Viagem ao norte do Brasil/I/XXXIV
CAPITULO XXXIV
Da vinda dos Tremembés, como foram perseguidos, suas habitações, e procedimento.
N’esse tempo a nação dos Tremembés, moradora alem da montanha de Camussy, e nas planicies e areiaes da banda do rio Tury, não muito distante das Arvores Seccas, das Areias Brancas, e da pequena Ilha de Santa Anna, sahio, sem esperar-se, para a floresta, onde se aninham os passaros vermelhos, e para os areiaes onde se encontra o ambar gris, e se pesca grande quantidade de peixes, com intenção, de surprehender os Tupinambás, seos inimigos irreconciliaveis, o que malogrou-se, visto que muitos Tupinambás da Ilha tendo ido ahi com o fim especial de pescar, foram accommettidos pelos Tremembés,[NCH 59] sendo uns mortos immediatamente, outros captivos sem saber-se o que d’elles fizeram, e finalmente alguns embarcados n’uma canôa poderam salvar-se regressando á Ilha do Maranhão, onde contaram tão tristes casos causando nas aldeias, a que pertenciam os mortos, tanta indignação, que todos, vóz em grita e chorando, especialmente as mães e as mulheres, insistiram pela vingança, ao que acquiesceram os Principaes, vindo pedir aos francezes um chefe e alguns soldados, no que foram satisfeitos.
Japy-açú foi o conductor d’este exercito[NCH 60] composto de grande numero de selvagens, e acompanhado por alguns francezes.
Atravessaram o mar entre a ilha e as areias brancas, saltaram em terra para descançar e passar a noite pescando uns, caçando outros, e as mulheres e as filhas procurando agoa pelos areiaes, a qual não podia ser senão salôbra, isto é, meia doce e meia salgada, armando as redes, fazendo fogo e preparando a comida.
Os mancebos Tupinambás fizeram Aiupuues, (choupanas) tanto para os Principaes como para os Francezes: na melhor auipaue alojou-se o Coronel, e os Capitães armaram suas redes ao redor da do Coronel, ceremonia que observam em todas as suas guerras, especialmente quando se acham perto do inimigo.
Escondem o fogo com receio de não serem á noite descubertos pelos inimigos, por ser costume geral d’elles o fazer subir no cume de arvores muito altas suas sentinellas afim de descubrirem fogo ou luz dos inimigos.
Na manhã seguinte puzeram-se em marcha até um grande areial cercado de mato por tres lados, e de mar pelo ultimo: ahi encontraram as choupanas dos Tremembés, uma panella portugueza, e combinando isto com o que já sabiamos anteriormente, ficamos sabendo, que os Portuguezes estavam na Tartaruga, na serra de Camussy, unidos aos Tremembés, aos Montagnars, tanto de Ybuapap como de Mocuru, principalmente com Jeropary-uaçu, isto é, com o Grande-diabo, principe e rei de uma grande nação de Cambaes,[NCH 61] muito amigo dos francezes, e inimigo natural dos portuguezes, podendo afiançar-se com certesa, que si os francezes ahi fossem, elle trahiria os portuguezes e unindo-se a elles, por ser mulato-francez, isto é, filho de um francez e de uma india.
Voltemos ao nosso proposito.
Encontraram os nossos selvagens ainda vivo um dos seus, que fugio para o mato, e escondeo-se no concavo de uma arvore; porem ouvindo o som das trompas de guerra, que eram feitas de um grosso madeiro cavado, tendo as aberturas superior e inferior similhantes á uma trombeta, sahio muito magro, e quase que sem figura humana por não ter comido durante oito dias senão folhas da arvore, onde escondeo-se: ensinou, como lhe permittiram suas forças, o lugar onde jaziam mortos seos companheiros, que foram encontrados com as cabeças rachadas, e sobre seos corpos os machados de pedras, instrumentos d’essas atrocidades, por ser costume entre elles nunca se servirem d’uma arma com que ja mataram um inimigo.
Caruatapyran, um dos Principaes de Comã, trouxe-me um d’esses machados de pedra, ainda tinto de sangue, com alguns cabellos adherentes, e com um pouco do cerebro do Principal Íanuaran, que com elle foi morto, o que se soube por ser encontrado sobre seo corpo.
