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Viagem ao norte do Brasil/I/XIII

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CAPITULO XIII

Do valor e dos costumes dos selvagens do Miary.


Conversando familiarmente com esta nação, descubri muitas de suas particularidades, e tambem outras, pertencentes tanto á elles como á todos os Tupinambás, ainda não escriptas por pessoa alguma, ou ao menos mencionadas sufficientemente, e como são bellas e raras tractarei d’ellas mais detidamente.

Estes povos, antes de reunidos, eram chamados Tabajares pelos Tupinambás.[NCH 27]

Este nome é appelativo e commum para designar toda a sorte de inimigos, e tanto assim é, que esta mesma nação de Tabajares chamava os Tupinambás da ilha Tabajares, Topinambas, embora pacificados e amigos. Os Topinambas os chamavam Mearinenses, quer dizer vindos do Miary,[NCH 28] ou habitantes do Miary, assim como os Dinamarquezes, que vieram occupar a Neustria, Provincia antiga e dependente da Corôa de França, foram chamados Normandos, e sendo ella conservada em homenagem pelos Reis de França, perdeo seo antigo nome, e conservou o de Normandia.

Os francezes os chamam Pedras-verdes[NCH 29] por causa de uma montanha, não muito longe de sua antiga habitação, onde se acham mui bellas e preciosas pedras verdes, dotadas de muitas propriedades, especialmente contra doenças do baço, e frouxo de sangue, e tambem me disseram haver ahi esmeraldas muito finas: ahi hiam os selvagens buscar estas pedras verdes tanto para collocal-as em seos labios, como para negocio com as nações visinhas.

Os Tupinambás e os Tapuias dão muito apreço a estas pedras:[NCH 30] vi por uma pedra para o beiço dar o valor de mais de vinte escudos de mercadorias um Tupinambá á um Miarinense, em nossa casa de São Francisco, no Maranhão.

Um certo Cabelo comprido veio ter comnosco, ornado com seos enfeites mais lindos, que consistiam em dois chifres de bodes, e quatro dentes de corça, muito cumpridos, em vez de brincos, de que muito se orgulhava por havel-os alcançado com industria, ao passo que era commum, especialmente entre as mulheres, trasel-os de madeira, redondos, muito toscos, e da grossura de dois dedos: calculae o buraco, que fazem nas orelhas: a maior porem de suas ostentações era uma destas pedras verdes, de comprimento, pelo menos, de quatro dedos, bem redonda, o que me agradou tanto á ponto de desejar trazel-a para a França. Perguntei-lhe o que queria que lhe désse por esta pedra: respondeo-me, «dê-me um Navio de França, carregado de machados, de foices, de vestidos, de espadas e de arcabuses.»

Outro Tupinambá, já muito velho, trazia uma pedra destas em seo labio inferior: era oval e tão larga como o concavo da mão, e como a tivesse trasido por muito tempo ahi, sem nunca tiral-a, estava como que encaixilhada no seo queixo, ja tendo a carne se dobrado sobre os bordos da pedra e tomado a sua propria forma.

Narrei tudo isto afim de demonstrar o valor destas pedras verdes.

Estes Miarinenses são ordinariamente de boa estatura, bem conformados, e valentes na guerra: sendo bem guiados não recuam e nem fogem como os outros Tupinambás, explicando-se isto pelo facto de serem criados entre os combates, sempre travados contra os portuguezes, aos quaes atacaram outr’ora, escalaram suas fortalezas, tomaram suas bandeiras e nunca mais abandonaram sua primeira habitação, como nos contou Thion, seo Principal, quando veio do Forte de São Luiz, se a falta de canhões não obrigasse os francezes, que estavam com elles, a cederem á força e á superioridade do numero dos portuguezes.

Causa gosto ver o zelo e o cuidado, com que trazem as espadas, que lhes dão os francezes, sempre a seo lado, sem nunca tiral-as senão quando se deitam, e quando trabalham em suas roças, penduram-nas junto a si em algum ramo de arvore, fazendo-me lembrar a historia de Nehemias, na reparação dos muros de Jerusalem, quando os seos habitantes trasiam n’uma das mãos as armas e na outra os instrumentos do trabalho.

