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Viagem ao norte do Brasil/II/III

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CAPITULO III

Do baptismo de muitos adultos, especialmente de um chamado Martinho.


Antes de tratar d’esta materia, julgo necessario advertir ao leitor, que no fim da obra do reverendo padre Claudio achará alguma coisa d’esta e da seguinte historia, tudo extrahido de uma de minhas cartas, que enviei de Maranhão, á meos superiores, e como apenas esbocei-as, justo é que eu as descreva minuciosamente.

Estas sagradas agoas do baptismo não estagnaram na ilha, pois atravessando a corrente forte e impetuosa do mar, sem com elle misturar-se, passaram ás terras firmes de Alcantara e Comã, que despertadas por seo doce sussurro acolheram bem os espiritos d’aquelles, que Deos tinha escolhido para si, e pelo bom gosto d’ellas procuraram indagar-lhes a origem, maravilha, que não pode ser descripta como merece, pois á força d’estas agoas venceo incomparavelmente a actividade do azougue, chamando a si todos os pedaços de oiro espalhados por diversos lugares, isto é, as almas inspiradas por Deos em Tapuitapera e Comã vinham á Maranhão onde tinha assentado seos alicerces a salvação d’este paiz.

Quem poderia dizer o grande numero de pessoas, que nos vinham visitar para aprender alguma coisa dos mysterios da nossa fé?

Na verdade ninguem, mas para contentar o leitor e dar-lhe alguma ideia direi, que não havia um só dia, em que não recebesse novos visitadores e as vezes chegavam a 100 e a 120: eis a razão porque não podia deixar facilmente o Forte, e ir ás aldeias á meo cargo ministrar o pasto espiritual.

Muitos d’estes selvagens de diversas idades se me apresentaram pedindo o baptismo, o que eu difficultava, e somente concedia aos que julgava, por algum acto extraordinario, enviados por Deos para tal fim.

A razão porque apresentavamos essas difficuldades ja o disse, por vir da incertesa do soccorro, e do temor em que estavamos de baptisar todos os que nos pediam, e depois deixal-os sem coadjutores, pelo que poderiam cahir em peior estado do que se achavam anteriormente.

Não deixavamos comtudo de trazel-os esperançados, e aproveitavamos a occasião de instruil-os no conhecimento e amor do Omnipotente até á vinda dos novos padres, que os acharam promptos para satisfazer suas vontades.

Entre os que foram inspirados vivamente pelo Espirito Santo, e que por isso baptisamos havia um indio de Tapuitapera, principal n’uma aldeia antiga d’esta provincia, chamada Marentin, sempre grande amigo dos francezes, de boa indole, modesto, de poucas fallas, olhos sempre voltados para terra, tido outr’ora entre os seos por afamado barbeiro ou feiticeiro, tendo n’elle muita fé os doentes.

Contou-me elle e depois muitos outros, que era christão, e quando exercia a sua arte de barbeiro era visitado por muitos espiritos folgazões, que brincavam diante d’elle, quando embrenhava-se nos mattos, tomando diversas cores, sem lhes fazer mal algum antes até tornando-se seos intimos: achavam-se porem na duvida si eram espiritos bons ou maos: tal era a sua crença n’estes espiritos bons ou maos.

Conforme o costume tinha tres mulheres, antes de ser christão.

Aconteceo porem, que inexperadamente viesse com muitos selvagens, seos similhantes, de Tapuitapera para vêr não só a nós como tambem as ceremonias, com que serviamos a Tupan.

Achando-se no Forte de S. Luiz, vio na manhã do dia seguinte (que era domingo) os francezes vestidos com suas boas roupas, acompanhando seos chefes em caminho para a nossa casa de S. Francisco afim de ouvirem missa. Após estes iam os selvagens, o que o animou a seguir o prestito, especialmente pelo desejo e intenção, que tinham, ha muitos annos de aproximar-se de nós.

A Capella de Sam Francisco encheo-se logo de francezes, de selvagens christãos, e não christãos, que tinham todos especial devoção de receber em si algumas gottas de agoa benta.