Caruatapyran pegando um d’esses machados, feito em fórma de crescente, ensinou-me o que eu não sabia, dizendo-me terem os Tremembés o costume mensal de vellar toda a noite fazendo seos machados até ficarem perfeitos, em virtude da superstição, que nutriam, de que indo para a guerra armados com taes instrumentos nunca seriam vencidos, e sim sempre vencedores.
Em quanto os homens e as mulheres se entregavam a este trabalho dançavam as moças e os meninos a frente das choupanas ao luar do crescente.
São valentes os Tremembés e temidos pelos Tupinambás; d’estatura regular, mais vagamundos do que estaveis em suas moradias: alimentam-se ordinariamente de peixes, porem vão á caça quando lhes apraz: não gostam de fazer hortas, e nem casas: moram debaixo das choupanas; preferem as planicies ás florestas porque com um simples olhar descobrem tudo quanto está ás suas vistas.
Não conduzem após si muita bagagem, pois contentam-se com seos arcos, flexas, machados, um pouco de cauï, algumas cabaças[NCH 62] para guardar agoa, e umas panellas para cozinhar a comida: com mais destresa que os Tupinambás pescam á flexa: são tão robustos a ponto de segurarem pelo braço um dos seos inimigos e atirarem-no ao chão, como se fosse um capão. Dormem n’areia ordinariamente.
Servem-se d’este lugar de areias brancas, e de arvores seccas para agarrar os Tupinambás, como ratoeira para pilhar ratos, e isto por tres razões.
A primeira, por causa da pesca, ahi abundante e variada.
A segunda, por causa de uma floresta, onde os passaros vermelhos de todas as partes vem fazer ninho para desovar. Não deixam de ir ahi em certo tempo os Tupinambás para tirar do ninho os filhótes e os ovos meios chocos, havendo abundancia impossivel de descrever-se, levando, quando regressão á villa, provisão para dois mezes, preparando antecedentemente uns assados, e outros seccos e duros como paus, o que nunca me agradou, e a fallar verdade, nunca pude comel-os, embora sejam para os selvagens o primeiro prato, e bem delicioso. Logo contarei alguns uzos particulares, e bem notaveis, d’estes passaros.
O terceiro motivo é para colher o ambar-gris, chamado pelos Tupinambás Piraputy «excremento de peixes,»[NCH 63] por que elles pensam ser o ambar-gris o excremento das baleias, ou de outros peixes iguaes em corpulencia, o qual vindo á tona d’agoa, é pelas ondas atirado a essas praias.
Dizem alguns francezes não ser o ambar-gris outra coisa mais do que a «flor do mar,» a que os selvagens chamam Paranampoture, ou uma certa gomma do mar, Paranamussuk.
Decida o leitor como lhe aprouver.
N’estas areias encontra-se o ambar-gris em massa, mais n’um tempo do que n’outro, e algumas vezes chega a massa a tal tamanho e grossura, que merece ser guardada n’algum gabinete real, não podendo ser justamente apreçada e vendida. Acontece as vezes virem poisar sobre ellas todos os bixos, passaros, carangueijos, lagartos, e outros reptis d’ahi, das circumvisinhanças, e do mar, e com elles as vêem procurando-as com cuidado, e por isso são essas grandes massas partidas em varios pedaços.
Aconselhei a elles, que ahi fizessem um Forte não só para impedirem as correrias dos Tremembés, como para tapar a entrada aos navios, que buscam a Ilha de Sant’Anna afim de colherem o ambar-gris; não ha duvida, que o mar atira muitas vezes sobre estas areias o ambar, que por ahi espalhado é comido por animaes, passaros e reptis, pois os selvagens da Ilha ahi vão apenas duas ou tres vezes durante o anno.
Tenho certesa, que a colheita do ambar chegaria para pagar as despezas do Forte, da sua guarnição, e do mais que fosse necessario.
Os nossos selvagens e francezes depois de muitas indagações por varios lugares somente acharam os corpos mortos dos seos, as choupanas, e vestigios de inimigos, e assim regressaram á Ilha mais famintos do que feridos.