Viagem ao norte do Brasil/I/XIV

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CAPITULO XIV

Das incisões, que fazem estes selvagens em seos corpos e como escravisam seos inimigos.


Estes povos, e não só elles, porem geralmente todos os Indios do Brazil, tem por costume cortar o corpo, e recortal-o tão lindamente, que os costureiros e alfaiates, embora habeis em sua profissão, buscam imital-os no córte dos seos vestidos.

Este costume não é só privativo dos homens, e sim tambem das mulheres, com a differença unica de que os homens se cortam por todo o corpo, e as mulheres apenas desde o umbigo até as coxas, o que praticam por meio de um dente de Cutia, muito agudo, e uma especie de gomma queimada, reduzida á carvão, applicada sobre a chaga, e nunca se apagam os córtes.

Digo de passagem e não para demorar-me, e sim apenas para descubrir a origem deste antigo costume, que me parece ser fundado pela naturesa, visto ser praticado, já ha muitos annos, por nações civilisadas, cujo conhecimento por falta de communicação não podia ter esta Nação barbara, e assim inventou-o e d’elle usou.

Soube d’estes selvagens, que duas razões os levam a cortar assim seos corpos, uma significa o pesar e o sentimento, que tem pela morte de seos paes, assassinados pelos seos inimigos, e outra representa o protesto de vingança, que contra estes promettem elles, como valentes e fortes, parecendo quererem dizer por estes córtes dolorosos, que não pouparam nem seo sangue e nem sua vida para vingal-os, e na verdade quanto mais estigmatisados mais valentes e corajosos são reputados, no que tambem são imitados pelas mulheres de iguaes qualidades.

Para mostrar a origem anterior d’este costume, não necessito remontar-me ás historias profanas, no que seria prolixo, e sim contentar-me-hei fazendo vêr em diversos trechos das escripturas sanctas quanto Deos reprova este uso barbaro e selvagem. No Levitico 19. Super mortuo non incidetis carnem vestram, nec figuras aliquas, aut stigmatas facietis vobis. Sobre a vossa carne não fareis incisões, figuras ou signaes. No cap. 21. Necque in carnibus suis facient incisuras: e não farão incisões na sua carne. No Deut. 14. Non vos incidetis, necfacietis calvitiem super mortuo. No morto não fareis incisões e nem cortareis os cabellos.

Á respeito d’estas passagens interpretam os Padres, como fazem os gentios e os idolatras, e de maneira notavel este trecho — não fareis incisões e nem cortareis os cabellos, por que se vêem juntas estas duas coisas, que os indios sempre separam restrictamente: quanto á incisão, já sabeis o que ella significa, mas quanto ao arrancamento do cabello ficae sabendo, que apenas as mulheres e as moças sabem do captiveiro ou morte na guerra dos seos Paes ou maridos, cortam os cabellos, gritam e lamentam-se horrivelmente, excitando seos similhantes á vingança, á tomar as armas e a perseguir seos inimigos, como farei vêr quando narrar a Historia dos Tremembeses.

Dos escravos, que me deram n’aquelle paiz para trabalharem á bem da minha subsistencia soube da maneira como faziam prisioneiros e escravos.

N’um certo dia reprehendi a preguiça d’um d’elles, fórte e valente, que me fora dado por um Tupinambá, e elle para minha advertencia me deo a seguinte resposta, embora branda (bem sei o que é necessario observar para com esta nação, que as reprehensões consideram como chagas e feridas, e aos castigos preferem a morte,[NCH 31] e por esta forma desejam antes morrer com honra, segundo dizem, no meio das assembleias, como ja muito bem descreveo o Padre Claudio d’Abbeville): eil-a «na guerra não me pozeste a mão sobre a espadua,[NCH 32] como fez aquelle que me deo a ti para agora me reprehenderes.» Nasceo-me logo a curiosidade de saber por intermedio do meu interprete o que elle queria dizer, e então fiquei sciente de ser uma ceremonia de guerra entre estas nações, quando um é prisioneiro do outro, bater-lhe este com a mão sobre a espadua e dizer-lhe — faço-te meo escravo — e desde então este infeliz captivo, por maior que seja entre os seos, se reconhece escravo e vencido, acompanha o vencedor, serve-o fielmente sem que seo senhor ande vigiando-o, tendo liberdade para andar por onde quiser, só fazendo o que fôr de sua vontade, e de ordinario casa-se com a filha ou a irmã do seo senhor, e assim vive até o dia em que deve ser morto e comido, o que não se pratica mais em Maranhão, Tapuitapera e em Cumã, e só raras vezes em Caieté.

