Viagem ao norte do Brasil/I/VII
CAPITULO VII
Dos preparativos dos Tupinambás para uma viagem ao Amazonas.
Apenas voltou esta expedição do Mearim, fallou-se com enthusiasmo de uma viagem, em breves dias, ao Amazonas.[NCH 12]
Já antes se havia fallado n’ella, porem com tal friesa, que poucos acreditavam, não havendo probabilidade de deixar-se a Ilha, sendo nós tão poucos para defendel a contra as aggressões dos portuguezes, que nos ameaçavam ha muito tempo.
Ao divulgar-se esta noticia levantaram-se a ilha e as provincias visinhas, porque, como é geralmente sabido, não ha no Mundo nação alguma mais inclinada á guerra e á viagens pelo desconhecido como estes selvagens brasileiros.
Quatrocentas ou quinhentas legoas nada são para elles quando vão atacar seos inimigos e fazel-os escravos. Com quanto sejam por naturesa timidos e medrosos, nos combates ganham calor, não abandonam o campo, e quando perdem as armas pelejam com unhas e dentes.
Suas guerras são feitas, pela maior parte por surpresa e astucias; ao romper do dia assaltam seos inimigos dentro de suas aldeias: salvam-se de ordinario os que tem boas pernas, sendo aprisionados os velhos, as mulheres, e os meninos, e condusidos como escravos para as terras dos Tupinambás. Tambem sob o pretexto de negocio, vão elles pelas praias, onde moram seos inimigos, promettem-lhes muito, mostram-lhes suas mercadorias em caramemos ou paneiros, onde arranjam o que tem de melhor, e quando os veem entretidos, lançam-se sobre elles, pobres ingenuos, matam uns, aprisionam e captivam outros: por este motivo todas as nações do Brasil, desconfiam d’elles, julgam-nos traidores, e nem querem sua paz.
São muito afoitos quando estão com os francezes, e querem que estes vão sempre adiante, e se acontece voltar um francez para traz, ninguem corre melhor e mais veloz do que elles. D’isto se conclue quanto valle a opinião que se forma de certas pessoas, que não passa de uma loucura e vaidade d’este mundo, acontecendo muitas vezes ficarem atraz os bons e virtuosos ou serem queridos e levados os viciosos e corrompidos.
Indaguei e procurei saber muito o modo como se preparavam para a guerra, não me contentando só com as informações.
Em primeiro lugar as mulheres e as suas filhas preparam a farinha de munição,[NCH 13] e em abundancia, por saberem, naturalmente, que um soldado bem nutrido valle por dois, que a fome é a coisa mais perigosa n’um exercito, por transformar os mais valentes em covardes, e fracos, os quaes em vez de atacarem o inimigo, buscam meios de viver.
É differente da usual esta farinha de munição, por ser mais bem cozida, e misturada com cariman para durar mais tempo, embora menos saborosa, porem mais san e fresca.
Em segundo lugar empregam-se os homens em fazer canoas, ou concertar as que já possuem proprias para este fim, por que é necessario, que sejam compridas e largas para levarem muitas pessoas, suas armas e provisões, e comtudo são feitas de uma arvore, cortada bem perto da raiz, sem galhos e ramos, ficando apenas o tronco bem direito em toda a sua extensão, e então tiram-lhe a casca, e racham n’a dando-lhe meio pé de largura e profundidade: n’este caso lançam-lhe fogo n’essa fenda por meio de cavacos bem seccos, e vão queimando pouco a pouco o interior do tronco, raspam com uma chapa de aço, e assim vão fazendo até que o tronco esteja todo cavado, deixando apenas duas pollegadas d’espessura, e depois com alavancas dão-lhe fórma e largura: estas canoas conduzem as vezes 200 ou 300 pessoas[NCH 14] com as suas competentes munições. São conduzidas por mancebos fortes e robustos, escolhidos de proposito, por meio de remos de pás de tres pés cada um, que cortam as agoas a pique e não de travessia.
Em terceiro lugar preparam suas pennas, tanto para a cabeça, braços, e rins, como para as armas. Para a cabeça usam de uma peruca ou cabelleira de pennas de cores vermelhas, amarellas, verde-gaio e violetas, que prendem aos cabellos com uma especie de colla ou grude.
Enfeitam a testa com grandes pennas de araras, e outros passaros similhantes, de cores variadas, e dispostas á maneira de mitra, que amarram atraz da cabeça.
Nos braços atam braceletes tambem de pennas de diversas cores, tecidas com fio de algodão, similhante á mitra de que acabamos de fallar.
Nos rins usam de uma roda de pennas da cauda de ema,[NCH 15] presa por dois fios d’algodão, tinctos de vermelho, cruzando-se pelos hombros a maneira de suspensorios, de sorte que ao vel-os emplumados, dir-se-hia que são emas, que só tem pennas nestas tres partes do corpo.
Na verdade, quando os vejo assim lembro-me do que antigamente disse Job no cap. 39. Penna struthionis similis est pennis Erodii et Accipitris: a penna de ema é igual a da garça real e do gavião: esta passagem é claramente explicada por diversas licções ou versões dos Gregos e dos Romanos, que tinham por costume apresentarem os coroneis aos capitães e soldados pennas d’ema para collocarem em seos capacetes e morriões afim de animal-os á guerra.
