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Viagem ao norte do Brasil/I/XLV

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CAPITULO XLV

Dos grillos, dos camaleões e das moscas.


De todos os animaes, que fazem companhia ao homem, no Brasil, nenhum ha que iguale ao grillo, chamado pelos selvagens Cuju[NCH 75]; e por ser tão familiar e domestico pude á vontade satisfazer minha curiosidade estudando este animalsinho.

Nasce da corrupção.

Quando se faz uma casa coberta de palma fresca, apparecem n’um momento milhões e milhares d’estes grillos ou Cujus. Virão dos bosques visinhos? não pode ser; porque nas casas cobertas de palma velha não são encontrados, logo força é confessar, que formam-se na palma nova com o auxilio do sol.

Notei que dois ou tres dias depois de coberta a casa, os grillos são brancos como neve, signal de nova geração, pouco a pouco tomam a sua cor ordinaria, amarello-negro.

Alem d’isto originam-se tambem de ervilhas, e favas podres o que conheci por experiencia.

Quanto á producção do pae e da mãe provêm d’uma semente deixada nas folhas de palma: é pegajosa e fica onde se colloca, até que d’ella por meio de calor saia outro grillosinho.

É ardente no seo ajuntamento, e eis porque tanto se multiplicam.

É muito pequeno, porem astucioso, tem horas para comer e para cantar: não deixam de procurar comida quando presentem estarem todos deitados, e então descem do tecto e correm, por assim dizer, os cantos da casa, onde se aproveitam de todas as migalhas e restos de comida, e se encontram restos de carangueijo deixam tudo mais.

Acabada a comida regressam a seos logares, onde cantam e passam o resto da noite, e o dia tambem, se o ardor do sol o não encommodar.

Não gostam de chuvas, e emquanto está chovendo, não cantam.

Gostam portanto do tempo sereno e doce, sem muito calor, e sem muita chuva. Roem muito os pannos, que encontram, e se acharem um capote de cem escudos n’uma noite dão cabo d’elle.

Não tocam em panno de linho á não estar elle engordurado, ou com algum liquido, de que gostem, e por isso para conservar-se alguns vestidos, embrulham-se n’estes pannos.

Tem quatro inimigos capitaes.

1.º Os lagartos, que correm apoz elles, como os cães atraz das lebres.

É um gosto vêr as voltas e vira-voltas que dá a caça e o caçador.

2.º Certos macaquinhos amarellos e verdes a que chamam os selvagens Sapaius, vivos e ageis como um passaro; caçam com uma das mãos e na outra guardam os grillos.

3.º São as gallinhas, que os devoram com incrivel avidez, e para isto voam sobre as casas, e não poucas vezes estragam a cobertura d’ellas.

4.º São certas formigas grandes, que atacam-os nos buracos e cavernas, onde se abrigam nas casas: distrahi-me algumas vezes vendo tão singular combate; a formiga desce ao buraco, onde tanto faz, que o Cuju sahe á campo, ou então é puchado pelos pés, e muitas vezes prefere a morte á perder suas pernas posteriores, que leva a formiga.

Outras vezes deixa-se o grillo comer dentro do buraco, de maneira que somente fica a cabeça e as azas, que as formigas carregam como tropheos.

Tem os grillos particular malicia, como experimentei, por que mordem a extremidade dos dedos das pessoas, que dormem, e carregam o bocadinho de pelle que podem tirar.

Achei-me por isso muito encommodado do pollegar, a ponto de não poder escrever por oito dias.

O Camaleão é um animal do tamanho e da grossura de um pequeno lagarto, e á elle similhante no rosto, olhos, e cabeça, tendo nas costas escamas como o crocodillo, e parece ter a pelle coberta de pelle ou limo.

Tem a cauda muito comprida, e de ordinario dobrada em dedalus, diminuindo gradualmente até a ponta.

Raras vezes se vê o macho com a femea, e por isso não me atrevo a contar o modo de sua procreação, porque não pude vel-a, e nem imaginal-a. Contento-me apenas em referir o que vi.

É muito demorado no seo andar, está sempre ao sol, deitado sobre folhas ou ramos, e por isso se pensa que vive só de orvalho.

Batem-lhe as ilhargas constantemente, e muito mais quando receiam alguma coisa, sendo isto motivado pela sua timidez natural, proveniente de muito humor frio, pelo qual torna-se venenoso quando é comido por algum animal.

Nunca se encontra nas arvores fructiferas, prevenção da naturesa para não envenenar com o seo frio excessivo o fructo que tocasse, e por isso é visto nos ramos de arvores, que somente servem para o fogo.

Como o lagarto tem quatro pés, e muda de côr conforme o movimento do corpo, e os batimentos das ilhargas.

