Viagem ao norte do Brasil/II/XI

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CAPITULO XI

Como falla o diabo aos feiticeiros do Brazil, suas falsas prophecias, idolos e sacrificios.


Diz Santo Agostinho, que o diabo insuflado por sua soberba quiz ser obedecido como Deos, imitando com falsidade em tudo e por tudo o proceder de Deos, especialmente em seos oraculos — Diabolus est Angelus per superbiam separatus á Deo, qui in veritate non istetit, et doctor mendacii, etc. «o diabo é um Anjo separado por sua soberba de Deos, que não quiz persistir na verdade fazendo-se assim doutor da mentira.»

Vendo que Deos fallava outr’ora a seos prophetas por diversos modos, e a seo povo entre duas figuras de cherubins postas sobre a arca da alliança, quiz tambem em todos os tempos ter falsos prophetas, com os quaes consultava seos desgraçados projectos, e seos falsos oraculos proferidos entre diversas figuras por meio de demonios escondidos por ahi ou occultos ora sob a figura de uma serpente, ora de um touro, ora de um mocho ou gralha, e finalmente de uma pyramide, estatua e assim por diante.

Advinhavam estes falsos prophetas o futuro não por espirito prophetico, visto não ter o diabo tal poder, e sim por experiencia de muito tempo, junta á subtilesa de seo espirito, que os faz presagiar coisas futuras pelo que vê nos homens e nas coisas, como bem diz Isidoro — Dæmones triplici acumine præscientiæ vigent, scilicet, sublimitate naturæ, experientia temporum, revelatione superiorum potestatum, «possuem os demonios tres subtilesas para prevêr o futuro, finura por naturesa, experiencia de tempo, e revelação de poderes superiores.»

Deixando de parte a experiencia tão antiga dos seos procedimentos para com a Gentilidade, quero fazer-vos vêr o que ha de verdadeiro a tal respeito, visto que o diabo tem sempre enganado, e ainda hoje, estes pobres selvagens por seos oraculos e predicções.

O feiticeiro, de que ja vos fallei, recolhido ás campinas do Mearim, tinha em casa diabos sob a figura de pequenos passaros negros, que o advertiam do que deviam fazer e do que se passava na ilha e em outros lugares.

Quando quiz ir a Maranhão revelaram-lhe estes passaros por occasião de andar passeiando nas suas roças, que cedo chegariam os Tapuyas, e destruiriam seo milho e suas raizes, mas que nenhum mal succederia nem a elle, nem aos seos, e assim aconteceo, porque vindo os Tapuyas de mansinho para sorprehendel-o, ouviram grande matinada na casa do feiticeiro, e por isso não se animaram a atacar, receiando superioridade de defensores, contentando-se com carregar os milhos e raizes, e assim se foram.

Estes mesmos passaros, ou os diabos sob tal forma, ordenaram a este feiticeiro, que fosse á ilha do Maranhão, fazer suas feitiçarias, e convidar os que quizessem deixar a ilha para vir ahi residir devendo desembarcar no porto de Taperussu, isto é, na aldeia dos animaes gordos, n’uma das extremidades do Maranhão, sendo-lhe absolutamente prohibido aproximar-se do lugar onde moravam os padres, o que cumprio pontualmente.

Nunca poude vir ahi nos vêr, apesar de toda a segurança que lhe promettiamos. Dizia que seos espiritos nos temiam, e se lhes desobedecessem, suas roças ficariam por fazer, não trabalharia mais, e perderia o poder, que tinha entre os seos, que seos espiritos lhe haviam aconselhado de retirar-se do Maranhão antes de nós lá chegarmos afim de continuarem á viver com elle tão pacificamente como até hoje.

Estes e outros factos contava elle aos habitantes de Taperussu, que em parte lhe prestavam credito, pois n’essa occasião muitas mulheres se agarravam ás suas pernas, chorando e gritando, pedindo-lhe para que não deixasse o seo paiz, e nem fosse para Yuiret, onde estavamos, principalmente porque lhe fora isso prohibido pelos espiritos, e se fizesse o contrario succeder-lhe-hia mal.

