Viagem ao norte do Brasil/II/IV
CAPITULO IV
Do que fez este christão em beneficio da instrucção e conversão dos seos similhantes.
Nada ha mais bravio e mais difficil para domesticar-se do que a phanthéra, ainda mais por ser de naturesa furiosa para com os animaes das florestas, que ella ataca e despedaça no primeiro encontro.
Ao contrario, quando se sente grávida, torna-se mais favoravel, exhala bom cheiro pelos poros do seo corpo, e muda sua voz de cruel para branda, como que convidando os outros animaes a seguil-a, o que fazem.
A nação dos Tupinambás era uma verdadeira panthéra, cruel como nenhuma, segundo mostra o seo procedimento devorando seos inimigos. Apenas appareceo a graça sobre estas terras, mudaram em doçura sua crueldade; seos discursos desesperados em salutares; seos cheiros putridos, provenientes de seus fumeiros em outros agradaveis, approximando-se aos de Jesus Christo, transbordando de amor para com o proximo, desejando-lhe fazer o mesmo que elles receberam, inspirados pela concepção espiritual das graças de Deos no fundo de sua alma, como se lê nos Canticos I. Oleum effusum nomen tuum, idéo adolescentulæ dilexerunt te nimis: e pouco depois, Trahe me post te, curremus in odorem unguentorum tuorum: «teo nome, ó Salvador do Mundo, e o teo conhecimento é um balsamo derramado, por cuja influencia e cheiro sentem-se as novas almas cheias de teo amor, e todas se dedicam a adquerir-te.»
Martinho Francisco entre os outros selvagens executou esta doutrina, porque apenas chegou a aldeia principiou a fallar a seos visinhos, e d’ahi caminhando para outras aldeias da provincia de Tapuitapéra, sempre das grandezas de Deos e das graças que elle recebeo. Apresentava sempre aos olhos dos selvagens a desgraça dos seos antepassados, que tinham fallecido nas crenças de Jeropary, e a felicidade, que gozavam os que se baptisavam e se faziam filhos de Deos.
Taes conversas produziram effeito, muitos procuraram a fonte de salvação para n’ella beber, e sugar o leite do peito de Jesus-Christo, como elle o fez e se conta do Unicorne, que procurando as agoas, distantes do veneno, por acaso foi tocado até o coração pela suavidade do canto de uma joven donzella[NCH 96] deitada sob os ramos floridos das arvores da floresta, o que livrou este animal de sua furia natural e o aproximou do peito d’aquella que o commoveo.
O Unicorne, grato e não avaro do bem recebido, desejoso de que seos similhantes tambem o partilhem, vae procural-os no centro dos bosques, e por todas as sortes e gestos convidam-nos a seguil-o afim de tomarem parte na sua felicidade.
A joven donzella representa a esposa de Jesus Christo, a santa igreja, seo canto harmonioso a prédica do Evangelho, seo peito, onde são acolhidos os proprios animaes irracionaes, a misericordia divina com todo o seo poder, as agoas sem veneno, os sagrados sacramentos, o feroz Unicorne, os infieis, e Martinho Francisco, por seos discursos e exemplos, foi a primeira acquisição, seguida de muitas outras.
Não se tinham passados seis mezes, e ja se experimentavam grandes effeitos, porque tendo elle convertido e instruido muitos habitantes de Tapuitapéra de todas as idades, mandou-nos os mais instruidos e intelligentes ao Forte de Sam Luiz para serem baptisados, o que fez, depois de os reter comigo por algum tempo para experimental-os em seos desejos.
Augmentando-se diariamente o numero dos catecumenos em Tapuitapéra foi necessario ahi ir o Rvd. padre Arsenio para baptisar muitos d’elles, dignos d’essa graça tanto pelo seo desejo, como pela sua instrucção christã.
Tinha Martinho edificado uma Capella, e junto d’ella uma casa, no meio de sua aldeia, com o auxilio dos outros christãos e selvagens ahi residentes.
Benzeo o padre a Capella, e tomou conta da casa, onde foi vesitado e sustentado em quanto ahi esteve, por christãos e selvagens.
