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Viagens de Gulliver/Parte IV/II

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onde vi uma égua muito graciosa, bem como um potro e seu filhote,
sentados sobre suas ancas em tapetes de palha...

[O autor é levado por um Houyhnhnm a sua casa. Descrição da casa. Como o autor é recebido. O alimento dos Houyhnhnms. O autor se aborrece por falta de alimento. Finalmente ele é solto. Como ele se alimentava naquele país.]

Tendo percorrido por volta de três milhas, chegamos a uma espécie de grandes construções, feitas de madeira coladas no chão, e entrelaçadas, o teto era baixo e coberto de palha. Agora eu começava a sentir um certo alívio, e tirei dos meus bolsos alguns brinquedos, que viajantes normalmente levam como presentes para os índios selvagens da América, e de outras partes, na esperança que as pessoas da casa se sintam com isso estimulados a recebê-los com cordialidade.

O cavalo fez um sinal para que eu entrasse primeiro, era um cômodo grande com chão de barro liso, e de um lado havia um cocho e uma manjedoura, que se estendia por todo o comprimento da parede. Lá estavam três cavalos de sela e duas éguas, que não estavam comendo, mas, alguns deles, estavam sentados sobre suas patas traseiras, o que me deixou muito admirado, porém, tive vontade de conhecer os outros[1] que eram utilizados nos serviços domésticos, e que tinham semelhança com o gado vulgar. Todavia, isto confirmava para mim, a opinião que tive a princípio, de que as pessoas que podiam domesticar dessa maneira os animais selvagens, deveriam ser superiores em sabedoria a todas as nações do mundo.

O cavalo cinzento chegou logo em seguida, e com isso evitou qualquer mal tratamento que os outros pudessem me dar. Relinchou para eles diversas vezes num tom de autoridade, e também recebia respostas.

Além deste alojamento havia três outros, que alcançavam o comprimento da casa, ao qual três portas lhe davam acesso, uma de frente para a outra, como em uma perspectiva. Atravessamos o segundo cômodo e chegamos ao terceiro. Nesse ponto, o cavalo cinzento foi na frente, e me acenou para que esperasse: esperei no segundo cômodo, e preparei os meus presentes para o dono e a dona da casa, eram duas facas, três braceletes de pérolas falsas, um espelho pequeno, e um colar de contas. O cavalo relinchou três ou quatro vezes, e eu esperava ouvir alguma resposta parecida com a voz humana, mas não houve retorno exceto no mesmo dialeto, um ou dois relinchos um pouco mais agudo que o dele. Comecei a achar que esta casa devia pertencer a uma pessoa da alta hierarquia daquela região, diante de todo aquele cerimonial para que eu pudesse ser recebido.

Porém, acreditar que um homem de alto padrão fosse servido apenas por cavalos, era algo que eu não conseguia compreender. Tive medo que a minha cabeça estivesse perturbada devido aos sofrimentos e aflições pelos quais eu tinha passado. Levantei-me, e olhei ao redor da sala onde fora deixado sozinho: tinha a mesma disposição que o anterior, apenas era um pouco mais elegante. Esfregava os olhos com frequência, porém, os mesmos objetos voltavam a aparecer. Belisquei os meus braços e dos lados para acordar, pensando que estivesse sonhando. Concluí, então, com certeza, que tudo o que tinha visto nada mais era do que efeito da necromancia ou da magia. Porém, não me foi mais possível continuar nessas reflexões, porque o cavalo cinzento veio até a porta, e fez sinal para que o acompanhasse até o terceiro cômodo onde vi uma égua muito graciosa, bem como um potro e seu filhote, sentados sobre suas ancas em tapetes de palha, feitos de modo tão natural, e perfeitamente limpos e asseados.

A égua, assim que entrei, levantou-se de seu tapete de palha, e aproximando-se, depois de ter observado demoradamente minhas mãos e meu rosto, me fez um olhar de desinteresse, e virando-se para o cavalo, ouvi que a palavra Yahoo foi diversas vezes repetidas por eles, cujo significado da palavra não consegui entender naquele momento, embora tenha sido a primeira que eu tinha conseguido pronunciar. Mas logo me informaram melhor, para minha eterna humilhação, pois o cavalo, acenando para mim com a cabeça, e repetindo HHUUN HHUUN, como fazia durante o percurso, e que eu entendia que era para acompanhá-lo, me conduziu para uma espécie de pátio, onde havia uma outra construção, a uma certa distância da casa.

Entrei e vi três daquelas criaturas detestáveis, que havia encontrado depois do meu desembarque, alimentando-se de raízes, e da carne de alguns animais, que depois descobri que eram de burros e de cachorros, e de vez em quando de vaca, que morreu ou por acidente ou de doença. Todos eles estavam amarrados pelo pescoço por meio de cordas feitas de junco presos a uma trave, seguravam seus alimentos com as garras de suas patas dianteiras, e os rasgavam com seus dentes.

