Viagem ao norte do Brasil/I/XXXIX
CAPITULO XXXIX
Singularidades de algumas arvores do Maranhão.[NCH 66]
As arvores do Maranhão, em sua maior parte, são duras e pesadas, porque a solidez nas coisas mixtas provem da boa cocção da humidade.
N’este paiz existe em igual abundancia tanto a humidade como o calor, cada um durante a sua estação: as chuvas tem seo tempo proprio para alagar a terra, e o calor tambem o tem para coser e digerir esta humidade, que é nutricção dos vegetaes, especialmente das arvores, que estendendo suas raizes dentro e fóra da terra por ahi chupam muita agoa e sobrevindo o calor transforma a humidade em corpo solido.
As arvores estão sempre verdejantes por successão diaria e continua de folhas novas ás velhas, de fórma que, sahindo aquellas dos olhos dos ramos vão logo por força propria attrahindo a seiva, ficando d’ella privada as velhas, que por isso definham e cahem.
Observamos isto no nosso corpo quando uma unha nova vem substituir a velha.
Por esta renovação de folhas conservam-se as arvores no mesmo estado, o que não vemos na Europa porque o inverno retem no interior das arvores o calor natural d’ellas: é necessario que cáiam as folhas antes da ausencia do calor, ficando só a humidade, que apodrece o pé da folha em vez de lhe dar vigor como acontecia no tempo do calor, e por tanto assim se faz a queda das folhas.
No Brazil acontece o contrario porque vivendo o calor e a humidade em boa e perpetua companhia, novas folhas nascem ao mesmo tempo que as velhas cahem: geralmente, em todas as coisas notam-se tres estados: 1.º Crescer. 2.º Permanecer. 3.º Decrescer e assim sempre até morrer: eis o que observamos nas folhas — teem tempo para crescerem, ficarem perfeitas, e depois irem definhando até cahirem seccas.
Entre estas arvores merecem especial menção em primeiro lugar os mangues, arvores, que crescem nas barreiras do mar, e espalham seos ramos, e fibras sobre as areias do mar, ou entre as pedras que cobrem o limo, ahi se fortificam, engrossam, e chegando ao seo estado completo, começam elles mesmos a deitar novas fibras, que tem igual desenvolvimento, e assim se reproduzem infinitamente, não pelas raizes, como as outras arvores, e sim pelos seos ramos.
Não sei o que mais admirar, si a successão perpetua de pae a filho, ou a geração inteiramente diversa das outras arvores.
A razão, porque assim produzem estas arvores, provém de serem altas, pesadas e em seo principio finas e delgadas para a raiz, e grossas no centro: se nasciam da raiz de seo pae, nunca poderiam subir por causa da fraqueza e delicadesa de seo pé, da grossura e peso do seo meio, e assim ficam deitadas e rastejando pela areia, a que deo a natureza o encargo de dar dois nascimentos; um do ramo de seo pae, onde ficam perpetuamente encorporadas e por conseguinte bem sustentadas, outro da origem da enseiada do mar, na qual ellas aprofundam e estendem suas raizes, e d’ahi extrahem segunda nutrição, e assim sustentadas e nutridas por cima e por baixo com facilidade crescem.
Notae de passagem esta bella particularidade de terem dois nascimentos e duas nutrições: a primeira de cima consubstancial com o seo gerador, que com elle faz uma mesma essencia, sendo gerado, sahido d’elle, e sempre com elle e inseparavelmente vivendo de sua nutrição. O segundo nascimento e nutrição é debaixo do seio da areia do mar, nutrindo-se do mesmo mar, chamando para cima esta nutrição para unil-a com a que recebe de seo Pae: por estas duas nutrições cresce, estende seos ramos, dos quaes, de novo, por outro nascimento produz seos fios, que adquirem raizes dentro do mesmo mar, que o produz.
