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Viagens na Minha Terra (grafia de 1943)/VII

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Reflexões importantes sobre o Bois de Boulogne, as carruagens de molas, Tortoni, e o café do Cartaxo. — Dos cafés em geral, e de como são característicos da civilização de um país. — O Alfageme. — Hecatombe imolada pelo A. — História do Cartaxo. — Demonstra-se como a Grã-Bretanha deveu sempre a sua força e toda a sua glória[1] a Portugal. — Shakespeare e Laffite, Milton e Châteaux-Margaux, Nelson e o Príncipe de Joinville. — Prova-se evidentemente que M. Guizot é a ruína de Albion e do Cartaxo.


Voltar à meia noite do Bois de Boulogne — o bosque por excelência , — descer, entre as nuvens de poeira, o longo estádio dos Campos Elísios , entrever, na rápida carreira, o obelisco de Lúxor, as árvores das Tulherias, a coluna da praça Vandome, a magnificência heteróclita da Madalena, e enfim sentir parar, de uma sofreada magistral, os dois possantes ingleses que nos trouxeram quase de um fôlego até ao "boulevard de Gand"; aí entreabrir molemente os olhos, levantando meio corpo dos regalados coxins de seda, e dizer: Ah! estamos em Tortoni... que delícia um sorvete com este calor! — é seguramente, é dos prazeres maiores desse mundo, sente-se a gente viver; é meia hora de existência que vale dez anos de ser rei em qualquer outra parte do mundo. [2]

Pois acredite-me o leitor amigo, que sei alguma coisa dos sabores e dissabores deste mundo, fie-se na minha palavra, que é de homem experimentado: o prazer de chegar por aquele modo a Tortoni, o apear da elegante caleche balançada nas mais suaves molas que fabricasse arte inglesa do puro aço de Suécia, não alcança, não se compara ao prazer e consolação da alma e corpo que eu senti ao apear-me da minha choiteira mula à porta do grande café do Cartaxo.

Fazem idéia do que é o café do Cartaxo? Não fazem. Se não viajam, não saem, se não vêem mundo esta gente de Lisboa! E passam a sua vida entre o Chiado, a rua do Oiro e o teatro de S. Carlos, como hão de alargar a esfera de seus conhecimentos, desenvolver o espírito, chegar à altura do século?

Coroai-vos de alface, e ide jogar o bilhar, ou fazer sonetos à dama nova, ide que não prestais para nada, meus queridos lisboetas; ou discuti os deslavados horrores de algum melodrama velho que fugiu assobiado da "Porte-Saint-Martin" e veio esconder-se na rua dos Condes. Também podeis ir aos Toiros — estão embolados, não há perigo...

Viajar?... qual viajar! até a Cova da Piedade, quando muito, em dia que lá haja cavalinhos. Pois ficareis alfacinhas para sempre, cuidando que todas as praças deste mundo são como a do Terreiro do Paço, todas as ruas como a rua Augusta, todos os cafés como o do Marrare.[3]

Pois não são, não: e o do Cartaxo menos que nenhum.

O café é uma das feições mais características de uma terra. O viajante experimentado e fino chega a qualquer parte, entra no café, observa-o, examina-o, estuda-o, e tem conhecido o país em que está, o seu governo, as suas leis, os seus costumes, a sua religião. Levem-me de olhos tapados onde quiserem, não me desvendem senão no café; e protesto-lhes que em menos de dez minutos lhes digo a terra em que estou se for país sublunar.

Nós entramos no café do Cartaxo, o grande café do Cartaxo, e nunca se encruzou turco em divã de seda do mais esplêndido café de Constantinopla, com tanto gozo de alma e satisfação de corpo, como nós nos sentamos nas duras e ásperas tábuas das esguias banquetas mal sarapintadas que ornam o magnífico estabelecimento bordalengo.

Em poucas linhas se descreve a sua simplicidade clássica: será um paralelogramo pouco maior que a minha alcova; à esquerda duas mesas de pinho, à direita o mostrador envidraçado onde campeiam as garrafas obrigadas de licor de amêndoa, de canela, de cravo. Pendem do teto laboriosamente arrendados por não vulgar tesoira, os pingentes de papel, convidando a lascivo repouso a inquieta raça das moscas. Reina uma frescura admirável naquele recinto.

Sentamo-nos, respiramos largo, e entramos em conversa com o dono da casa, homem de trinta a quarenta anos, de fisionomia esperta e simpática, e sem nada de repugnante vilão ruim que é tão usual de encontrar por semelhantes lugares da nossa terra. — Então que novidades há por cá pelo Cartaxo, patrão?

