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Viagem ao norte do Brasil/I/XXX

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CAPITULO XXX

De algumas molestias particulares a estes paizes de indios, e de seos remedios.


O Genesis nos ensina, como explicam os doutores haver Deos dado aos homens contra todos os males o fructo de uma arvore, a maneira da Theriaga.

Este mesmo Deos, sempre bom para com todas as creaturas, embora pequenas e longe d’elle, prevendo que esta infeliz raça de selvagens viveria, por longos annos, vagabunda e nua pelas grandes florestas do Brasil, lhes deo muitas especies de arvores e hervas para o curativo de suas feridas e molestias.

Tem este paiz muitas arvores medicinaes, gommas salutiferas, e excellentes hervas, como não ha em parte alguma.

O tempo e o estudo hão de fazel-as conhecidas.[NCH 46] Vi tirar-se da casca de certa arvore uma especie de almecega, similhante á que cresce nos jardins da Europa, e dizem os selvagens que serve para toda a molestia, e assim a empregam. Contam mais, que todos os animaes ferozes quando se sentem feridos ou doentes, recorrem a esta arvore para curarem-se, e por isso raras vezes se encontra uma só com toda a sua casca, por ser roida constantemente por todos os bixos.

Encontra-se tambem crescida nas folhas das arvores uma especie de gomma branca, de côr prateada, e que dizem ser muito boa para certas chagas.

Ha outra gomma, tambem branca, optima para limpar chagas e fazer suppurar os abcessos profundos fazendo seo effeito em 24 horas.

Vi o seo emprego n’um moço francez, que estava commigo o qual tinha, por causa dos bixos, os pés e as pernas tão estragados e inchados a ponto de receiarmos que as perdesse: coisa horrivel e impossivel de narrar-se bem: fez-se applicação de emplastos d’esta gomma nas pernas e pés, e no dia seguinte estava são como si antes não tivesse coisa alguma, porque puchando os bixos do interior das carnes onde se achavam á superficie das feridas, ahi pela cabeça se grudaram os emplastos, e assim morreram todos em numero consideravel, limpando muito bem a chaga e deixando-a viva e vermelha.

Não fallarei de outras hervas e balsamos, e nem d’um milhão de hervas, das quaes se podem destillar espiritos e essencias, porque desejo fallar de certas molestias, reinantes n’este paiz, dos remedios, que contra ellas se applicam, não porque seja a terra doentia e insalubre, antes muito boa e saudavel, especialmente de junho a janeiro: durante este tempo as brisas, isto é, os ventos de Este ou do Oriente sopram constantemente, livrando o paiz de vapores pestillenciaes, e por isso raras vezes adoecem os selvagens, e a fallar a verdade, elles só tem uma molestia, de que morrem.

São os francezes muito mais sujeitos á doenças, como a experiencia fez conhecer a mim e a outros, porem creio ser isto devido ás necessidades e miserias, porque passamos no principio do estabelecimento ou da fundação e não a outra causa.

Tinham então os francezes poucas commodidades, porem ja começavam a gozal-as quando deixei a Ilha.

Não desejo a pessoa alguma taes necessidades e molestias, porem fiquem todos certos e convencidos de que não soffrerão a centesima parte do que soffremos.

Das suas molestias a primeira chama-se Pian, que vem da palavra , que quer dizer «caminho», ou, se quereis, «pé,» por originar esta molestia do escarro, ou da sanie, espalhado no chão, por onde se caminha: começa ordinariamente debaixo dos dedos dos pés, do tamanho de um liard,[1] de côr negra: os indios chamam esta mancha Aipian, isto é, a «Mãe Pian,»[NCH 47] porque d’ella descendem todas as outras chagas e postemas, que esta horrivel molestia espalha por todo o corpo á maneira de uma herva ou arbusto, que sahindo d’esta Mãe Pian, como de uma raiz, fosse sempre crescendo, subindo, e espalhando, pelo corpo ramos, folhas e olhos, que enchesse interna e externamente o doente de crueis dores, e de incrivel putrefacção, das quaes muitos morrem. Dura pouco mais ou menos dois annos.

Si um francez soffrer esta molestia deve curar-se perfeitamente antes de regressar ao seo paiz, porque não ha remedio no mundo, excepto no Brasil, que a cure, a não ser o rhuibarbo commum, isto é, a morte, que cura todos os males.

Ja disse como esta molestia chega accidentalmente: vejamos agora sua origem e fonte ordinaria e natural afim de prevenir os francezes, que la forem.

Esta molestia ataca os francezes, como o mal de Napoles, por excessiva communicação com as raparigas indigenas: para evital-a convem a vida casta, ou então que tragam suas mulheres, ou que se casem com as indias christãs, visto ser o casamento poderoso antidoto contra tal veneno, o que se observa mesmo no casamento natural dos indios, os quaes não soffrem o grande mal, se não o tem adquirido algures, e sim o pequeno, que todos soffrem na vida, similhante a syphilis e a variola na Europa.