Quiz saber por intermedio do meu interprete porque traziam sobre os rins estas pennas de ema: responderam-me, que seos paes lhes deixaram este costume para ensinar-lhes como deviam proceder na guerra, imitando a ema, pois quando ella se sente mais forte ataca atrevidamente o seo perseguidor, e quando mais fraca abre suas azas, despede o vôo e arremessa com os pés areia e pedras sobre seos inimigos: assim devemos fazer, accrescentavam elles. Reconheci este costume da ema, vendo uma pequena, creada na aldeia de Vsaap, que era perseguida diariamente por todos os rapasinhos do lugar: quando eram só dois ou tres, ella os accommettia, e dando-lhes com o peito, atirava-os por terra, porem quando era maior o numero preferia fugir.
Estou certo, que muitas pessoas se admirarão, não só do que acabo de dizer, mas tambem como é possivel buscarem estes selvagens, meios de governarem-se entre as praticas animaes: si se lembrarem porem que o conhecimento das hervas medicinaes foi ensinado aos homens pela cegonha, pela pomba; pelo viado e pelo cabrito; que a maneira de fazer a guerra e postar sentinellas foi colhida das aves chamadas grous; que a bondade do estado monarchico foi a principio observado entre as abelhas; que os architectos com as andorinhas aprenderam a fazer abobadas; que o proprio Jesus-Christo nos mandou observar o milhafre, o abutre, a aguia e o pardal, desapparecerá a admiração, e especialmente si acreditarem, que estes selvagens imitam com a maior perfeição possivel os passaros e animaes do seo paiz, o que elles exaltam nos cantos que recitam em suas festas.
Por que nos passaros de sua terra predominam as cores verde-gaio, vermelho e amarello elles gostam de pannos e vestidos destas tres cores.
Por que as onças e os javalis são os animaes mais ferozes do mundo, elles arrancam os seos dentes e os trazem nos labios e orelhas afim de parecerem mais terriveis.
As pennas das armas são postas nas extremidades dos arcos e das flexas.
Assim preparados bebem publicamente o vinho de muay, e dizem adeos aos que ficam.
Notas Criticas e Historicas sobre a viagem do padre Ivo de Evreux por Mr. Ferdinand Diniz
[editar]12
Em 1542 a fóz do grande rio foi explorada por Aphonso de Xaintongeois. (Vide o Manuscripto original de sua viagem na Bibliotheca Imperial de Pariz.)
João Mocquet, cirurgião francez, guarda das curiosidades de Henrique IV, visitou suas praias. (Vide o Manuscripto do seo Relatorio na Bibliotheca de Santa Genoveva.)
Finalmente la Ravardiere fez até lá um reconhecimento.
João Mocquet foi muito explicito quando tratou do mytho das Amasonas, que tanto occupou Condamine e o illustre Humboldt. Tudo quanto elle referio d’estas guerreiras soube do chefe Anacaiury, cujo personagem, ou seo homonymo, encontra-se nas obras de Ivo d’Evreux.
Governava uma nação no Oyapok ou do Yapoco.
Mocquet disse a seos leitores, que não poude visitar, como desejava, o Amasonas «por serem violentas as correntes para os navios, e mesmo para o seo patacho que ja fazia muita agoa.»
Todas estas narrações a respeito do grande rio deixou em França impressões tão duradouras, que o Conde de Pagan, quarenta annos depois, convidou a Mararin a reerguer projectos esquecidos. Para a conquista da Amasonia elle queria união com os indios, e por sua vontade devia o Cardeal ligar-se «aos illustres Homagues (Omaguas) aos generosos Yorimanes e aos valentes Tupinambás.» Nunca certamente os selvagens receberam tão pomposos nomes!
Seria mui curiosa, si se achasse, a narração da expedição pelas margens do Amasonas em 1613, feita por ordem de la Ravardiere e ainda no tempo de Luiz XIII existia uma copia.
13
Entra Gabriel Soares em minuciosas descripções do fabrico d’esta farinha, de que os indios fazem grandes provisões.
A especie de mandioca, conhecida pelo nome de Carimã, serve de base.
Esta raiz a principio dissecada a fogo brando, depois ralada, é pisada n’um almofariz, peneirada e misturada com certa quantidade de outra qualidade de mandióca na occasião de ser torrada, o que se faz até ficar muito secca, e n’esse estado é conservada por muito tempo.
Encontram-se sobre esta industria agricola do Brasil todos os esclarecimentos necessarios no Tratado descriptivo do Brasil, pag. 167.
Augusto Saint-Hilaire disse com rasão, que a cultura da mandióca tirou a maior parte dos seos processos da economia domestica dos Tupis, e resumio concisa e habilmente tudo que ha a dizer-se relativamente ao cultivo da planta. (Voyage dans le district des Diamants et sur le littoral du Brésil. T. 2 — pag. 263 e seguintes.)
14
Gabriel Soares está aqui inteiramente de accordo com o nosso Missionario.
Estas grandes canoas chamavam-se Maracatim, por causa do Maracá, que, como protector, trasiam na prôa. Iga chamava-se uma canôa pequena, e Igaripé uma canoa de cortiça ou casca de arvores, etc. etc. (Vide Ruiz de Montoya, Tesoro, na pag. 173.)
15
André Thevet, e depois d’elle João de Lery descreveram com exactidão este genero de ornato, chamado Araroye pelo ultimo d’estes viajantes.
Coube ao padre Ivo fazer-nos conhecer seo valor symbolico.