Considerae, leitor, a maldade, e o temor d’estes demonios, maldade para impedir que se cheguem os homens á luz da verdade, ficando sempre obedientes ás trevas da infidelidade.

É proprio da malicia fugir da claridade com medo de serem descobertas suas maldades, e sua autoridade destruida.

O temor, que elles tem, dos servos de Deos, em cuja presença não se podem sustentar, bem como o mocho diante dos raios do sol, e os sapos á vista da flor e cheiro da vinha, mostra quam grande é o poder de Deos, dado á sua igreja contra a potestade do inferno.

Prosigamos.

Dois principaes feiticeiros governavam duas nações de Tabajares, inimigas reciprocas, das quaes abusavam dizendo que tinham repetidas conferencias com os diabos tomando a figura de diversos passaros.

O feiticeiro do lado de Thion, mau e desgraçado (que nunca quiz vir á ilha, e que della desviava seos similhantes o mais que podia) criava em sua casa um morcego, a que chamava Endura, que lhe fallava em voz humana em lingua dos Tupinambás, algumas vezes tão alto, que podia ser ouvido á seis passos de distancia, não distincta, porem confusamente e com timbre infantil.

Respondia-lhe o selvagem ficando só em sua casa, porque despedia a todos quando percebia que elle lhe queria fallar.

Quando os nossos la foram afim de preparar os selvagens a sahir do seo paiz para a ilha, instigou-se a curiosidade de alguns francezes, que tinham ouvido dizer maravilhas d’este feiticeiro, e pediram a seos compadres que lhes dissessem o que percebessem do colloquio d’elle com o morcego, e para isso aproximaram-se de mansinho da morada d’elle a ponto de ouvirem perfeitamente a voz de ambos, e querendo chegar mais perto foram descobertos pelo feiticeiro, e retirou-se o morcego.

Chamou-os o feiticeiro, sem zangar-se, fel-os entrar em sua casa, e perguntou-lhes o que queriam e porque estavam a escutar?

Responderam-lhes os francezes, que tinham ouvido dizer aos selvagens seos similhantes, que ahi havia uma communicação visivel e familiar com Jeropary, que d’ella desejavam vêr alguma coisa, e eis porque se tinham aproximado, e ouvido distinctamente duas vozes, a sua e uma outra mais doce e clara.

É verdade, disse elle, eu fallava agora com o meo morcego, que me veio dizer maravilhas e grandes novidades, como sejam guerra em França, e que os Caraibas do Maranhão não estavam onde pensavam, que de nada me assustasse, e ficasse com elle n’esta terra não acompanhando á ilha meos compatriotas, que aqui não ficariamos muito tempo, porque os francezes regressariam á sua patria, e que muitos selvagens de Tapuitapéra tinham fugido para o matto.

Perguntaram-lhes os francezes como elle criava e sustentava este morcego?

Respondeo, que um dia seo espirito, em quanto elle estava só, lhe disse que de ora em diante lhe fallaria sob a figura de tão feio animal, e que por isso lhe havia preparado um quarto em sua casa, onde dormiria e descançaria, comendo do que elle comesse, e quando quizesse fallar-lhe, que elle o ouviria e responderia: que este espirito tambem quando quizesse communicar-lhe alguma coisa de novo o chamaria por seo nome, e com elle fallaria na casa ou no bosque, e mandou o feiticeiro fazer-lhe um ninho para recolher-se, e com elle sempre fallava sob a forma de morcego.

Dizendo isto mostrou um dos cantos da sua casa, onde estava o ninho feito de folhas de palmeira: ahi, disse, vem elle comigo conversar, discorremos como dois iguaes, e come o que lhe dou.