Estas nações me despertaram a lembrança do que li outr’ora nos livros sagrados e na Historia dos Romanos, quando procediam ao captiveiro dos prisioneiros, e para bem entender-se bom é notar-se, que foram as ceremonias externas inventadas para representarem com sinceridade as affeições do interior: por exemplo, dobrar o joelho, beijar a mão, descubrir a cabeça, quando saudamos alguem, que estimamos, são outros tantos testemunhos de apreço interno em que o temos: outr’ora as espadas tinham hierogliphos representando o mysterio occulto das acções internas e externas dos homens.

Deixando de parte o que não serve ao meo fim contento-me em referir os dois seguintes casos: — o sceptro apoiado sobre a espadua significa o poder regio: a alabarda sobre a espadua declara o poder dos chefes de guerra: as maças de ouro e prata — o poder dos Senados e dos Pontifices: os machados com ramos de parreira enroscadas — o poder dos consulados e dos governadores das provincias. Observe-se o que foi escripto por Isaias cap. 9. Factus est Principatus super humerum ejus, seo dominio foi posto sobre sua espadua, e no cap. 22. Dabo clavem domus Davis super humerum ejus, e porei a chave da casa de David sobre sua espadua, quer dizer o — sceptro de David.

Ao contrario, pôr uma canga, como trazem os bois ou cavallos quando no trabalho, ou então passar debaixo de uma lança, atravessada sobre duas outras fixadas perpendicularmente, ou receber sobre a espadua nua uma vergastada era o signal da escravidão, como muito bem o patenteiou Isaias, cap. 9. Jugum oneris ejus et virgam humeris ejus, et sceptrum exactoris ejus superasti: venceste o jugo do teu fardo e a vara de sua espada, o sceptro do seu exactor, fallando do captiveiro da Gentilidade, libertada pelo Salvador: assim tambem estes selvagens batendo sobre o hombro de seus prisioneiros, significavam serem elles seos captivos, e na verdade encontro uma bella profecia, toda litteral, narrando esta desgraça, á qual estão sujeitos estes pobres selvagens de Chanaan, por juizo impenetravel da sabedoria divina, e participação da antiga maldição de Channan, seo Pae: é em Isaias, cap. 47 — Tolle molam, et mole farinam: denuda turpitudinem tuam, discooperi humerum, revela crura, transit flumina, toma a mó, e móe a farinha, descobre tua torpesa e tua espadua, mostra tuas coxas e passa o rio.

Tomam estes selvagens a mó, e a farinha, não tendo ferramenta alguma para trabalhar, quer nos bosques quer nas roças, servem-se unicamente de machados de pedra para cortar arvores, fazer suas casas e canoas, aguçar paus, cultivar a terra, semeiar, plantar raizes, e por unica recompensa de seos trabalhos só comem farinha, e raizes passadas por um rallador, feito de pedrinhas agudas, engastadas n’uma taboa da largura de meio pé.

Cosinham a farinha n’uma grande panella de barro, ao fogo, como amplamente está escripto na Historia do R. Padre Claudio d’Abbeville.

É tão patente sua torpesa, que suas mulheres e filhas, embora honestas, sentem repugnancia de se vestirem. Trazem o hombro descuberto, sujeito á este grande captiveiro, commum a todas as nações. Mostram suas coxas, e a falta de castidade está em uso entre elles sem reprovação, menos o adulterio.

Passam rios buscando ilhas incognitas atraz de segurança.