Viagem ao norte do Brasil/I/XLVI
CAPITULO XLVI
Das onças e dos macacos do Brazil.
A onça é o animal mais furioso do Brazil e é do tamanho dos galgos da Europa.
No rosto parece-se muito com o gato, tem bigodes horrivelmente dispostos, vista perspicaz e aterradora, pelle como a de lobo, manchada de negro á maneira da do leopardo, garras muito compridas, patas como de gato, cauda grande e maior que todo o corpo diminuindo pouco a pouco até a ponta, e com ella brinca n’um areial voltando-se para apanhal-a, e correndo para o mesmo fim, como fazem os gatinhos no meio de uma salla, divertindo-se cada um com o rabinho.
Ama a solidão, aborrece a sociedade, habita só nos bosques, e somente é acompanhada por occasião da sua juncção, o que feito retira-se a femea.
Nada receia, nada teme: pára vendo dirigir-vos á ella, ou fica no fim da estrada, por onde tendes de passar, de forma que ou voltareis, ou então combatereis porque não cede.
É melhor a retirada ainda que com algum vexame, do que por orgulho arriscar sua vida em luta com tal animal.
O Rvd. padre Arsenio assim o fez, vindo da aldeia da Mayoba para a nossa casa de S. Francisco, quando encontrou, ao meio dia, na estrada uma onça que veio esperal-o. Regressou para a aldeia, e assim evitou perigo tão proximo.
Não buscam os homens, e é raro encontral-as, e quando isto se dá o perigo é certo.
Não se atiram, e nem correm logo atraz das pessoas que vêem, antes dão-lhe tempo bastante para fugir, e apenas agarram um ou outro menino, porem raras vezes.
Tem muito medo de fogo a ponto de não se approximarem d’elle, e por isso evitam-nas os indios accendendo fogueiras em suas casas, sempre abertas quer de dia quer de noite.
Fazem guerra desabrida aos cães e macacos, vindo agarrar aquelles até junto ás aldeias, sem causarem o menor mal aos selvagens deitados em suas redes, e quando vão estes á caça, acompanhados por muitos cães, são estes devorados e comidos pelas onças, que fingem correr diante d’elles, e quando se acham longe de seos senhores, saltam sobre elles e facilmente os estrangulam.
Poucos escapam de suas garras para trazer noticias a seos senhores, que não os ouvindo ladrar, acreditam que as onças os comeram.
Não vão mais alem, e regressam mais depressa a casa onde suas mulheres e filhos choram a morte do cão, que elles levaram á caça com intenção de divertirem-se.
Si é perigoso atacar um soldado furioso, e victorioso de seos inimigos, ainda muito mais o é apresentando-se em tal occasião á vista das onças.
Caçam os macacos desta sorte: batem em circumferencia o bosque, onde se abrigam os macacos, encurralam-nos n’um ponto, onde se agrupam: então trepam as onças em varias arvores, e d’ali se atiram sobre os ramos e hastes de outras onde estão os macacos, e assim os apanham.
Empregam tambem outro ardil. Occultam-se debaixo de folhas n’um lugar, onde ellas sabem, que os macacos vem beber, ou quando estão pescando mariscos e carangueijos, então d’um só pulo agarram os que podem.
Fazem ainda mais.
Quando vêem ou ouvem que os macacos estão reunidos em qualquer lugar, vão surrateiramente arrastando a barriga pelo chão, como fazem os gatos quando querem agarrar algum ratinho, e depois estendem-se e fingem-se mortas.
Chega um macaco, pára, chama outros, que chegam logo, descem o mais que podem, sempre desconfiados, para verem e examinarem se na verdade está morto o inimigo: rangem uns os dentes, e outros como que fazem uma especie de discurso de congratulação por tal fim: eis senão quando resuscita o fingido morto, mais depressa do que elles sobe ao cimo da arvore, onde transforma a vida d’elles em morte, não simulada e sim real.
A onça só pare uma vez, e um só filho, como a leôa, e eis a razão de haverem poucas no Brasil. A onçasinha rasga o utero de sua mãe, que o nutre mui curiosamente até que fique em estado de cuidar por si de sua alimentação. Apesar de tal ruptura, unem-se em tempo proprio, porem não ha fructos d’esta união.
As onças são errantes, caminham por diversos logares, atravessam braços de mar, e quando falta-lhes pasto em terra, vão ao mar pescar carangueijos e outros iguaes bixos do mar.