Marentin, observando a pressa de todos, alcançou como poude o canto de uma porta, trepou-se n’um banco, que ahi achou para ver á sua vontade tudo quanto eu fazia.

Apenas pisei nos degraos do altar, voltei-me afim de saudar a todos, e descobrindo este selvagem acudio ao meu espirito a esperança de salval-o.

Contou depois, como prestou attenção a todas as ceremonias, que fiz na celebração do alto e profundo mysterio da Missa, e desejou saber porque me revesti de alva branca, liguei a cintura, deitei o manipulo no braço, e a estolla no pescoço: aproximei-me á direita do altar, onde me apresentaram um vaso com agoa e sal, sobre o qual pronunciei algumas palavras fazendo muitos signaes da Cruz; levantaram-se os francezes, me respondiam cantando, e tendo eu um ramo de palma na mão o mergulhei n’agoa deitando algumas gottas no altar, depois sobre mim, e levantando-me fui aspergir os francezes começando pelos chefes e acabando pelos que estavam na porta da Igreja, chegando tambem para esse fim os selvagens não christãos, na convicção de que lhes serviria contra Jeropary, desceo elle mesmo do banco, rompeo a multidão para receber tambem algumas gottas d’agoa benta, o que conseguio.

Não gosou logo esta gotta de celeste orvalho, porque as cantharidas peçonhentas e venenosas cahiram sobre as flores de sua alma entre-abertas, porem as abelhas industriosas de inspirações divinas vieram reunir ahi o doce mel da raça christã, porque regressando ao seo lugar agachou-se atraz dos outros, dormio, e durante o seo somno vio o Ceo aberto, e para elle irem subindo muitas pessoas vestidas de branco, e atraz d’ellas muitos Tupinambás a medida, que eram por nós baptisados.

Disseram-lhe na visita que as pessoas vestidas de branco eram Caraybas, isto é, francezes ou christãos,[NCH 94] conhecedores de Deos e do baptismo desde a mais remota antiguidade, e que os selvagens, que os acompanham, eram lavados por nós, e acreditam em Deos, em nossas palavras e de nossas mãos recebiam o baptismo.

Despertando, não disse palavra, porem ficou muito pensativo e melancolico, e assim embarcou, e foi para a sua terra.

Chegando a sua casa todos o desconheceram, e lhe perguntaram o que sentia, e si havia recebido alguma desfeita dos francezes em Yviret.

Sem dar resposta alguma de dia para dia mais se entristecia, fugia da companhia de seos similhantes passeando só em suas roças e bosques, onde foi accommettido por estes espiritos loucos, cahindo depois tão gravemente doente a ponto de chegar ás portas da morte, sempre afflicto pela visão, que vira em Yviret, e pelos espiritos de que já fallei.

Finalmente ouvio uma voz interior dizendo-lhe que se quizesse livrar-se de tál afflicção e molestia, e ir com Deos para o Ceo convinha, antes de morrer, lavar-se com essa agoa, que cahio n’elle quando esteve na casa de Tupan em Yviret.

Obedecendo a esta voz, em madrugada alta, mandou um seo irmão ter comnosco, e pedir-nos por intermedio do chefe dos francezes, cuja intervenção invocou, um pouco d’agoa de Tupan, n’uma porção de algodão, guardada n’um caramémo,[NCH 95] afim de não se perder uma só gotta para lavar sua cabeça, e ir assim lavado para o Ceo.

Cumprio a ordem o enviado, dando seo recado ao Sr. de Pezieux, bom catholico, que se admirou, bem como o Sr. de Ravardiere e outros.

O Sr. de Pezieux mandou-me este homem, com um interprete, para me dizer o fim de sua vinda que muito me maravilhou vendo n’um selvagem tão grande fé, misturada com temor, respeito e humildade.

Quiz ir logo ter com elle, porem não pude, porque, como ja disse, de todas as partes vinham diariamente muitos selvagens procurar-me, e nem foi possivel mandar-lhe o Rvd. padre Arsenio porque estava occupado em outro logar, e por isso mandei-lhe um francez proprio e capaz para fazer-lhe companhia, cuidar na sua salvação e baptisal-o, sem ceremonia, no caso de receio de morte.

