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Viagem ao norte do Brasil/I/XXXI

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CAPITULO XXXI

Da morte e dos funeraes dos Indios.


Jacob despresou duas irmans Lya e Rachel, o que é diversamente explicado por Padres e Doutores. Tomarei somente o que convem á historia, isto é, que Deos tem duas filhas a Naturesa e a Graça, que dá por esposa aos seos escolhidos.

A Naturesa é imperfeita, porem fecunda como Lya: a Graça é de formosura inexcedivel, porem esteril como Rachel. Ambas são irmans: basta vel-as para reconhecer-se, e como taes são seos filhos-irmãos germanos; differençando-se apenas por linhas diversas, isto é, n’um ponto de ceremonia, nas ultimas homenagens prestadas a seos parentes, reconhecemos facilmente a verdadeira religião e os seos herdeiros.

Acha-se isto tão naturalmente gravado no fundo da alma das nações as mais barbaras, que serve de argumento mui positivo para provar acharem-se em verdadeira graça os que prestam homenagem aos seos defunctos.

Em caso contrario prova-se que estão em poder do gentilismo, e em opposição ao instincto puramente natural, imitando n’este caso os brutos, não fazendo caso dos seos amigos fallecidos, especialmente da sua alma, melhor parte de sua composição.

É a maldição dada por Job, no cap. 18 — Memoria illius pereat de terra, et non celebretur nomem ejus in plateis, «desappareça da terra a sua memoria, e nem seja seo nome pronunciado na rua.»

Symmachus explicando diz Non erit nomem ejus in faciem fori — não chegará seo nome ao foro dos senadores, e mais claramente Policronius Nec in amicorum versabitur memoria «nem seos amigos se recordarão d’elles,» grande maldição, visto que os povos os mais selvagens do Universo que são os habitantes do Brasil nada mais receiam, após a morte, do que não serem chorados e lamentados, isto é, que para elles, na morte, não hajam da parte dos seos parentes, lagrymas, lamentações, e outras ceremonias embora supersticiosas.

Quando se acham muito doentes estes selvagens, e por seos parentes julgados em perigo de vida, perguntam-lhes o que desejam comer antes da morte, e saciam-lhes o desejo.

Em quanto doentes alimentam-se com farinha de mandioca e ionker «pimenta da india,» misturada com sal, julgando com tal dieta, abuso inaudito entre elles, recobrarão a antiga saude.

Vi um homem e uma mulher da nação dos Tabajares, que tinham só pelle e ossos, parecendo-me terem apenas vida por dois dias, e por isso os baptisei logo, apenas me pediram, e escaparem da morte tomando taes caldos.

Quando chega a hora da morte, reunem-se todos os seos parentes, e geralmente todos os seos concidadãos, cercam-lhe o leito do moribundo, os parentes mais perto, depois os velhos e as velhas, e assim de idade em idade: não dizem uma só palavra, olham-no com toda a attenção, banham-se de lagrymas constantemente; mas apenas a pobre creatura exhala o ultimo suspiro, dão berros e gritos, fazem lamentações compostas por uma musica do vozes fortes, agudas, baixas, infantis, emfim de todo o genero, que infallivelmente enternece todos os corações, embora sejam naturaes todas essas dores e lagrymas, sem conhecimento do bem e do mal, que poderá gozar esse espirito desprendido do corpo morto.

Depois de muitas lamentações, o Principal da aldeia ou o Principal dos amigos fazia um grande discurso muito commovente, batendo muitas vezes no peito e nas coxas, e então contava as façanhas e proesas do morto, dizendo no fim — Ha quem d’elle se queixe? Não fez em sua vida o que faz um homem forte e valente?

Conto isto porque presenciei-o tres ou quatro vezes, lembrando-me de haver lido e notado em Polybio, Livro 6º, e em Deodoro da Sicilia, Livro 2º, cap. 3º, terem os antigos Romanos o costume de levarem seos defunctos á Praça publica, e ahi o filho mais velho da casa, ou o principal herdeiro em falta de filhos machos e de maior idade, subia á uma especie de theatro, e desfiando todos os louvores, que podia fazer ao morto, seo parente, desafiava todos os assistentes para que o accusassem, si podessem, afim d’elle defendel-o, e depois convidava-os a acompanharem o corpo até a sepultura.

Voltemos aos nossos selvagens. Acabado que seja o choro e o discurso tomam o corpo, ja cheio de pennas na cabeça e nos braços, uns o vestem com um capote, outros lhe dão um chapeo, si o ha, trasem-lhe o massinho de petum[NCH 48], seo arco, frexas, machados, foices, fogo, agoa, farinha, carne e peixe e o que em vida elle mais apreciava.

