Viagem ao norte do Brasil/I/XV

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CAPITULO XV

Leis do Captiveiro.


Já que estamos fallando dos escravos bom é tratar das leis do captiveiro, isto é, das que devem guardar os escravos.

Primeiramente não devem tocar na mulher do seo senhor, sob pena de serem flexados logo, e a mulher morta ou pelo menos bem açoitada, e entregue a seos Paes, resultando-lhe muita vergonha de ser companheira de um dos seos servos.

Notae, que as raparigas não são despresadas por se entregarem a quem muito bem lhes parece em quanto solteiras, logo porem que recebem um marido, si se entregam a outro, alem da injuria de serem chamadas Patakeres, quer dizer, prostitutas, tem seos maridos o poder de matal-as, açoital-as e repudial-as.

É bem verdade terem os francezes abrandado esta lei tão rude, não dando permissão aos maridos de matar tanto o escravo como a mulher adultera, ordenando que fossem conduzidos ao Forte de São Luiz para vêr punil-as, ou elle mesmo infringir-lhes o castigo, como vi acontecer, entre outros factos, no adulterio commettido entre a mulher do Principal Uyrapyran, e um escravo, bonito rapaz.

Tinha o referido escravo muito amor a esta mulher, e depois de ter cogitado todos os meios de gosal-a, vio-a ir um dia á fonte, muito longe da aldeia, foi logo atraz expôr-lhe sua vontade, e depois agarrando-a com violencia entranhou-se com ella n’um bosque, onde saciou seos desejos, e como ella era de boa familia não quiz gritar para não ser diffamada, e ainda em cima pedio segredo ao escravo.

Enfadado o marido com a grande demora da mulher, e desconfiando de alguma cousa por ser bonita e agradavel, foi á fonte, onde encontrou junto a borda o pote de sua mulher cheio d’agoa, e lançando a vista ao redor, como costumam a praticar os homens ciumentos, vio sahir sua mulher de um lado do bosque e o escravo de outro. Agarrou o escravo pelo colleirinho, e confiou-o à guarda dos seos amigos, e levou sua mulher para casa de seos paes, que se comprometteram a entregal-a quando pedisse.

Na manhã seguinte, em companhia dos seos, levou este escravo á minha casa, expondo-me o facto como acima referi, acrescentando que si não fosse o respeito ás recommendações dos Padres e dos Francezes, elle teria matado o escravo, perdoando comtudo a sua mulher visto ter sido forçada, a qual ja havia entregado a seos parentes com intenção de repudial-a.

Louvei a sua obediencia e respeito: era na verdade um homem bem feito, de bonito rosto, e bom corpo, fallando bem e em bons termos, mostrando tanto nas maneiras como no corpo, generosidade e nobresa de coragem.

Mandei-o á presença do senhor de Pezieux, loco-tenente de Sua Magestade na ausencia do Sr. de la Ravardiere, que tendo ouvido a queixa, mandou carregar de ferros os pés do escravo, promettendo ao Principal fazer a justiça, que elle quizesse.

Replicou-lhe o Principal que desejava vel-o morto como era costume: respondeo o senhor de Pezieux, que Deos tinha ordenado em sua lei, que deviam morrer tanto o homem como a mulher adultera.

Sim, disse o Principal, porem ella foi constrangida.

«Não, respondeo o senhor de Pezieux, a mulher não pode ser forçada por um só homem, ou pelo menos deve gritar, e não pedir segredo ao selvagem, o que é tacito consentimento:» dizia tudo isto para salvar o escravo da morte, por que muito bem sabia não concordar o Principal na morte de sua mulher visto os muitos parentes que ella tinha.

Conseguio-o logo, porque elle pedio ao Sr. de Pezieux, que não matasse o escravo, mas sim que o prendesse na golilha, e que lhe fosse permittido açoital-o á vontade.

«Sim, disse-lhe o Sr. de Pezieux, com tanto que dês quatro açoites com cordas em tua mulher, diante de todas as mulheres, que se acharem no Forte, e ao som da corneta.»

Acordes n’isto, na manhã seguinte, foi a mulher conduzida e confrontada com o escravo, reconheceo-se que o facto deo-se como ja referi, foram ambos conduzidos á praça publica do Forte, onde se fincou o esteio e a golilha: ahi o marido representou o papel de verdugo, escolheo tres ou quatro cordas bem duras, que enrolou em seo braço, e voltou em sua mão direita, e com ellas açoitou sua mulher por quatro vezes, deixando-lhes vergões bem grossos e cumpridos, impressos sobre seos rins, ventre e costas, não sem derramar muitas lagrimas, que lhe corriam ao longo das faces, e sem exhalar profundos suspiros: sua mulher tambem gemia, com a vista baixa, envergonhada de assim se vêr rodeiada por tantas mulheres, que, como ella, tambem choravam tanto por compaixão, como apprehensivas de que para o futuro não lhes acontecesse o mesmo.

Os homens ao contrario mostravam-se alegres diante de tão boa justiça, e gracejando diziam á suas mulheres — ah! se te pilho!

Durante todo o dia estiveram tristes as mulheres dos Tabajares.

Depois de haver açoitado sua mulher, este bom marido lhe disse «eu não tinha desejos de castigar-te, fiz o que pude perante o Maioral dos Francezes para salvar-te, porem vae, enchuga tuas lagrimas, e tornar-te hei a tomar por mulher, e te levarei para casa quando acabar de castigar este escravo.»

Sabe Deos, se o pesar que elle teve pelos açoites, que deo a mulher, melhorou a sorte do pobre escravo, porque pondo-o na praça ou no largo, fez um circulo do tamanho do seo chicote, separado todos, um por um.

Tinha o escravo ferros nos pés, estava em pé, nu como a palma da mão, e assim soffreu o castigo, sem dizer uma palavra e sem mecher-se: por tres vezes cansado e sem poder respirar descançou, depois de fortalecido recommeçou e de tal maneira, que não poupou uma só parte do corpo.

Começou pelos pés, seguio pelas pernas, coxas, partes naturaes, rins, ventre, espaduas, peito, e acabou pelo rosto e testa.

Esteve muito tempo doente por este castigo, sempre com ferros nos pés, conforme pedio o Principal, porem passado algum tempo consentio que lhos tirassem, á pedido do senhor de Pezieux, que desejava satisfazer os desejos dos seos Principaes para melhor obrigal-os a serem fieis aos Francezes.

Acabado isto, tomou conta da mulher, que já não chorava, e sim principiava a rir-se, e assim voltaram para casa como se nada tivesse acontecido.