Chegando á sua casa o francez com o irmão de Marentin, disse-lhe que eu não podia deixar a ilha, e nem o Forte de Sam Luiz por causa dos muitos selvagens, que me vinham procurar, mas que elle vinha em meo logar afim de o baptisar, antes de morrer, no caso d’estar tão doente á ponto de não poder ir á ilha para ser baptisado por nossas mãos.

Ouvindo isto recobrou forças e actividade, e disse, «visto que a coisa é assim, não quero ser baptisado por um Caraiba, e sim pelas mãos dos padres,» e nem deixou de levantar-se (embora doente e fraco a ponto de não poder estar em pé senão com muito custo) na manhã seguinte, de embarcar-se e vir procurar-me no Forte, expondo-me o seo grande desejo de ser filho de Deos e baptisado, e de apagar as visões, que tinha na cabeça.

Respondi-lhe que era necessario aprender a doutrina christan o mais cedo que podesse, deixando muitas mulheres, e contentando-se apenas com uma.

Eram estas as duas coisas, que, entre outras, exigiamos dos adultos.

Replicou-me, que em quanto a pluralidade de mulheres foi coisa, que nunca approvou, e que achava de razão um homem ter uma mulher só, mas que em beneficio de sua casa necessitava de muitas.

Disse-lhe que podia ter muitas mulheres como servas, e não como esposas.

Concordou n’isto facilmente, e cheio de bons desejos em poucos dias aprendeo a doutrina christan e pedio-me, que eu o instruisse, antes de ser baptisado, das ceremonias que com tanta attenção vio no primeiro dia, em que foi tocado pelo espirito de Deos.

Disse-lhe que Tupan era um grande Senhor, sempre comnosco embora não seja visto, devendo ser servido com profunda reverencia, com ornatos e vestidos diversos do ordinario.

Expliquei-lhe que o primeiro vestido branco, que me vio tomar, significava tres coisas: 1.º a innocencia e puresa, com que deviamos apparecer diante d’elle; 2.ª o vestido de sua humanidade, proveniente do sangue de uma virgem, de quem fallava com os homens: 3.ª para representar o vestido de zombaria, que lhe deram seos inimigos quando quiz por nós soffrer, ameaçando-lhe de o fazer padecer o que quizessem, embora tivesse elle o poder de impedil-os em suas intenções.

Disse-lhe, que a corda com que apertei a cintura, e essas tiras de seda, que puz no braço e no pescoço representavam os ornamentos, que deviamos dar á nossa alma para ser agradavel a Deos: a corda quer dizer — continencia de mulheres, a tira do braço — o bem, que devemos fazer ao proximo, e a do pescoço, onde é costume trazer-se collares e aderesses, — o amor e a perseverança na nossa profissão, que tudo isto junto faz lembrar as cordas com que foi preso o Salvador.

O outro vestido de seda, que puz por cima de tudo isto, mostra o zelo ou a salvação das almas, que devemos procurar, não nos contentando só de ir para o Ceo, mas fazendo tudo quanto pudermos para que nos acompanhem nossos similhantes.

Significa tambem o segundo vestido a vestimenta de zombaria, que foi dado a Nosso Senhor em sua Paixão.

A respeito da agoa e do sal, sobre que pronunciei algumas palavras, expliquei-lhe que eu o fiz para dar a agoa o poder, da parte de Deos, de expellir o diabo do lugar e das pessoas, em que estivesse, e que a aspersão, que eu fazia com a palma sobre os francezes era para expellir o diabo, que andava ao redor d’elles, e que o canto, que elles entoavam em quanto eu lhes lançava agoa benta, era uma supplica a Deos para purifical-os de seos peccados.

Perfeitamente instruido de todas estas coisas, concordamos baptisal-o no dia da festa da Santissima Trindade.