Esta bouba grande excede em dor e sordidez, sem comparação, ao mal de Napoles, e com razão, porque merece ser punido n’esta vida o peccado, que commettem os francezes com as Indias, arrebatando de nossas mãos, estas infelizes almas quando pretendiamos salval-as, si com seos maus exemplos não as conduzissem ás fornalhas da lubricidade.

Meditem bem os que são capazes de commetterem taes crimes, na conta que darão a Deos por haverem causado o damno e a perda d’estas pobres almas indigenas.

Si a vida eterna é somente concedida aos que buscam a salvação de outrem, que lugar esperarão os que, para satisfação de brutaes desejos, seduzem essas pobres creaturas a ponto de fazel-as despresar as prédicas do Evangelho e a sua propria salvação?

Tempo e paciencia são os principaes remedios para esta molestia; os suores aproveitam muito, mitigam e encurtam o tempo, bem como as dietas e o regimen de vida.

A experiencia tem mostrado, que para estas molestias a carne mais propria é a do tubarão (não usada pelos sãos, por lhes fazer vomitar até sangue, e produzir-lhes grandes molestias) cozida com hervas duras e amargas, que se encontram em todo o paiz.

Por um momento de prazer soffrem mil dores, e o que para os bons é veneno para elles é carne saudavel, embora de mau gosto.

É costume d’este astuto Boticario Satanaz untar o bordo do copo com mel ou assucar para se beber de um só trago o veneno, que depois vae roer e encher de dor as entranhas: quero dizer, que ao peccador apresenta o prazer, e não o seo castigo, e bem depressa experimenta o desgraçado, que o prazer vôa, porem a dor é eterna.

O Sr. de Ravardiere, outros francezes, e eu sobre todos, soffremos intensas febres quartans, terçans, e incertas, as quaes depois de haverem mortificado muito o corpo, deixam dores nos rins, produzem colicas insuportaveis com vomitos continuos, sempre debilitando o corpo, resfriando e contrahindo o estomago, acompanhada por continua fluxão do cerebro, que se espalha pelos braços, coxas, e pernas, tornando-as sem acção, á similhança de uma estatua ou pedra immovel.

Parece-me que é a molestia, que ceifa maior numero de selvagens tornando-os ethicos e paralyticos.

Os remedios para estas molestias são — o beber menos agua que fôr possivel, porque o sabor das aguas alterado com o calor da febre, faz beber muita agua, perdendo o estomago seo calor proprio, adquirindo grande crueza e fraqueza, de que resulta não só a sua constricção, mas tambem a pituita e outros humores corrompidos: presentemente como ha cerveja espero que não sejam frequentes estas molestias e que não chegarão ao excesso, que vi, e cujas consequencias ainda sinto.

O vinho e a aguardente são bons para aquecer o estomago, e por isso aconselho aos que lá forem, que poupem muito o seo vinho e aguardente para essa e outras necessidades, e não os gastem prodigamente em deboches, mórmente sendo a cerveja, ahi feita com milho bom, muito mais saborosa e saudavel, por causa do continuo calor, do que o vinho e a aguardente.

As boas bebidas são o unico remedio, e as aves e ovos ahi em abundancia são o alimento d’esses doentes.

As outras molestias são o defluxo e violentas dores de dentes por causa da humidade da noite nesta Zona tórrida, como bem notou o jesuita Acosta, na sua Historia dos Indios, a qual pode recorrer o leitor, visto que nada quero dizer ou escrever sem sciencia propria.

É tão forte a humidade da noite, que produz ferrugem nas espadas, mosquetes, facas, machados e machadinhos, que corroe e destroe não havendo cuidado de os limpar.

São mui frias as fluxões do cerebro, pois descendo á raiz dos dentes apodrecem-nos e os fazem cahir.

São remedios especiaes á estes males a applicação de cauterios no pescoço e braços, e cobrir bem a cabeça durante a noite.

Todos os annos reina doença de olhos, das quaes poucos escapam especialmente os Franceses, porque dura apenas oito dias, sendo por sua vehemencia antes furor do que molestia, e si se não atacar logo corre-se o risco de vêr-se somente metade do mau tempo.

È facil o remedio: tome-se um pouco de vitriolo, deite-se n’uma garrafa cheia d’agoa bem limpa, e d’ella se derrame um pouco nos olhos bem abertos e fixos, abstendo-se de tocal-os, tendo-os sempre cobertos, e não os expondo ao vento e nem ao sol, porque senão o mal redobra visto que sendo formada esta molestia de uma fluxão quente e acrimoniosa, si esfregardes os olhos e vos expôrdes a acção do vento e do sol, mais exacerbareis o vosso mal.

 

  1. Quarta parte de um soldo de França. — Do traductor.