Gostam muito de traser as espadas tão limpas como cristal, e para isso as esfregam com areia fina e azeite de mamona, amolam-nas repetidas vezes para estarem sempre cortantes, aguçam as pontas, quando estão gastas pela ferrugem muito commum na zona tórrida.

Acostumam-se a bem manejal-as, fazendo marchas e contra-marchas, á maneira dos suissos quando esgrimam.

Alem de serem corajosos e bons soldados, trabalham muito bem, e antes quero uma hora de tarefa d’elles do que um dia dos Tupinambás.

Seos Principaes trabalham tanto quanto os seos subordinados de menor representação, porem o serviço está bem regulado, porque ao romper do dia levantam-se, almoçam, e depois vão elles mulher e filhos, conjunctamente, alegres risonhos, cantando trabalhar em suas roças, e quando o sol principia a chegar ao seo maior auge do calor, que é perto das dez horas, deixam a lida, vão comer e dormir, e duas horas depois do meio dia, quando o sol principia a declinar voltam outra vez ao trabalho, onde se conservam até ao anoitecer.

Os Principaes, que ordinariamente tem mesa franca, para o que necessitam de roças maiores, preparam um Cauin geral, e como todos partilham d’elle, se incumbem de cuidar nas plantações, o que fazem com alegria n’uma ou duas manhãs, e depois vão beber na casa d’aquelle para quem trabalharam, bebendo cada um quando chega a sua vez, e quando o acham bom o gabam com todas as suas forças, compõem cantigas adequadas, que entoam ao redor da casa ao som do Maracá, pronunciando estas ou outras similhantes palavras: «oh! o vinho, o bom vinho, nunca elle teve igual; oh! o vinho, o bom vinho, nós o beberemos á vontade, oh! o vinho, o bom vinho, n’elle não acharemos preguiça.»

Chamam o vinho preguiçoso quando não tem força bastante para embriagal-os immediatamente, e que não lhes provocam o vomito por mais que bebam.

Tomam as raparigas parte n’esta festa, onde se dança e canta-se á fartar, deitam-se os que se embriagam logo e raras vezes apparecem questões: são alegres e agradaveis n’essa occasião, especialmente as mulheres, que fazem mil macaquices á ponto de provocarem grande hilaridade, até a individuos mais tristes e melancolicos. Por mim confesso, que nunca em minha vida me ri tanto como quando estas mulheres altercavam umas com as outras, empunhando copos de madeira cheios de vinho, bebendo ora um, ora outro, fazendo muitas macaquices e tregeitos.

Dão com muita facilidade o que mais presam, como sejam suas filhas e suas mulheres, porque observei quando se cuidou na segunda viagem do Miary que muitos Tupinambás tanto da Ilha do Maranhão, como de Tapuitapera, foram de proposito com os Francezes para pedirem filhas e mulheres dos Miarinenses, o que facilmente obtiveram, como muitas outras coisas, que só fazem estes povos, e por isso mesmo muito caros e preciosos entre os Tupinambás.

Tambem tem por costume, que igualmente observei entre os Tupinambás, o trazerem assobios e flautas, feitos dos ossos das pernas, coxas e braços de seos inimigos, dos quaes arrancam sons fortes, agudos e claros, e ao som d’elles entoam seos cantos usuaes, especialmente quando estão nos Cauins, ou quando vão a guerra.

As raparigas não se despresam em casar com velhos e grisalhos, como praticam as dos Tupinambás, e sim antes querem esposar um velho, especialmente quando é Principal, e admirei-me, como coisa desagradavel, o vêr muitas jovens, de quinze a deseseis annos, casadas com velhos, e o contrario praticam as raparigas dos Tupinambás, as quaes passam a sua mocidade livremente, e depois acceitam um marido.

O que acabei de dizer, só tem por fim o mostrar a cegueira das almas captivadas pelo espirito immundo, que não se descuida de perdel-as por meio de suas traças.