Para seo padrinho escolheo o Sr. de Pezieux, e no dia aprazado vestiram-no com uma roupa de algodão bem alvo em respeitosa homenagem ao Sacramento, que ia receber, isto é, a innocencia e candura baptismal conferida sob a invocação das tres pessoas da Santissima Trindade.

Grande numero de selvagens, principalmente de Tapuitapera, assistiram a este baptismo, o que lhes fez grande impressão no espirito, vendo este homem, seo similhante, respeitado por elles tanto por suas antigas feitiçarias, como por sua autoridade e idade, receber, como si fosse menino, sobre sua cabeça a agoa de Jesus Christo.

Querendo aproveitar tão boa occasião pedi aos francezes que abrissem caminho para que de mim se aproximassem os primeiros e os principaes selvagens, que ahi se achassem, aos quaes dirigi a palavra por meio do interprete.

«Todos os dias, meos amigos, vedes em vossa terra os passaros seguirem uns aos outros, de forma que quando uns levantam o vôo, todos os outros os acompanham.

«Sabeis tambem que os javalys caminham em grande companhia, sem que um só delles se desvie dos passos dos primeiros.

«Por experiencia conheceis que os Paratins, isto é, os peixes chamados — sargos — no mar andam sempre em grandes bandos seguindo seos conductores, de tal fórma que vindo os primeiros ao encontro de vossas canôas, quando ides pescar, imitam-nos os outros cahindo dentro dellas e assim apanhaes vós grande quantidade d’esses peixes.

«O que é isto? O exemplo dos similhantes. A naturesa implantou em tódas as creaturas vivas e intelligentes o desejo d’imitação de coisas similhantes, conforme as differentes especies.

«Observae agora este homem vosso similhante e principal, que si fez filho de Deos.

«Bem sei que trazei-nos vossos filhos, porem pensam alguns de vós que não são capazes, por velhos, de receberem o baptismo: é um engano, porque, como vossos filhos, podeis ser baptisados, e ir para o Ceo. Vêde diante de nós este homem que vou baptisar, que me prometteo de ensinar os que o quizessem ouvir. Abri os ouvidos para ouvil-o.»

Dito isto, mandei ajoelhar-se nos degraus do altar, e recitar em vóz alta e clara na sua lingua, e de mãos postas a doutrina christã, que para diante será encontrada em lugar proprio.

Comecei depois as ceremonias do baptismo, observadas com muita attenção por todos os selvagens, recebendo o nome de Martim Francisco, lembrado por seo padrinho por tal ou qual semelhança com o seo antigo nome de Marentin, fazendo assim geralmente conhecido pelos selvagens tal conversão.

Acabado isto, mandei-o sentar junto de seo Padrinho, e comecei a celebração da missa, que ouvio com toda a devoção, de mãos postas, e na occasião de levantar-se a Hostia ajoelhou-se, como os outros, recitou a oração dominical e o credo em quanto vio os francezes tambem de joelhos.

Passados alguns dias quiz regressar á sua aldeia, tendo alcançado a saude do corpo e da alma, e despedindo de nossos chefes e de mim, nós o mimoseamos com rosarios, imagens, Agnus Dei e bentinhos.

Recommendamos muito, que depois de orar a Deos, resasse tambem para a Virgem Maria, Mãe de Jesus Christo, recitando em sua lingua Ave Maria tantas vezes quantas fossem as contas do seo rosario, e a oração dominical tantas quantas fossem as contas grandes.

Tomou tal devoção com a Santissima Mãe de Deos que trazia sempre ao pescoço o seo rosario, que beijava muitas vezes, e quando queria orar a Deos elle o tirava e fazia o que lhe ensinamos.

Antes de partir disse-me que só tinha um filho, que me traria no seo regresso para eu vel-o, e quando estivesse instruido na doutrina christã, eu o baptisaria e elle o daria aos Padres para ficar sempre com elles.

Prometteo igualmente escolher uma das suas tres mulheres, com certesa a mãe do seo filho, si ella quizesse ser christã como elle, conservando as outras como servas.

Bem compromettido com estas promessas, embarcou para Tapuitapera em procura de sua aldeia e de sua casa.