D’esta comparação eu me servia para fazer comprehender aos selvagens o Mysterio da Encarnação do Filho de Deos dizendo ter elle dois nascimentos, um de cima, eterno e divino, sahindo de seo Pae sem d’elle sahir, distincto de seo pae por hypostase como o ramo de mangue, com o filho gerado d’elle, unico comtudo na essencia e na substancia com seo gerador, como a fibra com seo ramo, vivendo de uma mesma nutrição divina e celeste, a saber, o amor do Espirito Santo, que constitue a terceira pessoa da Trindade: o outro nascimento é de baixo, temporal e humano, sahido do seio da Virgem Maria, nutrido com o seo leite sagrado, foi crescendo homem e Deos ao mesmo tempo, vivendo interiormente da nutrição divina, e exteriormente da nutrição corporal, e quando chegou á idade de 33 annos e meio, depois de haver communicado sua doutrina celeste aos homens, confirmada por seos milagres, estendeo seos braços, consentindo que fossem pregados na arvore da Cruz e do meio de suas chagas sahiram seos escolhidos, que depois tomaram raizes na Santa Igreja, regenerados pela agoa do baptismo, e nutridos pelos Sanctos Sacramentos.
Diziam-me os selvagens, que comprehendiam isto muito bem e sem a menor difficuldade, porque si Deos deo tal poder ás arvores, que não sentem, porque não poderia elle fazer o mesmo a si?
N’esse paiz existem arvores, que se mostram exteriormente seccas, sem folha alguma, e comtudo quando chega o tempo proprio brotam d’ellas em quantidade flores muito bellas e em cachopas, porem são de diversas cores e ordinariamente amarellas.
Encontra-se a razão d’esta particularidade no logar escolhido pela naturesa para terminar a sua acção: por exemplo; quando é liberal dando a qualquer membro um excesso de nutrição, é á custa dos outros: quando estas arvores dão sua seiva para formar uma casca grossa, verdejante e humida e cobrir de lindas folhas os seos ramos, não produzem bellas flores, as quaes naturalmente, em todos os vegetaes, formam-se de uma seiva bem digerida e subtil, e por tanto podendo subir facilmente até as extremidades dos ramos, não cuidando das outras partes da arvore para lhes dar qualquer nutrição.
Reconheci isto em França, onde se pódam as cerejeiras para não dar fructo, afim de com toda a sua seiva produzirem flores largas e dobradas, como rosas almiscaradas duplas.
Tambem existem outras arvores, que fecham suas folhas, e as dobram sobre si, quando o sol está no seo occaso, e apenas se levanta ellas desdobram-se e expandem, como acontece em França, ao Girasol.
Este phenomeno é devido á humidade ou sereno na noite, que as aperta e fecha porque o frio tem essa qualidade, e o calor do dia as abre e as expande por ter essa propriedade.
Com bastante difficuldade pude deparar com as razões naturaes de muitas singularidades, que vi em Maranhão, porem confesso com franqueza, que nunca achei a causa natural: certas arvores d’aquelle paiz, apenas se toca com a mão o seo tronco, immediatamente fecham todas as suas folhas: por certo haverá n’estas arvores alguma propriedade sensitiva, como ha na esponja, a qual apenas sente a mão do homem, que a pretende cortar, ella se aperta, e occulta-se no concavo e na fenda da pedra do mar, que a forma.
Os cajueiros, que produzem uma fructa propria para fazer vinho, nascem espontaneamente pela costa do mar, e por isso vivem da seiva maritima e salgada, resultando d’isto ser o vinho de cajú picante e acre, e produzir no futuro dores nos rins, e ser prejudicial aos pulmões.
Por experiencia coei este vinho, e d’elle tirei muito sal.
Ha espinhos, que dirieis serem creados por Deos para representar o mysterio da paixão de Jesus Christo,[NCH 67] porque crescem formando ramilhetes quatro em cima, equidistantes á maneira de uma Cruz, e um no cume com a ponta virada para o Ceo, ornado de nove folhas, dispostas como tres raminhos, cada um com tres espinhos, que em tempo proprio se transformam em tres flores, ficando o espinho maior no centro.
São estes cinco espinhos os instrumentos das cinco chagas de Jesus-Christo. Cercando a corôa de espinhos seo Chefe, como o espinho de cima é cercado de folhas, isto é, de peccados e de vaidades das tres idades do mundo, na lei da natureza, escripta e de fé, cujos peccados e imperfeições se transformam, pelo merecimento do sangue de Jesus Christo, em flores da Graça, em boas obras, e na recompensa da gloria.