Não posso deixar de notar as particularidades seguintes:

1.ª Porque o diabo antes quiz tomar a forma de um morcego do que a de outro qualquer passaro.

2.ª Como o diabo imita a voz humana.

3.ª Da verdade d’estas novidades em França, e como é possivel, que saiba o diabo o que se passa no mundo.

4.ª Porque razão comia carne.

5.ª Da localidade por elle escolhida para discorrer com o seo Magico.

Para satisfazer a primeira, dizemos, que o axioma dos philosophos — todos procuram seos similhantes, é uma verdade provada quer nas coisas physicas, quer nas sobrenaturaes, porque o diabo, que por sua soberba se fez espirito immundo, busca de ordinario tomar as formas mais horriveis e immundas, que pode ser, para communicar-se com seos bons servos e amigos.

Bem sei o que disse S. Paulo — Ipse enim Sathanas transfigurat se in Angelum lucis «que Satanaz, transformado em camaleão, para seduzir os tolos, toma a forma de um Anjo de luz», isto é, reveste-se de bellas figuras, ou profere boas palavras para melhor fazer seo jogo.

As bonitas formas de mulheres e raparigas, que elle toma para melhor attrahir os homens luxuriosos, não tem outro motivo senão o desejo de chamar a si os individuos conforme sua inclinação.

Diz S. Thomaz, que por este motivo, não pode o diabo aborrecer naturalmente os Anjos felizes, porque tem parte na natureza d’elles, sendo impossivel amal-os em relação á justiça dos Anjos, e injustiça dos diabos.

D’esta conclusão deduso duas inclinações dos demonios: uma natural com que amam as coisas boas, ou pelo menos não as podem aborrecer, e a outra é proveniente da culpa e da soberba, com que procuram coisas immundas e abominaveis, e não podem proceder de diverso modo porque gostam da perversão do appetite, por culpa da natureza.

Dizemos por isto em lingua vulgar, que o diabo horrorisa-se das torpesas e maldades, a que leva o homem a praticar por suas instigações, o que entendereis conforme a distincção da naturesa e a culpa do diabo.

Eis uma das principaes causas, porque este cruel Behemot toma a figura de morcego, a que accrescento outra tirada de uma propriedade peculiar aos morcegos, qual a destes maus passaros nocturnos, muito mais horriveis e maiores do que os de França procurarem as pessoas que estão deitadas e dormindo,[NCH 101] e lhe arrancarem um pedaço de carne e depois lhe chuparem muito sangue sem que se desperte a victima, porque tem a propriedade de conservar o homem adormecido emquanto lhe chupam o sangue: achando-se fartos o deixam, continuando o sangue a correr, e por isto fica debil a pessoa, e por muitos dias anda com difficuldade.

Melhor escolha não podia fazer Satanaz para representar sua naturesa e crueldade porque anda a noite, e sob as trevas da ignorancia procura os homens adormecidos e si delicia nas suas carnes, tirando-lhe a inclinação natural que tem para com Deos, e procura meios de sugar á sua vontade o sangue, instrumento da vida, as affeições e paixões dos seos captivos para tornal-os fracos e impotentes em fazer o bem e procurar sua salvação.

2.º Consiste a 2ª dificuldade na imitação da voz humana pelo diabo, não tendo orgãos e nem lingua para fazel-o.

Sua palavra é apenas a manifestação de seo desejo e vontade quando falla aos outros diabos, seos companheiros, e aos homens pelas impressões fantasticas, que faz as suas imaginações.

Comtudo nos ensina a Santa Escriptura, que elle servio-se da lingua da serpente para seduzir nossa primeira mãe, permittindo Deos, porque não tem poder na creatura, em quanto fraca e indigente, sem licença de Deos, e com ella pode crear um corpo no ar, e articular em qualquer lingua até mesmo nas desconhecidas suas affeições e desejos.

Ponho de parte mil outros modos, pelos quaes manifesta seos desejos aos feiticeiros, por não ser nosso proposito.