São raros em Maranhão, e somente são encontrados em lugares bem expostos ao meio-dia: deitam-se nas folhas, estendem as quatro patas, e descançam a cabeça. Não fazem movimento algum com os olhos, quando estão vendo, e nem abaixam as palpebras superiores: constantemente bate-lhe o papo.

Dizem, que se este animal fosse lançado ao fogo difficilmente arderia, porem envenenaria pela fumaça as pessoas presentes.

Não fiz esta experiencia com o camaleão, e sim com outro animal mui similhante a elle pela friesa.

Mandei lançal-o n’um braseiro, que mandei preparar, e retirando-me para longe, tomei cuidado que ficasse sempre no fogo, movendo-o constantemente, e depois que morreo, vio-se que o fogo não poude obrar contra seo corpo, ficando inteiro e solido, conservando sua figura e pelle: mandei tiral-o do fogo e enterral-o.

Ha muitas especies de moscas, umas da noite, outras do dia.

As moscas da noite são as que buscam o seo sustento durante ella agarrando os bichinhos, que voam, onde encontram: como tem de alimentar-se nas trevas, deo-lhes a Providencia uma luz,[NCH 76] que trazem adiante e atraz: a luz dianteira está n’uma placa de forma quadrangular, adherente ao estomago, sendo os dous angulos, que tocam a sua barba, muito estreitos, e esta construida de uma pellicula diaphana, e coberta de um pello mui delicado, com que recebem a humidade da noite, e por este meio produzem um brilho de luz. Percebeis bem isto recordando vos do brilho da pescada á noite, por causa da delicadesa da escama ou da sua pelle humedecida.

Acontece o mesmo com certa especie de madeira podre, ou melhor rarifeita, e tenue, livre de todas as immundicies, e que tem a propriedade de attrahir a humidade.

O mesmo tem elles no chato da barriga, onde se encontra uma pellicula bem lisa, cheia do pello tão fino, de que acima fallei.

Quando voam atravez de uma noite escura, parecem ser grossas faiscas de ardente fornalha de fundir metaes.

Pertencem ao dia as outras moscas; são infinitas e varias e por isso somente me demorarei, tratando das que tiverem alguma coisa digna da consideração do leitor, como sejam as abelhas, e as vespas, e do mais que fallarei.

As abelhas do Maranhão, e de suas circumvisinhanças fabricam suas casas de tres modos: entre os ramos das arvores, como ja disse, quando escrevi sobre o Meary, ou no concavo das arvores, isto é, no tronco principal, porque escolhem uma arvore que tenha uma concavidade no tronco, sobem pela frente d’elle, e depois descem até a terra, onde fazem os alicerces dos seos cortiços, e depois fabricam o seo mel, caminhando sempre para cima. Quando não é assim, escolhem lugar apropriado, levantam da terra um cortiço concavo, onde fabricam mel e cera.

É virgem a sua geração, e creio não haver entre elles macho e femea, e assim todos trazem comsigo o germen da futura procreação.

Dir-vos-hei a razão d’este meu modo de pensar, que formei observando com attenção um cortiço de abelhas n’uma grande arvore concava e secca, distante 30 passos de nossa casa de São Francisco, o que ainda me foi facil, pois estas moscas não dão ferroadas,[NCH 77] comtanto que não se lhes faça mal, embora se esteja bem perto d’ellas.

Fizeram os selvagens um buraco ao pé d’esta arvore, por onde sahia o mel, e por ahi observei tudo bem a minha vontade, até mesmo as camarasinhas, em que se achavam ellas envolvidas.

Estes casulos eram tapados de todos os lados, embrulhados n’uma tella bem delicada, e por cima está a cera e o mel.

N’algumas camarasinhas d’estas, achei somente algumas gottas de semente, claras como a agoa da rocha, e soube ser a materia de que se organisavam as novas moscas.

N’umas vi o cháos, ainda informe, feito e composto desta materia prima, a maneira de uma pasta molle, branca como creme: n’outras vi moscasinhas, perfeitamente formadas, e ja com movimento, porem envolvidas n’uma tella delicada e diaphana, que rasguei com cuidado, e vi n’estas moscas todas as suas partes bem distinctas e conformadas, menos os pés, por serem os ultimos, que se formam, e ja depois, que se movem.

Reconheci ser verdade o que diz S. Isidoro d’estas moscas «Apes dictæ sunt quia sine pedibus nascutur, nain postmodum accipiunt:» as abelhas, ou antes os apedes, são assim chamados porque nascem sem pés, sendo este nome composto por a, que quer dizer — sem, e pedespés. Assim composta quer dizer — sem pés, mas não se usa em francez, e sim emprega-se o nome de abelhas.