— Novidades! Por aqui não temos senão o que vem de Lisboa. Aí está a Revolução de ontem...[4]

— Jornais, meu caro amigo! Vimos fartos disso. Diga-nos alguma coisa da terra. Que faz por cá o ...

— O mestre J.P., o Alfageme?

— Como assim o Alfageme?

— Chama-lhe o Alfageme ao mestre J.P.; pois então! Uns senhores de Lisboa que aí estiveram em casa do Sr. D. puseram-lhe esse nome, que a gente bem sabe o que é; e ficou-lhe, que agora já ninguém lhe chama senão o Alfageme. Mas, quanto a mim, ou ele não é Alfageme, ou não o há de ser por muito tempo. Não é aquele não. Eu bem me entendo.

A conversação tornava-se interessante, especialmente para mim: quisemos aprofundar o caso.

— Muito me conta, Sr. Patrão! Com que isto de ser Alfageme, parece-lhe que é coisa de...

— Parece-me o que é, e o que há de parecer a todo mundo. E algumas coisas sabemos cá no Cartaxo, do que vai por ele. O verdadeiro Alfageme diz que era um espadeiro ou armeiro, cutileiro ou coisa que o valha, na Ribeira de Santarém; e o que foi um homem capaz, que punia pelo povo, e que não queria saber de partidos,[5] e que dizia ele: "Rei que nos enforque, e papa que nos excomungue, nunca há de faltar. Assim, deixar os outros brigar, trabalhemos nós e ganhemos nossa vida". Mas que estrangeiros que não queria, que esta terra que era nossa e com a nossa gente se devia governar. E mais coisas assim: e que por fim o deram por traidor e lhe tiraram quanto tinha. Mas que lhe valeu o Condestável e o não deixou arrasar, por era homem de bem e fidalgo às direitas. Pois não é assim que foi?

— É assim, meu amigo. Mas então daí?

— Então daí o que se tira é que quando havia fidalgos como o Santo Condestável também havia Alfagemes como o de Santarém. E mais nada.

— Perfeitamente. Mas porque chamaram ao mestre P. o Alfageme de Cartaxo?

— Eu lhes digo aos senhores: o homem nem era assim, nem era assado. Falava bem, tinha sua lábia com o povo. Daí fez-se juiz, pôs por aí suas coisas a direito. — Deus sabe as que ele entortou também!... ganhou nome no povo, e agora faz dele o que quer. Se lhe der sempre para bem, bom será. [6]Os senhores não tomam nada?

O bom do homem visivelmente não queria falar mais: e não devíamos importuná-lo. Fizemos o sacrifício do bom número de limões que esprememos em profundas taças — vulgo, copos de canada — e com água de açúcar, oferecemos as devidas libações ao gênio do lugar. Infelizmente o sacrifício não foi de todo incruento. Muitas hecatombes de mirmidões caíram no holocausto, e lhe deram um cheiro e sabor que não sei se agradou à divindade, mas que enjoou terrivelmente aos sacerdotes.[7]

Saímos a visitar o nosso bom amigo, o velho D., a honra e alegria do Ribatejo. Já ele sabia da nossa chegada, e vinha no caminho para nos abraçar.

Fomos dar, juntos, uma volta pela terra.

É das povoações mais bonitas de Portugal, o Cartaxo, asseada, alegre; parece o bairro suburbano de uma cidade.

Não há aqui monumentos, não há aqui história antiga; a terra é nova, e a sua prosperidade e crescimento datam de trinta ou quarenta anos, desde que seu vinho começou a ter fama. Já descaída do que foi pela estagnação daquele comércio, ainda é contudo a melhor coisa da Borda d'Água.

Não tem história antiga, disse; mas tem-na moderna e importantíssima. Que memórias aqui não ficaram da guerra peninsular! Que espantosas borracheiras aqui não tomaram os mais famosos generais, os mais distintos militares da nossa antiga e fiel aliada, que ainda então, ao menos, nos bebia o vinho! [8]

Hoje nem isso!... hoje bebe a jacobina zurrapa de Bordéus e as acerbas limonadas de Borgonha. Quem tal diria da conservativa Albion! Como pode uma leal goela britânica, rascada pelos ácidos anárquicos daquelas vinagretas francesas, entoar devidamente o God Save the King em um toast nacional! Como, sem Porto ou Madeira, sem Lisboa, sem Cartaxo, ousa um súdito britânico erguer a voz, naquela harmoniosa desafinação insular que lhe é própria e que faz parte do seu respeitável caráter nacional — faz; não se riam: o inglês não canta senão quando bebe... aliás quando está BEBIDO. Nisi potus ad arma ruisse. Inverta: Nisi potus in cantum prorumpisse... E pois, como há de ele assim bebido erguer a voz naquele sublime e tremendo hino popular Rule, Britannia!. [9]

