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Viagem ao norte do Brasil/I/XXXIII

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CAPITULO XXXIII

Viagem do capitão Maillar,[NCH 53] pela terra firme á casa de um grande feiticeiro. Descripção d’esta terra e das zombarias d’elle.


É verdade, reconhecida por todos que hão habitado o Brasil, não ser a terra firme tão bonita e tão fertil como as Ilhas.

São as ilhas formadas por areia preta e fina, queimada e ardente pelo continuo calor, e por isso são ellas mais sujeitas n’esta Zona tórrida aos calores e ardores, porque o mar redobra pela reflexão e poder da luz do Sol sobre a capacidade proxima e concentrica da terra, o que se prova por meio dos espelhos ardentes, cujos centros sendo opacos, e mais elevados do que suas circumferencias e bordas, os raios do sól se reunem e concentram ahi, produzindo fogo e chama, e assim queimando os objectos convenientemente dispostos n’esses lugares.

Ouvindo o Sr. de la Ravardiere os indios fallarem muitas vezes de uma localidade muito boa, distante 100 ou 150 legoas do Maranhão, na terra firme para as bandas do rio Mearim e longe d’elle 40 ou 50 legoas, mandou uma barca e canoas com o capitão Maillar de São Maló, alguns francezes, e um cirurgião, todos muito conhecedores da natureza das hervas e arvores preciosas.

Ahi vivia, vindo do Maranhão, um dos seos principaes feiticeiros, com 40 ou 50 selvagens, entre homens e mulheres, n’uma aldeia, que edificara, cultivando a terra, que tudo lhe produzia em abundancia, e por isso abusando da credulidade dos Tupinambás este miseravel lhes dizia possuir um espirito com o poder de fazer a terra dar-lhe o que quizesse.

Ahi chegou o capitão com muitas difficuldades, passando vasta e comprida planicie de juncos e caniços, atravessando agoa pela cintura, e depois de alguma demora regressou contando-nos o seguinte.

A terra d’esta localidade é dura, gorda e negra, boa para a cultura da canna do assucar, e muito melhor que a de Pernambuco, o que bem podia avaliar por ter residido por muitos annos ahi e em outros lugares possuidos pelos portuguezes.

A terra é cortada por muitos riachos capazes de moverem engenhos para o fabrico do assucar.

Ha abundancia de peixes d’agoa doce, grandes e de varias qualidades; são innumeraveis as tartarugas; existe toda a qualidade, e em quantidade inexprimivel, de caça, como sejam viados, corças, javalis, vacas-bravas, e diversas especies de tatús, muitos coelhos e lebres, iguaes ás de França, porem mais pequenas, immensa variedade de passaros, como sejam perdizes, faisões, mutuns,[NCH 54] pombas bravas, trocazes, rolas, garças-reaes, e outras admiraveis.

A terra produz raizes tão grossas como a coxa: o tabaco petum ahi cresce forte e optimo, e dizem que dá duas colheitas por anno.

O milho cresce forte, cheio, e dá muitas espigas.

Ha fructas muito melhores, e em maior quantidade do que na Ilha, em Tapuitapera, e Comã, papagaios de varias côres e diversos tamanhos, notando-se entre elles os Tuins,[NCH 55] do tamanho de pardaes, os quaes aprendem com facilidade a fallar, porem morrem de mal quando são levados para a Ilha: vi entre muitos salvarem-se apenas seis, os quaes comendo, cantando, e dançando em suas gaiolas, sem apparencia de molestia, davam duas ou tres voltas e morriam logo.

Ha tambem muitos macacos e monos barbados, bonitos e raros, e que seriam muito apreciados em França, se lá chegassem.

Ahi residia um barbeiro ou feiticeiro muito bem arranjado e com todas as commodidades.

Tinha vindo, um pouco antes d’esta viagem, fazer suas feitiçarias e nigromancias para ganhar o vestuario e a ferramenta dos selvagens do Maranhão e leval-os comsigo quando fosse para a sua terra. Estas feitiçarias eram diversas.