Existem tambem onças marinhas, como ja disse quando fallei do Meary, tendo a parte anterior igual a da terra, e a posterior similhante a cauda de um peixe.
São tão furiosas, como as terrestres, e saltam da agua contra seos inimigos.
Machos e femeas veem-se livres dos filhos que trazem no ventre, á maneira das baleias, dos golfinhos e de outros peixes do mar.
Em Maranhão e seos contornos ha muita variedade de macacos:[NCH 78] uns grandes, fortes, barbados, e de sexo bem distincto, especie perigosa, e que nas mattas muito bem se defendem das invasões dos selvagens.
Contou-me um interprete que n’um certo dia um selvagem com uma flecha ferio a espadua de um destes macacos, e que elle tirou a flecha, arremeçou-a contra o selvagem e o ferio gravemente.
Atiram-se sobre as raparigas e mulheres, e forçam-nas si não são mais fortes do que elle.
Ha outros barbados, mais pequenos, que trazem mamas nos seios, e sexo bem visivel em lugar proprio.
São muito bem tratados pelos francezes: os selvagens os agarram atirando um projectil qualquer sobre elles, que cahem atordoados, e são assim amarrados.
Os triviaes são quasi que similhantes em sexo, e nem merecem descripção alguma.
Em geral os monos são agradaveis á vista.
Caminham um atraz do outro, e com tal cadencia no passo, que os que vem atraz assentam os pés e as mãos, onde assentaram os que foram adiante.
Fazem assim uma corda de duzentos á tresentos, e diria ainda mais, si não receiasse causar admiração ao leitor.
Achei-me muitas vezes nas mattas, onde elles habitavam e dir-vos-hei, sem precisar o numero, que vi grande quantidade d’elles na fórma ja dita.
Cousa agradavel o mais que se pode imaginar.
Arremeçam-se estes animaes de uma arvore a outra, de um ramo a outro, como faria um passaro bem voador, e o fazem com tal prestesa, que mal se vê.
Si vos descobrem debaixo de alguma arvore, fazem incrivel matinada, e depois de vos fazerem muitas caretas e de dizer-vos mil injurias em sua linguagem, embrenham-se pelos mattos.
Nunca deixam em hora certa,[NCH 79] á tarde ou noite, de ir beber agoa, mas sabeis com que subtileza?
Pára o grosso do exercito na distancia de 300 passos da fonte, manda espias para examinar a fonte e suas circumvisinhanças, espreitam si nada ha que os assuste, examinam com cuidado si ha embuscada de algum inimigo, e apenas o descobrem gritam com voz forte e correm a reunir-se ao exercito.
Voltam depois de algum tempo e praticam o mesmo.
No caso de segurança gritam e ganem para vir o exercito, e chegado este ainda usa de outra velhacaria.
Bebem todos um a um: á medida, que um bebe, passa alem e trepa n’uma arvore, e assim até o ultimo: assim bebem, passam para outro lado, por onde não vieram e ahi acabam a fieira.
Deixam a fonte e vão em tumulto procurar seos amores, e n’isto ha ordinariamente grandes gritarias, gemidos, mordiduras e arranhamentos, porque querem os mais fortes escolher as damas e serem servidos em primeiro lugar.
Nada digo sem experiencia e tudo isto presenciei todas as tardes na nossa fonte de S. Francisco.
Vão pescar sempre em companhia, carregando ás macacas ás costas seos filhos.
Pescam carangueijos e mariscos.
Antes de agarrarem os carangueijos, quebram-lhe as tezoiras para livrarem-se das mordidellas, depois quebram-nos com os dentes, e, se estão rijos, com pedras, e o mesmo fazem com os mariscos.
Cuidam muito as mães no sustento dos filhos, antes de poderem elles por si buscal-o; tiram o marisco e o carangueijo da concha, limpam-no muito bem, e offerecem ao filho nas costas, e estes o agarram e comem.
Nunca vão para longe das arvores: é o seo refugio apenas ouvem algum motim, ou vêem alguem, e por isso para as suas pescarias escolhem lugares proximos á arvores altas e copadas.
Si veêm passar uma canoa de selvagens, muito longe d’elles, saudam-nos rindo a seu modo, si se aproxima a canoa, fogem, e ninguem os pilha.