonito vegetal, que aformosêa com sua verdura todas as praias brasileiras. Cahindo sob o ferro do cultivador deixa á descoberto praias cheias de lôdo, habitadas por myriades de carangueijos, formando assim pantanos d’onde se desprendem miasmas de especie muito perigosa.

No Brasil conhece-se duas qualidades de mangue, o branco e o vermelho, e para a descripção scientifica d’elles enviamos nossos leitores para Aug. de St. Hilaire. Julgamos que a palavra antiga, ahi empregada pelo padre Ivo, vem do verbo parere, parir, porque esta arvore se reproduz pelas raizes, que, como arcadas, espalham ao redor de si. (Vide Nossas scenas da naturesa sob os tropicos,) e ahi achareis o effeito do mangue nas paisagens.

7

É lamentavel esta lacuna, porem deixa comtudo perceber, que se trata das tartarugas do Maranhão.

Com os ovos d’este chelidoniano prepara-se no Pará o que se chama — manteiga de tartaruga, de que se exporta prodigiosa quantidade.

8

N’esta enumeração mui completa de quadrupedes que se podem caçar, um nome desperta naturalmente a attenção do leitor, e é vacca brava. É bem possivel, rigorosamente fallando, que os campos do Mearim ja tivessem algum individuo da raça bovina, ja ha muito tempo introduzida em Pernambuco: Claudio d’Abbeville é muito explicito n’este ponto.

Mas não é d’isto que quiz tratar o nosso bom missionario: a vacca brava, ou bragua, como chama em outro lugar, é o Tapir ou Tapié, conforme Montoya, animal muito commum em todo o Brasil.

Para denominal-o serviram-se os hespanhoes e portuguezes d’um nome pedido por emprestimo aos Mouros. Chamavam-no tambem Anta ou Danta, que significa, dizem, bufalo. Quando chegou aos americanos a sua vez de dar nome ao boi, chamaram-no Tapir-açù.

Martius observa com razão, que esta palavra na lingua geral se applica a todo o mamifero corpulento. Sendo este pachyderma o animal mais corpulento conhecido na America do Sul, foi sua caça procurada de preferencia pelos Europeos, e assim desappareceo, ou pelo menos tornou-se mais rara nos lugares onde outr’ora era abundante. Em certos paizes da America era um animal sagrado, e assim figura em diversos monumentos.

No Brasil procuravam os indigenas este animal, tanto por ser boa caça como pela espessura de seo couro, de que faziam escudos impenetraveis ás flexas, pela maior parte armadas de uma ponta aguda de madeira ou de cana.

João de Lery trouxe do Brasil para França alguns d’esses broqueis, porem não chegaram á Europa, porque uma terrivel fome devida á longa viagem de 5 mezes obrigou o pobre viajante a comel-as, depois de amolecidas por meio d’agoa.

Os nossos leitores que desejarem conhecer minuciosamente o Tapir americano, consultem uma excellente dissertação, dedicada especialmente á este animal, escripta pelo Dr. Roulin, Bibliothecario do Instituto.

No Glossario de Martius lê-se uma extensa synonimia relativa ao Tapir. (Vide pag. 479.)

9 (pag. 18)

É certo que os indios d’esta tribu foram contrarios aos francezes.

Ha na historia d’esta expedição um ponto, que não foi ainda bem esclarecido: o mais afamado capitão de indios de que se recorda o Brasil fez suas primeiras campanhas durante o dominio dos francezes.

O celebre Camarão, o grande chefe ou Morubixaba dos Tabajares, commandava 30 frecheiros na lucta entre la Ravardiere e Jeronymo de Albuquerque.

Convidado pelo governo portuguez para tomar parte n’esta guerra, partio de sua aldeia, no Rio Grande do Norte, e foi para o Presidio de N. S. do Amparo, no Maranhão, em 6 de setembro de 1614: seguio-o seo irmão Jacauna com um filho de igual nome, e de 18 annos de idade.

Depois de muitos annos Camarão, que teve tão boa escola, adquirio fama immortal nos fastos do Brasil por occasião da expulsão dos hollandezes. (Vide Memorias para a historia da Capitania do Maranhão, impressa nas Noticias para a historia e geographia das Nações ultramarinas.)

10

No Brasil não ha verdadeiros javalys, e nem este nome se pode dar aos Pecoris ou Tajassus, ou Porcos do Matto na linguagem dos naturaes. Não é extraordinaria a proesa do fidalgo, porque andando os pecaris sempre em bando basta chumbo grosso para matal-os. Martius deo a synomimia completa d’este animal no Glossaria linguarum brasiliensium. (Vide a divisão Animalia cum Synonimis, pag. 477.)

11

Um ajoupa é uma pequena cabana coberta de folhas e abertas por todos os lados.

Esta palavra é muito usada nos nossos estabelecimentos de Guyana. Vê-se estampas de ajoupas em Barrére.

Notas de rodapé

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  1. 40 leguas? Não, e sim 4 leguas. Vide art. Alcantara no meo Diccionario. — Do traductor.