Viagem ao norte do Brasil/II/IX

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CAPITULO IX

Dos principaes meios usados pelo diabo para conter em suas cadeias por tão longo tempo estes selvagens.


Adonibesec, um dos maiores tyrannos do mundo, venceo e subjugou setenta Reis, aos quaes mandou cortar os dedos das mãos e dos pés, e todas as vezes que queria comer, mandava buscal-os e pol-os debaixo da mesa como cães para roerem os ossos, e os boccados de pão, que lhes atirava, e era com isto unicamente que elles viviam, porque acabada a refeição do tyranno passavam elles outra vez para os grilhões.

Este tyranno representava o diabo, cujo poder sempre exerceu nas Nações á elle sujeitas pela infidelidade, tendo-as sempre presas, não lhes consentindo outros viveres alem dos seos restos, cortando-lhes todos os meios de acção e de fuga, alterando ou extinguindo os signaes, que Deos naturalmente imprimio nos homens, pelos quaes podiam inclinar-se a Deos para d’elles ter piedade, que é o que o diabo mais teme, o que é facil de vêr-se em nossos selvagens por longo tempo sem conhecimento algum do Deos Omnipotente, presos em suas cadeias infernaes pelos abusos e corrupções, que entre elles lançou o diabo.

Eis porque S. Paulo representava as artimanhas e tricas de Satanaz em suas...

(Falta uma folha.)

... esta razão tinhamos nós occasião d’admirar a forma e a maneira de proceder dos Pagés ou Feiticeiros, que occupam entre os selvagens o lugar de Mediadores entre os espiritos e o resto do povo, e são os que hão adquirido maior autoridade por suas fraudes, subtilezas e abusos, com que tem subjugado esta gente mui fortemente sob o reinado do inimigo da salvação, como está escripto no Proverbio 29Princeps qui libenter audit verba mendacii, omnes ministros habet impios «o Principe, que prestar ouvidos á mentira, é servido por ministros impios e maus.»

Pondo de parte a explicação litteraria d’esta passagem, nós a aplicamos ao nosso fim dizendo, que este Principe, que presta attenção á mentira, ou para melhor dizer, que é o Pae da mentira, é o diabo inimigo da verdade: seos officiaes abusam do povo por meio de invenções, subtilesas, e encantos provenientes da instigação dos demonios, como são os feiticeiros brazileiros, e com tal autoridade se conservam sem a menor contestação, embora conheçam os enganos, que reciprocamente empregam contra seos compatriotas.

Estes feiticeiros não tem chefes, porem tornam-se taes, si os favorece a capacidade de seo espirito, de sorte que os que o possuem melhor, são considerados mais habeis.

Começam muitos a aprender este officio, convidados pela honra e lucro, que d’elle colhem os mais espertos, porem poucos atingem á perfeição.

Não encontrareis muitas aldeias, onde os principaes e os velhos não confessem saber alguma coisa d’elle.

Os noviços d’essa arte estudam muito a merecer elogios, e d’elles dizer-se maravilhas e fazem alguma subtilesa diante de seos similhantes para obter fama.

Depende seo adiantamento d’algum acaso, como por exemplo se predizem a chuva, e ella apparece, se sopram algum doente e elles recobram a saude, o que os faz muito estimados e respeitados como feiticeiros experientes.

Por exemplo, sem comparação, si algum medico novo ou cirurgião cuidasse de um doente perdido, ou de alguma chaga pertinaz, e que apparecesse a saude, não tanto pela industria do medico, e sim pela boa naturesa coadjuvada por unguentos communs, não ha duvida que tal cura seria attribuida á sciencia e experiencia dos curadores, e se aproveitariam d’isto para fazer voar sua fama entre as boas cidades, e serem recebidos com muita distincção nas boas casas.

O mesmo acontece no Brasil com estes novos feiticeiros, quando se restabelece o infermo depois dos seos sopros.

Não receis que isto fique só na casa do doente, porque sae o feiticeirinho de aldeia em aldeia contando suas proesas, e triplicando-as.

O diabo, espirito suberbo, não se communica indifferentemente a todos os feiticeiros; porem d’entre elles escolhem os mais bellos espiritos, e lhes infundem suas invenções e subtilesas.