3.º Notamos as noticias, que deo dos motins havidos era França, isto é, d’esta ultima leva de soldados, e como poude ser isto.

Direi com Santo Agostinho, que os demonios excedem em ligeiresa todo o corpo existente na maquina do mundo, nada havendo que possa com elles competir em velocidade.

Em 24 horas fez o primeiro movel este grande curso em torno das abobadas inferiores, espaço superior aos calculos dos mathematicos, de tal modo que dentro d’uma hora vence não sei quantas mil legoas.

Calculae agora a ligeiresa d’estes espiritos, que em poucos momentos giram ao redor do universo, sabendo e vendo o que por elle se passa, e conjecturando o que se pode predizer das coisas futuras: si tão ligeiros fossem os correios, á cada hora receberiamos noticias de todas as partes.

4.º Usava de carne, dado o caso de ser verdadeira a existencia d’este morcego, de que se servia o diabo, e por tanto tinha necessidade de nutrir-se, e si fosse apenas parto de imaginação não tinha precisão de carne para viver.

Não obstante tudo isto, tem sempre sido costume do demonio comer e beber apparentemente em companhia do seos mais dedicados servos, imitando assim o exemplo dos anjos bons do antigo Testamento, que comiam com Abraham, Loth, Tobias e outros.

5.º A situação do logar procurado por este espirito, isto é, os bosques, o concavo das arvores, ou o recanto de alguma casa solitaria, nos faz ver a inclinação, que tem estes espiritos rebeldes a fazerem, como os condemnados, suas moradias em logares escuros e desertos, tristes e melancolicos, temendo, se assim se pode dizer, a luz creada, e a doçura da harmonia.

Acha-se isto em prova na pessoa de Saul, possesso, sendo aplacado pelo som da harpa de David.

Asmodeo foi preso pelo anjo Raphael no fundo do deserto, e Satanaz pelo anjo do Apocalypse no fundo dos abysmos.

Este pobre, victima de legiões diabolicas, que Jesus-Christo livrou, dia e noite morava nos sepulchros dos defuntos.

Fingiam os antigos, que Cerberas, tirado do inferno, apenas vio a brilhante luz do sol principiou a vomitar Aconite, até que lhe foi permittido regressar ás suas cavernas tenebrosas.

Diga-se isto em relação ao feiticeiro da aldeia do grande Thion.

Quanto ao Pagy-uassu, das aldeias de farinha molhada, prevenio aos seos, alguns mezes antes, da chegada dos francezes, que breve chegavam os Caraybas, trazendo-lhes mercadorias, sendo para notar, que ignoravam a estada dos francezes na Ilha do Maranhão.

Com tal aviso vestiram-se uns de camisas, e outros de diversos factos do tempo, que outr’ora com elles moravam os francezes.

Assim vestidos foram ter com os habitantes das aldeias de Thion, e para assustal-os lhes disseram — «entregae-vos á nós, porque os francezes estão comnosco; olhae as roupas que nos deram.»

Estas palavras intimidaram muito a Thion e os seos, e pensavam em fugir quando chegaram os enviados dos francezes dizendo-lhes, que estes os veriam ver logo que elles mandassem suas embaixadas á ilha.

Por isto podeis ver, quanto o astucioso Satanaz dava poderes a estes pagys, fazendo-lhes prever coisas futuras.

Sua astucia porem não é tão grande, relativamente á predicção, porque via o esforço dos francezes visitando os povos visinhos, e tambem o desejo e a resolução de ir procurar essas nações, onde se achassem, e por tanto este bom criado advertio seo senhor.

Usam os diabos de outra maneira de fallar e de communicar-se com os diabos e com os feiticeiros d’este paiz, a saber, fazem um buraco em terra, dentro de casas longinquas, deitam-se de bruços os feiticeiros, mettem a cabeça no buraco, fecham os olhos, perguntam ao demonio o que querem, e do fundo do buraco estes lhes respondem.