Sobre o que eu disse á respeito de sua geração virginal, alem da experiencia, que eu tive, de que podem duvidar alguns espiritos, ha uma testemunha irrefragavel, Santo Ambrosio, Doutor que si dedicou ao estudo dos segredos da abelha mais do que nenhum outro antes ou depois d’elle.

Não o fez sem motivo, pois desde o seo berço que estas moscas se alojaram em seos labios, e depois em toda a sua bocca, eis suas palavras: Apes nuilo concubitu miscentur, nec libidine resolvuntur, nec partus doloribus quatiuntur, sed integritatem corporis virginalem servantes subito maximum filiorum examen emittunt: «não si misturam as abelhas por meio de alguma conjuncção, não si entregam por meio de sensualidade, não soffrem dores de parto, porem conservam a integridade virginal de seo corpo, e em pouco tempo produzem grande numero de novas abelhas.»

Diz o autor do livro da «Naturesa das coisas» — Omnibus virginalis integritas corporis — «conservam todas a inteiresa virginal do seo corpo.»

Ha diversas especies de vespas, tendo uma d’ellas alguma coisa de novo: esta qualidade é negra, mui delgada no meio do corpo a ponto de julgar-se estar o ventre unido ao estomago por um só fio.

São industriosas o mais, que é possivel.

Recolhem-se todas á um nicho de terra, no cimo das arvores, tão bem estocado, que dentro d’elle não cahe uma só gotta d’agoa; a cobertura ou tecto d’este nicho é em fórma de zimborio, e apenas cahe a chuva, corre ligeiramente, e ahi não si demora: n’elle não tem abertura alguma, e apenas cinco ou seis buracos proporcionaes á grossura d’ellas.

No interior fazem accommodações para viver, e fabricam uma especie de mel bem amargoso, e negro como tinta.

Cada uma tem sua casa, cavada na espessura do nicho, á maneira dos buracos de um pombal, onde se agasalham os seos habitantes.

É admiravel a sua industria no fabrico d’estes nichos, e presenciei-a muitas vezes.

Á margem das fontes fazem argamassa, carregando com os pés um pouco de terra, que desmancham e amassam com agoa, que vão buscar, e trazem unido ao pello de suas coxas. Assim preparado, vão carregando em varias partes do seo corpo.

1.º No pescoço.

2.º Nos pés.

3.º Na união das coxas contra seo corpo.

Não deixam seos filhos no nicho commum, porem fabrica cada uma o seo cubiculo á parte, á imitação da flor de meimendro, presa ou suspensa á algum pau, ou outra coisa coberta, longe do perigo de ventos e de chuva.

Levam muito tempo preparando seo nicho, e o enfeitam o mais que podem, com o brunidor do seo fucinho.

Depositam no interior sua semente, como fazem as abelhas, fecham a entrada, occultam-na, dormem á noite em commum, e ainda a madrugada está longe, e já ellas se despertam para montar guarda e fazer sentinella ao redor de sua habitação, fazendo guerra de morte a quem se lhe aproximar.

Posso dar noticias d’isto, porque um dia, indo a um canto de minha casa arrumar não sei o que, quando passei, bati, sem querer, com a minha cabeça no nicho, onde estava a mãe, e ella, julgando mal de minhas intenções, pensou que eu o fizesse por maldade, e cheia de colera, escolheo a parte mais delicada do corpo humano, isto é, os olhos, para vingar-se.

Permittio Deos porem que em lugar dos olhos me ferisse as sobrancelhas com o seo aguilhão.

Foi tão doloroso o golpe, e tão penetrante o veneno, que cahi por terra, batendo-me extraordinariamente todas as minhas veias, desde a planta dos pés até o cume da cabeça, como nunca senti em minha vida.

Recolhi-me a cama com o coração sobresaltado, inchou muito a parte offendida, e ardia como brasa.

Julguei perder o olho, e assim estive por muitos dias, ao depois fiquei bom.

Procream ainda de outra forma. Fazem um pequeno pucaro de barro, arredondado, similhante aos feitos pelas aranhas, como ja disse, deitam dentro suas sementes, que se transformam em vermes vermelhos, iguaes aos que se encontram nas ameixas das damas: adquire depois azas, e fica vespa.

Não tem os selvagens cantharidas em seo paiz, porem fazem muito apreço d’ellas e dão muitos generos para possuil-as. Trazem-nas os francezes, porque anteriormente já tinham ensinado aos selvagens as propriedades d’ellas, o que não se deve escrever: prova isto que os homens viciosos mais depressa gastariam esta nação do que ella o é por natureza.

Ha tambem insectos e vermes roedores mui subtis e engenhosos, com uma capa bonita e inteira, porem passando uma escova por cima, desapparece até o pello e fica só a urdidura.

O mesmo acontece aos vermes roedores dos bosques, que fazem grande sussurro.

Deos porem fez passaros que vae tirando das arvores taes vermes.