Julgae por isto. Nunca vereis os diabos fazerem grandes operações e communicações aos pequenos feiticeiros, e limitam-se apenas a dar-lhe malicia conforme o juiso e talento do seo espirito.

Si pelo contrario encontram algum bello espirito, elles o instruem largamente de suas perversas e condemnaveis sciencias, que são de ordinario as nigromancias, judiarias e magicas. O mesmo acontece aos feiticeiros: achareis muitos pequenos, de que não se faz grande caso, e nem se tem muito medo, valendo-lhes pouco o officio: outros mais instruidos e mediocres, que occupam o lugar medio entre pequenos e grandes. Ordinariamente viajam por certas aldeias importunando os seos habitantes, cuidando de dansas e de outras coisas, que dependem do seo officio.

Si algum seu collega apparece por ahi, elles não ficam contentes, mas quando é convidado algum de seos superiores soffrem-no com paciencia.

Quanto mais progressos fazem nos abusos, mais graves se mostram: fallam pouco, buscam a solidão, evitam o mais que podem as companhias, com o que alcançam mais honra e respeito, são mais procurados depois dos Principaes, e estes lhes fallam com attenção ahi usada, e ninguem os maltrata.

Para conservar taes honras edificam suas casas á parte, longe de visinhos.

O demonio ardiloso ensina o que pratica a disciplina religiosa, isto é, o necessario para conservar o espirito de Deos, fazer sua alma capaz das suas visitas e consolações para o que necessario é amar a solidão e n’ella residir, evitando cuidadosamente o mais que é possivel a companhia dos homens, com o que não somente adquirireis favores espirituaes, mas tambem a honra e o respeito d’aquelles, que evitaes.

A compleição dos homens é similhante a da honra e da sombra: si correis após ellas, ellas fugirão diante de vós, si as evitaes, ellas vos procurarão.

Assim são os homens: sê-de com elles familiares, e sereis despresados; fugi d’elles, sereis respeitados.

Por similhança este velho doutor da malicia ensina os seos principaes discipulos a evitar communicações, a fugir de tristezas e melancolias, a fugir de invenções e fantesias, a residir sós com suas familias com o fim de poder melhor imprimir em seos pensamentos os meios, pelos quaes quer conservar estes povos na ignorancia e superstição regosijando-se de vêr tantas nações presas em suas cadeias.

Não é de hoje, e nem n’esta nação somente, que elle inverte os exercicios da verdadeira Religião, mas de todos os tempos e em todos os lugares, porque não pode ser autor, e sim falso imitador do verdadeiro bem.

Assim como a serpente se occulta debaixo das folhas para picar o segador, assim tambem elle occulta seo veneno e sua falsa Religião sob apparencia somente de uma imitação das obras de Deos.

Dizem Plinio e Solinus, que Cerasto, serpente mortifera, se cobre d’areia deixando apenas de fóra os cornos afim de enganar os passaros com a ideia de ser comida, e quando se approximam, ella sahe da embuscada e os apanha.

O Genesis compara o diabo com esta serpente Cerastes in semita «Ceraste no caminho.» Vemos isto em nossos selvagens, nutridos e entretidos com taes engodos, que eu não os acreditaria si os não visse, e si o leitor duvidar, peço-lhe que creia no que vou contar-lhe.

São tão tolos estes pobres selvagens, que em relação aos seos feiticeiros, especialmente aos grandes, creem firmemente, que elles podem enviar-lhes molestias e fomes, e tirar-lhes tudo o que elles tem, e embora saibam os proprios feiticeiros, que elles todos são embusteiros, não julgam poder curar-se sem que passem por mãos de outros.

Si adoece algum francez nas aldeias, seo Compadre e sua Comadre lhe pedem permissão para que os feiticeiros o visitem, o bafejem, e lhe toquem com as mãos.

O que dirieis vós, si eu vos dissesse, que vindo visitar-me muitos selvagens, quando adoeci, me pediram muito affectuosamente licença para me trazerem seos feiticeiros afim de me bafejarem, e apalparem-me, sem o que, asseguravam-me, eu não ficaria bom?