Este uso era muito trivial na Gentilidade, e deixando as historias profanas vou referir-me ao que está escripto no livro 1º dos Reys, cap. 28 quando Saul foi consultar a feiticeira de Endor, a qual curvando-se em terra, metendo a cabeça e o rosto n’um buraco, fazendo suas invocações, disse — Deos vidi ascendentes de terra — «vi Deoses subindo da terra.»

Não é sem fundamento, que ella escreveo e servio-se d’estas palavras — vi deoses, a menos, que estas feitiçarias não tivessem poder e força para fazer apparecer alguns diabos, mas quiz Deos, que a propria alma de Samuel acudisse á sua palavra afim de prophetisar a ultima desgraça de Saul, que em suas necessidades havia recorrido aos adevinhos e feiticeiros.

Soube de alguns francezes, moradores na aldeia de Vsaap, que um feiticeiro d’ahi era mui respeitado e temido pelos selvagens, por ser geral a crença delle fallar com toda a liberdade com o diabo, pela maneira ja dita, e por isso não se atreviam a aproximar-se de sua casa quando viam a porta fechada receiando tal colloquio.

Havia tambem na Ilha uma velha feiticeira, que guardava-se muito em segredo: era mui apreciada pelos selvagens e procurada especialmente nas molestias incuraveis; quando todos os feiticeiros já não sabiam o que haviam fazer, então ella era convidada, e trazida com segurança, porem sempre occulta.

N’um dia, segundo o que me disseram alguns francezes, ella veio a Vsaap para fazer uma cura, já sem esperança, e, antes de começar fechou-se n’uma casa, isolada no meio da praça da aldeia, e ahi fez suas invocações e feitiçarias diabolicas sobre o corpo do infermo, fazendo apparecer visivelmente o seo demonio.

Os francezes, que isto me contaram, tiveram desejos de espiar o que fazia esta feiticeira, porem os selvagens os embaraçaram o mais que poderam, asseverando-lhes serem perigosos e maus os espiritos d’esta mulher, de fórma que na seguinte noite torceriam o pescoço de quem os espiasse.

Zombaram os francezes, e foram de muito boa vontade á essa casa, com grande admiração dos selvagens, que os julgavam atrevidos e presumpçosos, e fazendo um buraco na parede de palha viram as gesticulações d’essa mulher e notaram não sei que de monstruoso ao redor d’ella, não podendo destinguir o que era, e assim se retiraram.

Em quanto estive doente, muitas pessoas me fallaram d’esta desgraçada creatura com grandes gabos e estima, como infallivel em dar saude aos que lh’a pediam. Bem podeis calcular si me agradavam taes palavras.

Fallaram-me tambem de certos barbeiros d’aquelles paizes, que habitavam em choupanas nos bosques, onde iam consultar seos espiritos.

Na verdade, é frequente na Ilha e nos paizes visinhos edificarem os feiticeiros pequenas choupanas de palha em lugares longinquos nos mattos: ahi collocam pequenos idolos de cera ou de madeira em forma humana,[NCH 102] uns maiores, outros menores, porem os maiores não tem mais que um covado. Ali em certos dias vão elles levando comsigo fogo, agoa, carne ou peixe, farinha, milho, legumes, pennas de côr e flôres. D’estas carnes fazem uma especie de sacrificio a esses idolos queimam resinas cheirosas, enfeitam-nos com pennas e flores, e ahi se demoram muito tempo sosinhos: crê-se que era a communicação d’estes espiritos.

Crescia este mau costume, e estendia-se as aldeias visinhas de Juniparan, onde morava o Revd. Padre Arsenio a ponto d’elle encontrar estes idolos de cera na visinhança dos bosques e algumas vezes nas proprias casas.