O cavalo chefe ordenou a um cavalo alazão, um de seus criados, para que desamarrasse o maior desses animais, e o levasse para o pátio. O animal e eu fomos trazidos juntos, e pelos nossos aspectos éramos comparados tanto pelo chefe como pelo criado, o qual então repetiu várias vezes a palavra Yahoo. Não consegui ocultar o meu horror e o meu espanto, quando observei neste animal abominável, uma perfeita figura humana: o rosto dele de fato era liso e largo, o nariz achatado, lábios largos, e boca larga, mas, estas diferenças são comuns a todas as nações mais atrasadas, onde os contornos dos semblantes são distorcidos pelos nativos que obrigam as crianças a andar se arrastando pelo chão, ou transportando-os em suas costas, encostando o nariz e a cara nos ombros das mães.

As patas dianteiras dos Yahoos não eram muito diferentes das minhas mãos exceto no comprimento das unhas, na rusticidade, na cor escura de suas palmas, e no excesso de cabelos das costas. As mesmas semelhanças se viam em nossos pés, e também as mesmas diferenças, os quais eu reparei muito bem, embora os cavalos não [2], por causa dos meus sapatos e das minhas meias, o mesmo também se percebia com todas as partes do nosso corpo, com exceção da pelagem e da cor da pele, as quais já foram descritas por mim.

A grande dificuldade que parecia incomodar os dois cavalos, era ver o resto do meu corpo tão diferente do de um Yahoo, e isso era por causa das minhas roupas, de quem não faziam a menor ideia. O cavalo alazão me ofereceu uma raiz, a qual ele segurava (segundo o jeito deles, como iremos descrever no momento oportuno) entre o casco e a quartela; peguei-a com minhas mãos, e depois de cheirá-la, devolvi a ele novamente de maneira tão civilizada quanto pude. Depois ele trouxe um pedaço de carne de burro que havia no estábulo do Yahoo, mas ele tinha um cheiro tão forte que virei a cara de nojo: ele então lançou o pedaço para o Yahoo, que o devorou com sofreguidão. Depois ele me mostrou um punhado de feno, e outro boleto cheio de aveia, mas eu acenei com minha cabeça para dar a entender que nada daquilo era alimento para mim.

E de fato eu, naquelas alturas, havia aprendido que deveria absolutamente passar fome, se eu não conseguisse algo de que estava acostumado, porque aqueles malvados Yahoos, embora por lá, naquele momento, houvessem poucos grandes amantes da humanidade como eu, devo confessar, todavia, que jamais conheci criaturas mais desprezíveis em todos os aspectos, e quanto mais tentava me aproximar deles, mais odiosos se tornavam, durante o tempo que permaneci naquele lugar. O cavalo chefe percebeu este meu comportamento, e diante disso, ordenou que o Yahoo retornasse para o seu estábulo. Ele, então, levou o seu casco dianteiro na boca, o que me surpreendeu muito, embora o fizesse com facilidade, e com um movimento que me pareceu perfeitamente natural, e fazia outros sinais, para saber o que eu comeria; mas eu não poderia retornar-lhe com uma resposta que ele pudesse entender, e se ele tivesse me entendido, eu não compreendia como era possível inventar uma maneira de encontrar alimento para mim mesmo.

Estávamos assim comprometidos, quando observei uma vaca que passava, diante disso, apontei para ela, e expressei meu desejo de ir ordenhá-la. Parece que isto teve algum efeito, porque ele me conduziu de volta para a casa, e ordenou que uma égua, que era uma criada, abrisse uma sala, onde havia um bom estoque de leite em recipientes de barro e de madeira, tudo muito bem arrumadinho e limpo. Ela me ofereceu uma tigela cheia, da qual bebi com gosto, sentindo-me satisfeito.

percebi que vinha em direção a casa uma espécie de veículo
puxado como se fosse um trenó por quatro Yahoos.

Por volta do meio dia, percebi que vinha em direção a casa uma espécie de veículo puxado como se fosse um trenó por quatro Yahoos. Nele havia um corcel velho, que parecia ser importante; desceu com suas patas traseiras na frente, porque ele havia sofrido um acidente e machucado a perna dianteira esquerda. Ele tinha vindo para jantar com o nosso cavalo, que o recebeu com belas demonstrações de civilidade. Comeram na melhor sala, e foi servido aveia fervida no leite como segundo prato, que o cavalo velho comeu quente e os demais frio. Suas manjedouras eram colocadas de modo circular no meio da sala, e era constituída por várias divisões, ao redor das quais sentavam sobre suas ancas, em cima de um monte de palhas. No meio havia um cocho grande, com repartições que correspondiam a cada divisão da manjedoura, de modo que todo cavalo e toda égua comiam de seu próprio feno, e tinham seus próprios mingaus de aveia e leite, tudo com muita higiene e bem arrumado.