Depois que baptisou os que para isso julgou aptos, foi vêr algumas aldeias da provincia, e o seo principal soberano, e por toda a parte foi muito bem acolhido, manifestando todos em geral o desejo de serem christãos, e de terem padres em suas aldeias.
Alcançou o bom homem Martinho Francisco nome honroso, dado pelos habitantes de Tapuitapéra em recompensa de seos trabalhos e fadigas para fazel-os christãos por ter sido entre elles o primeiro christão, e por saberem quanto nós o estimavamos.
Chamaram-no Pai-miry, «Padre pequeno ou o vigario dos Padres,» e na verdade bem merecia tal nome, porque desde que se fez christão nunca mais se descobrio n’elle vestigios do antigo homem, ou os máos costumes dos selvagens. Era grave, modesto, pouco fallador e raras vezes ria-se, e nada fazia que parecesse ser contrario ao christianismo.
Era este o regimen de vida que observava, e como mais velho fazia observar aos outros christãos:
1.º Pela manhã e á tarde reuniam-se todos na Capella: levantava-se um d’elles, ajoelhavam-se outros, e depois dizia um em seo idioma «em nome do Pai, do Filho, e do Espirito Santo» e fazia o signal da Cruz, na testa, na bocca e nos peitos, no que era pelos outros imitado: punha depois as mãos, fixava a vista no altar, e recitava pausada e distinctamente a oração dominical, o symbolo dos Apostolos, os mandamentos de Deos e da Igreja, o que findo, si tinha alguma advertencia a fazer aproveitava a occasião, sinão, recolhia-se cada um á sua casa.
2.º Viviam em commum quando se achavam juntos, e para isso traziam o resultado de suas pescarias e caçadas para serem igualmente dividido entre elles, e antes de comerem, o mais velho recitava em sua linguagem o Benedicite, fazendo o signal da Cruz sobre si, e sobre as iguarias: tiravam todos o chapeo, faziam em si o mesmo signal e ninguem tocava na comida antes de abençoada.
Em quanto comiam não contavam coisas más ou que excitasse o riso, como fazem os Tupinambás; porem o mais velho dizia alguma coisa á respeito de Deos e da Religião.
3.º Nunca iam aos cauins e reuniões, conforme costumavam os Tupinambás: era um dos pontos principaes, que Martinho Francisco gravava no coração dos convertidos, isto é, que os cauins eram inventados por Jeropary para semeiar a discordia entre elles, e fazer com que praticassem toda a especie de males os que os frequentassem, sendo impossivel amar a Deos quem gostasse de cauins, porque, dizia elle, quando descubro, que alguns dos meos similhantes se retiram das cauinagens, agouro que bem depressa serão christãos e vou procural-os; mas não tenho animo para fazer o mesmo aos que frequentam taes orgias.
O que elle dizia era verdade por ser horrivel espectaculo vêr essas gentes em reuniões, parecendo antes congresso nocturno de feiticeiros do que ajuntamento de homens.
Achei-me apenas uma só vez n’estas reuniões para d’ellas poder fallar, e nunca mais lá tornei.
Via aqui uns deitados em suas redes vomitando com muita força, outro caminhando ou marchando em diversos sentidos com o juiso perdido pelo vinho, ali outros gritando, fazendo mil tregeitos, estes dançando ao som do maracá, aquelles bebendo com muito boa vontade, aquell’outros fumando para mais se embriagarem, e o que ainda é peior, é estarem mulheres e moças ahi misturadas parecendo bem difficil a presença de Bacho sem Venus.
Por minha vontade os francezes deviam fazer o que fizeram os portuguezes, isto é, prohibir todas estas cauinagens: os portuguezes, depois que habitaram algum tempo na India, reconheceram, que um dos maiores embaraços para a propagação do christianismo eram essas reuniões diabolicas, de que procedem todas as discordias e desgraças entre os selvagens.
4.º Vestem-se estes novos christãos o melhor que podem, caminham todos juntos, não trazem flechas e nem arcos, excepto quando vão á caça ou a pesca, contentando-se em trazer um cacete de uma especie de ebano, negro ou vermelho, com que se distinguem facilmente dos outros.
Quando vão a outras aldeias, si encontram algum christão, recolhem-se á casa d’elle, contentam-se com o que tem e vivem sóbriamente como tanto convem a um christão.