Faziam depois um buraco fundo e redondo em fórma de poço: assentavam o morto sobre seos calcanhares conforme era o seo costume, e á cova desciam-no de mansinho[NCH 49] accommodando ao redor d’elle a farinha, a agoa, a carne, o peixe e ao lado de sua mão direita afim de poder pegar em tudo com facilidade e na esquerda arrumavam os machados, as foices, os arcos e as flexas.

Ao lado d’elle faziam um buraco, onde accendiam fogo com lenha bem secca afim de não apagar-se, e despedindo-se d’elle o incumbiam de dar muitas lembranças á seos paes, avós e amigos, que dançavam nas montanhas, alem dos Andes, onde julgam ir todos depois de mortos.

Uns dão-lhe presentes para levarem a seos amigos, e outros lhe recommendam, entre varias coisas, muito animo no decorrer da viagem, que não deixem o fogo apagar-se, que não passem pela terra dos inimigos, e que nunca se esqueçam de seos machados e foices quando dormirem n’algum lugar.

Cobrem-no depois pouco á pouco com terra, e ficam ainda por algum tempo junto á cova, chorando-o muito e dizendo-lhe adeos: de vez em quando ahi voltam as mulheres ora de dia ora de noite, choram muito e perguntam á sepultura, se elle ja partio.

A proposito contarei tres historias interessantes.

Enterraram um bom velho em distancia de 50 passos de minha casa. Dia e noite consumiam-me as velhas com seos choros.

Para adquirir socego lembrei-me de mandar esconder n’uma moita em caminho, perto da cova, dois rapazes francezes, que commigo moravam. Mais adiante mandei tambem esconder dois escravos nossos, a quem ensinei o que deviam fazer.

A noite todos occuparam as suas posições, e no fim de um quarto de hora quando vieram as velhas, todas juntas, e que principiaram a gritar na cova, responderam os franceses, imitando Jeropary, e ellas cheias de susto despararam a correr, e quando no caminho encontraram outros dois Jeropary, redobraram de esforços, e saltando por abrolhos e espinheiros chegaram á casa mais mortas do que vivas, e ahi sobresaltando a todos mandaram fechar as portas para que não entrasse o tal Jeropary.

Estava eu perto e muito gostei d’esta comedia por alcançar socego, visto não regressarem mais as velhas.

Morreo um selvagem, e foi enterrado na estrada perto de São Francisco, lugar no Forte de São Luiz.

Fora baptisado antes da sua morte, e com tudo, sem sciencia nossa, enterraram-no ahi e com as ceremonias que já descrevi. Mortifiquei-me muito com isto, ralhei bastante, porem não pude descobrir o culpado por já haver decorrido tres ou quatro dias.

Passando por ahi achei sua mulher, que voltava da roça, assentada sobre a sepultura, chorando amargamente, e espalhando n’ella algumas espigas de milho.

Indagando-lhe o que fazia, respondeo-me estar perguntando a seo marido si elle ja tinha partido, porque receiava haverem amarrado muito as suas pernas, e não lhe terem dado a sua faca, pois havia levado comsigo apenas o seo machado e sua foice, e que lhe trasia o milho para comer e partir no caso de já não ter mais provisões.

Fil-a sahir, mostrando como pude, a sua ignorancia e superstição.

Falleceo um menino com doença no ventre, de dois annos de idade, e duas horas depois de baptisado.

Eu, o Sr. de Pezieux, e outros franceses fomos amortalhal-o n’um lençol d’algodão.

Encontramos o corpo cercado por muitas velhas, fazendo algasarra capaz de quebrar uma cabeça de aço, carregado de missangas, que trasem para ahi os francezes, e de muitos busios, de que usam nos seos adornos e enfeites para as grandes festas.

Não podemos convencer ás velhas afim de serem tirados taes enfeites, e sendo assim mesmo conduzido n’uma prancha por um francez, fizemos o seo funeral a maneira da Europa, levando o seo corpo á capella do Forte de São Luiz, onde recitamos as orações prescriptas pela Igreja para esse fim.

Seguiram-nos as velhas de bem perto, e não se animando a entrar, começaram a entoar uma musica tão alta e forte, que não nos entendiamos dentro da Igreja.

Imposemos silencio, e foi o corpo enterrado no cemiterio junto á capella.

As velhas se metteram entre os francezes, umas trazendo fogo, agoa, farinha, e outras o mais que ja dissemos para o caminho, o que mandei deitar fóra fazendo-lhes vêr a asneira por intermedio do interprete.

Recolheram-se as suas casas, onde se fartaram de chorar.