O jovem potro e o filhote se comportavam de forma muito modesta, enquanto que o cavalo chefe e a sua esposa pareciam bastante felizes e foram muito amáveis com o convidado. O cavalo cinzento pediu para que eu ficasse perto dele, e parecia que ele e seu amigo conversavam bastante a meu respeito, conforme descobri devido aos olhares estranhos que lançavam para mim muitas vezes, e também devido a palavra Yahoo que era repetida frequentemente.

Por acaso eu estava usando minhas luvas, que o chefe cinzento observava, parecendo perplexo, e buscava sinais tentando imaginar o que teria acontecido com as minhas patas dianteiras. Por três ou quatro vezes mostrou o seu casco, como se tentasse me dizer, para que retomassem[3] o formato anterior, o que fiz imediatamente, retirando as luvas, e colocando-as dentro do bolso. Isto provocou um novo início de conversa, e percebi que eles estavam satisfeitos com o meu comportamento, e com isso logo comecei a colher os bons resultados. Me pediram para que repetisse algumas palavras que eu entendia, e enquanto jantavam, o chefe me ensinou a falar algumas palavras tais como aveia, leite, fogo, água, e muitas outras, que eu conseguia pronunciar facilmente depois dele, pois desde a minha juventude sempre tive facilidade em aprender idiomas.

Quando o jantar ficou pronto, o cavalo chefe me levou de lado, e por meio de sinais e de palavras me fez entender a sua preocupação que ele tinha porque eu não havia comido nada. Aveia no idioma deles era HLUNNH. Pronunciei esta palavra duas ou três vezes, pois, embora a princípio houvesse recusado comer isso, pensando melhor, imaginei que poderia descobrir uma maneira de fazer uma espécie de pão com ela, a qual ficaria excelente quando misturada com leite, para me manter vivo, até que conseguisse encontrar uma forma de fugir para algum outro lugar, e com criaturas de minha própria espécie. O cavalo mandou imediatamente que a égua, que era a criada de sua família, me trouxesse uma grande quantidade de aveia numa espécie de bandeja de madeira. Cozinhei tudo isso no fogo, tão bem quanto pude, e as esfreguei bem até sairem as cascas que foram separadas dos grãos.

Moí e bati os grãos de aveia usando duas pedras, depois peguei água, e fiz uma pasta ou uma torta com elas, aqueci no fogo e comi ainda quente com leite. A princípio parecia ser uma dieta bastante insípida, embora fosse muito comum[4] em muitas partes da Europa, porém, com o passar do tempo foi ficando mais tolerável, e tendo me habituado a uma parca refeição durante a minha vida, este não era o primeiro experimento que fazia para entender como era fácil satisfazer os nossos instintos. E não posso deixar de relatar, que jamais fiquei sequer uma hora doente durante o tempo que permaneci naquela ilha. É verdade, que algumas vezes tive de me esforçar para caçar um coelho, ou um pássaro, usando laços feitos com pelos de Yahoos, e muitas vezes colhi grandes maços de erva, que eu fervia, e comia com saladas e pão, e de vez em quando, raramente, fazia um pouco de manteiga, e bebia o soro do leite.

No começo senti muito falta de sal, porém, logo me habituei à falta dele, e tenho certeza de que o uso frequente de sal em nossa cultura é uma forma de ostentação, pois foi introduzido apenas como estimulante para a bebida, exceto nos casos que é necessário para preservar as carnes em longas viagens, ou em lugares remotos dos grandes mercados, pois observamos que nenhum animal faz uso dele, exceto o homem, e no que me diz respeito, quando deixei este lugar, se passou muito tempo até que pudesse suportar o gosto do sal em qualquer coisa que eu comia.

Acredito que isso basta para falar um pouco sobre o tema da minha dieta, sendo que outros viajantes enchem seus livros, como se os leitores estivessem realmente preocupados se passamos bem ou mal. Contudo, foi necessário que mencionasse este assunto, caso contrário, o mundo poderia pensar que seria impossível que eu tivesse sobrevivido durante três anos nesse lugar, e no meio de habitantes daquele tipo.

Quando foi anoitecendo, o cavalo chefe preparou um lugar para que me albergasse, ficava apenas a seiscentos metros da casa e era separado do estábulo onde ficavam os Yahoos. Lá eu consegui um pouco de palha, e cobrindo-me com minhas próprias roupas, dormi muito profundamente. Mas, em pouco tempo, fiquei melhor acomodado, como o leitor irá descobrir mais adiante, quando passarei a tratar de modo mais detalhado a respeito do tipo de vida que tive.

Nota do Tradutor

[editar]
  1. tive vontade de conhecer os outros animais.
  2. embora os cavalos não (pudessem fazê-lo).
  3. para que as minhas mãos (que eles pensavam ser patas) retomassem a sua forma anterior.
  4. embora (esse prato) fosse muito comum.
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