Tinha uma grande boneca, que com artificio se movia, especialmente com o maxilar inferior; dizia elle ás mulheres dos selvagens, que si desejavam vêr quadruplicada a sua colheita de grãos e legumes trouxessem e dessem á ella alguns d’estes generos, afim de serem mastigados tres ou quatro vezes, e por esta forma recebendo a força de multiplicação do seo espirito, que estava na boneca, podiam depois serem plantados em suas roças, pois já comsigo levavam a força da multiplicação.

Gozou de muita influencia por onde passou, muitas foram as dadivas das mulheres, e mal satisfazia o que promettia, guardavam ellas com todo o cuidado os legumes e grãos mastigados.

Estabeleceo uma dansa ou procissão geral fazendo com que todos os selvagens levassem na mão um ramo de palmeira espinhosa,[NCH 56] chamada tucum, e assim andavam ao redor das casas, cantando e dansando, para animar, dizia elle, o seo espirito a mandar chuvas, então n’esse anno mui tardias: depois da procissão cauinavam (bebiam cauim) até cahir.[NCH 57]

Mandou encher d’agoa muitas vasilhas de barro, e rosnando em cima d’ella não sei que palavras, ensopava um ramo de palmeira, e com ella aspergia a cabeça de cada um d’elles, dizendo «sêde limpos e puros afim de meo espirito enviar-vos chuva em abundancia.»

Tomava uma grande tabóca de bambu, enchia-a de petum, deitava-lhe fogo n’uma das extremidades, e depois soprava a fumaça sobre os selvagens dizendo «recebei a força do meo espirito,[NCH 58] e por elle gozareis sempre saude, e sereis valentes contra vossos inimigos.»

Plantou no centro d’aldeia uma arvore de maio, carregou-a de algodão, e depois de haver dado muitas voltas e vira-voltas em redor, lhes prognosticou grande colheita n’esse anno.

Apezar de tudo isto não vindo a chuva, dia e noite fazia elle dançar e cantar os selvagens, gritando com quanta força tinham afim de despertar seo espirito, como faziam outr’ora os sacrificadores de Baal.

Com tudo isto não choveo.

Fez acreditar á estes selvagens, que elle bem via o seo espirito, carregado de chuvas, do lado do mar, porem que não se animava a vir por causa da Cruz, erguida no centro da praça, fronteira a Capella de N. S. d’Vsaap, e que se quizessem ter chuva não havia mais do que deital-a por terra, e teriam concordado n’isto facilmente, pondo-o logo em execução se ahi não estivessem os Francezes, e si não temessem o castigo.

Chegando estas noticias ao Forte, mandou-se immediatamente o Cão-grande e alguns Francezes para irem buscar o feiticeiro afim de vêr si elle poderia dançar no meio d’uma sala, contra sua vontade, e teria sido preso si, advertido como foi, não preparasse sua bagagem, e com sua equipagem não se salvasse n’uma canôa, mandando desculpar-se, d’ahi ha pouco tempo, por um seo parente trazendo muitos presentes com o fim de fazer pazes.

Fez crer aos selvagens da Ilha, que tinha um espirito muito bom, que era muito amigo de Deos, que não era mau, e que por tanto só podia fazer bem.

Dizia elle: «come commigo, dorme, caminha diante de mim, e muitas vezes vôa diante dos meos olhos, e quando é tempo de fazer minhas hortas, só tenho o trabalho de marcal-as com um pau a sua extensão, e no dia seguinte acho tudo prompto.»

Sabendo alguns selvagens christãos, que pretendiamos castigar seo companheiro que d’elles tanto abusou, me pediram, que me condoesse d’elle e que nada soffresse por não ter sido mau e nem o seo espirito, visto terem ambos feito crescer os bens da terra. Ensinei-lhes a este respeito o que deviam crêr.

Vede, meos leitores, quanto Satanaz é astucioso: similhante á um macaco imita as ceremonias da Igreja para elevar sua superstição, e conservar sob seo dominio as almas dos infieis por essa procissão de palmas, essa aspersão d’agoa, esse sopro de fumo para communicar o espirito, de que fallaremos mais simplesmente no Tratado do espiritual.