O grande Thion adoecendo apenas chegou do Mearim ao Fórte de S. Luiz, pensou, e por muito tempo acreditou ser isto devido a ameaça do Principal-feiticeiro da sua terra, que pretendia seduzir e impedir esses povos Mearinenses de virem á Ilha, logrando vêr muitos com elle ficarem nas florestas do Mearim.

Tinha ameaçado Thion com a morte apenas aqui chegasse, o que não aconteceo, porque depois d’uma febre violenta recobrou sua saude: com tudo, emquanto esteve doente, pensou morrer, por maiores que fossem as nossas advertencias de que não devia prestar credito a taes feiticeiras.

Si estes pequenos e mediocres feiticeiros gozam de autoridade entre os seos, muito mais aquelles, que se chamam propriamente Pagy-uaçú[NCH 100] «grandes feiticeiros», porque são como os Soberanos d’uma Provincia, muito temidos, chegando a tal poder por muitas subtilesas: de ordinario tem communicação tacita com o diabo. Por onde passam, seguem-nos os povos; são graves e por isso não se communicam facilmente com os seos: são muito bem acompanhados quando vão a qualquer parte, e tem muitas mulheres, não lhes faltam mercadorias, julgam-se felizes seos similhantes quando os presenteiam, e com uma feitiçaria tiram aos seos compatriotas o melhor que possuem em suas caixas.

Não descobrem suas subtilezas diante dos selvagens, e pelo contrario zombam delles, e muitos me contaram os meios, que empregaram para isto, o que ainda direi em lugar proprio.

Japy-açú e o grande feiticeiro de Tapuitapera tiveram entre si uma questão, de que resultou reciproca desconfiança.

O grande feiticeiro mandou dizer-lhe, si elle já não se lembrava das molestias, que outr’ora lhe enviou, e de que pensou morrer a ponto de lhe pedir que as removesse, e si agora já não as temia?

Estas palavras impressionaram Japy-açú, e julgou-se feliz de ter sua amisade. A questão foi por causa de uma mulher retida por força; porem merece ser contada esta historia por haver relação entre ella e o objecto de que tratamos.

Adquirio o grande feiticeiro de Tapuitapera em sua Provincia e circumvisinhança fama e autoridade de um perfeito Magico, que a seu bel-prazer distribuia molestias e mortes, curava e dava saude, e por isso alcançou em seo paiz o grau de Soberano Principal, e dispunha de todos á sua vontade.

Japy-açú mofava e zombava de tudo isto, o que sabido pelo outro o fez dizer, que em pouco tempo em si mesmo experimentaria si não tinha o poder de fazer bem ou mal a quem quizesse.

Não fez Japy-açú caso d’isto, porem veio a fortuna proteger ao seo contrario fazendo com que elle cahisse doente muito naturalmente; pensou ser sua molestia devida ao feiticeiro de Tapuitapéra, embora a existencia do mar entre uma e outra Provincia, e pela força de imaginação agravou-se sua molestia a ponto de o julgarem á morte.

Todos os feiticeiros e feiticeirinhos da Ilha o visitaram, porem nenhum lhe deo saude e afinal escolheo as melhores fazendas que havia e humildemente mandou a esse feiticeiro seo antagonista, pedindo-lhe pelos mensageiros seos parentes, que desse ordens á molestia para deixal-o.

O feiticeiro tomando as mercadorias lhe mandou não sei que moxinifada para elle tomar, asseverando-lhe cura em breve tempo. Japy-açu acreditou, principiou pouco a pouco a passar melhor temendo d’ahi em diante o feiticeiro, que comtudo entre os seos zombava d’elle, e outras vezes o apontava para mais firmar sua autoridade.

Ora como é possivel, direis vós, que appareçam e desappareçam as molestias por força d’imaginação e apprehensão, d’estes selvagens a respeito das ameaças ou dos favores de seos feiticeiros?

Decida a medicina: comtudo responderei á pergunta com os exemplos mui communs, dos Hypocondriacos, ou doentes imaginarios, os quaes embora sãos, e bem conservados, julgam-se debeis e fracos, pensando cada um soffrer uma molestia differente.

Fechando este artigo, eu vos faço notar que se julgam uns grandes feiticeiros por fazerem mal, e outros por praticarem o bem.