Livrou-se d’elles por meio d’exorcismos, que fez em sua Capella contra estes diabos tão insolentes como atrevidos, e depois não ouvi mais fallar n’isto.

Considerae agora a presumpção de Satanaz, que em todos os lugares, e em todas as nações, quando póde, se faz conhecido por alguma especie de adoração e sacrificio por saber, que nenhuma religião boa ou má, pode existir sem algum sacrificio e representação da coisa adorada.

Eis porque elle inventou os idolos em lugar das verdadeiras imagens, que Deos mandou levantar no tabernaculo, e depois no templo de Salomão.

Em vez dos verdadeiros sacrificios, que Deos estabelecia na sua lei, procurou este espirito soberbo ter altares e sacrificios de toda a especie de animaes e fructos da terra.

Comquanto esta nação de selvagens não tivesse perante o publico algumas ceremonias de religião, nem préces e nem orações, comtudo em particular estes feiticeiros serviam ao diabo, como ja disse.

Para acabar, direi que acreditavam estas pessoas em espiritos particulares, até mesmo francezes.

Vou dar-vos exemplos.

Quando o Sr. de la Ravardiere, depois da guerra dos Camarapins, regressava do Pará, advertio-lhe uma mulher que fora resolvida a sua morte, bem como a de todos os francezes e Tupinambás, que o acompanhavam, pelos selvagens d’aldeia, onde estava alojado.

Fez-se tudo quanto foi possivel para descobrir-se a verdade, porem todos negaram e nada confessaram.

Fizeram crer aos selvagens d’aquelles lugares, que no relogio d’algibeira, que trasia o Sr. de la Ravardiere, havia um espirito escondido, que dava movimento ao que se via por dentro e por fóra, e que aos francezes revellava as coisas mais secretas.

Fez-se vir ao chefe, ao qual se disse, que se o ponteiro do relogio chegasse a tal ponto do quadrante, que fallava a verdade o espirito, e por isso acrescentaram — leva-o comtigo e guarda-o até ahi chegar o ponteiro, e vem antes do nosso espirito e conta-nos tudo.

Pegou do relogio e levou-o para sua casa, e vendo que elle caminhava sempre para diante, acreditou facilmente no espirito dos francezes, que imprimia tal movimento, e não esperou que chegasse ao fim prescripto, voltou, declarou tudo e restituio o relogio.

O capitão d’um navio de guerra deo-nos uma bella imagem, tomada de um navio portuguez, que ia para Pernambuco.

Por acaso mandei guardar essa imagem, na hora em que a recebi, n’uma das caixas, que tinha em nosso quarto, e n’esse mesmo momento vieram muitas mulheres indias á nossa casa, e vendo a imagem muito bem esculpida, pintada com diversas cores sobre fundo de oiro, admiraram-se e não queriam entrar, dizendo — Y anaité asse quege seta? «que coisa nova é esta que nos olha tão vivamente? Ella nos faz medo.» Fil-os entrar dizendo-lhes que não tivessem medo, e que era uma imagem dos servos de Deos. Admirei-me de vel-os immediatamente prostrados a seos pés chorando sua boa vinda, e depois me perguntaram que carne ella comia para irem buscal-a. Ri-me de tal simplicidade, e colloquei a imagem na Capella de Sam Francisco.

Coisa igual aconteceo a um Tabajare, muito simples, vendo da porta da Capella de S. Luiz um bello crucifixo, que dentro estava. Não me foi possivel fazel-o entrar na Capella, e dizia ao interprete. «Elle me olha vivamente, está vivo sem duvida, tenho medo d’entrar não sendo baptisado porque me faz mal.»

Fizeram o mesmo muitos outros, porem tomando o crucifixo em meos braços, fiz-lhes vêr que elle era de madeira, representando com tal forma o que Jesus Christo por nós soffreo.

Eis o resultado da superstição, como eu já disse, que entre elles derramaram seos feiticeiros, tanto á respeito de seos idolos, como de seos espiritos.