Bebei, bebei bem zurrapa francesa, meus amigos ingleses; bebei, bebei a peso de oiro, essas limonadas dos burgraves e margraves de Alemanha; chamai-lhe, para vos iludir, chamai-lhe hoc, chamai-lhe hic, chamai-lhe o hic haec hoc todo, se vos dá gosto... que em poucos anos veremos o estado de acetato a que há de ficar reduzido o vosso caráter nacional.[10]

Ó gente cega a quem Deus quer perder! Pois não vedes que não sois nada sem nós, que sem o nosso álcool, donde vos vinha espírito, ciência, valor, ides cair infalivelmente na antiga e preguiçosa rudeza saxônia!

Dessas traidoras praias de França donde vos vai hoje o veneno corrosivo da vossa índole e da vossa força, não tardará que também vos chegue outro Guilherme bastardo que vos conquiste e vos castigue, que vos faça arrepender, mais tarde, do criminoso erro que hoje cometeis, ó insulares sem fé, em abandonar a nossa aliança. A nossa aliança, sim, a nossa poderosa aliança, sem a qual não sois nada. [11] O que é um inglês sem Porto ou Madeira... sem Carcavelos ou Cartaxo? [12]

Que se inspirasse Shakespeare com Laffitte, Milton com Château-Margaux — o chanceler Bacon que se diluísse no melhor Borgonha... e veríamos os acídulos versinhos, os destemperados raciocininhos que faziam. Com todas as suas dietas, Newton nunca se lembrou de beber Johannisberg: Byron antes beberia gin, antes água do Tâmisa, ou do Pamiso [13], do que essas escorreduras das áreas de Bordéus. Tirai-lhe o Porto aos vossos almirantes, e ninguém mais teme que torneis a ter outro Nelson. Entra nos planos do Príncipe de Joinville fazer-vos beber da sua zurrapa; são tantos pontos de partido que lhe dais no seu jogo. [14]

É M. Guizot quem perde a Inglaterra com sua aliança; e também perde o Cartaxo. Por isso eu já não quero nada com os doutrinários. [15]

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Há doze anos tornou o Cartaxo a figuras conspicuamente na história de Portugal. Aqui, nas longas e terríveis lutas da última guerra de sucessão, esteve muito tempo o quartel general do Marquês de Saldanha. [16]

Alguns ditirambos se fizeram; alguns ecos das antigas canções báquicas do tempo da guerra peninsular ainda acordaram ao som dos hinos constitucionais. [17]

Mas o sistema liberal, tirada a época das eleições, não é grande coisa para a indústria vinhateira, dizem. Eu não o creio, porém, e tenho minhas boas razões, que ficam para outra vez. [18]

Notas

[editar]
  1. Na fonte <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=1720> aparece "gl[ória", corrigido ao disponibilizar no Wikisource por se tratar de um óbvio erro.
  2. O atual "Boulevard des Italiens" era denominado "Boulevard Gand" entre 1815-1828. Como o autor escreve em 1845, são lembranças do exílio em Paris entre 1824-1826. Tortoni - refere-se ao Café Tortoni de Paris
  3. Um sarcasmo ao provincianismo aristocrático de Lisboa. "corai-vos de alface", "alfacinha" é uma alcunha dos lisboetas
  4. uma alusão à revolução de setembro de 1836
  5. É fácil ver que o interlocutor deste diálogo conhecia esse curioso personagem da história do Condestável, não pelas crônicas, mas pelo drama que tem o seu nome. [N.A]
  6. O autor fez uma peça sobre o Alfageme " O alfageme de Santarém ou a espada do condestável" publicada em 1842. A peça tem por base o mito e os fatos de Nuno Alvares Pereira em conjunto com as lendas populares como o Alfageme de Santarém. Observa-se o linguajar popular
  7. O autor mescla referências clássicas - Mirmidões com hábitos populares grosseiros
  8. Guerra peninsular refere-se à guerra travada entre França e Inglaterra em solo português entre 1807 e 1810. Antiga e fiel aliada é uma alusão, talvez irônica, à Inglaterra
  9. Durante o bloqueio continental na guerra napoleônica os Ingleses não consumiam vinhos frances e passaram a fazê-lo após a guerra. O autor ironiza a qualidade dos vinhos franceses que os ingleses passaram a tomar (jacobina zurrapa de Bordeaux, limonada de Borgonha). Com ironia descreve o hábito inglês para cantar em bebedeiras. "Nisi potus ad arma ruisse - só foi guerrear depois de beber trocar por in cantum prorumpisse - só consegue cantar bêbado
  10. Uma ironia entre as locuções latinas de aqui e agora com os soluços de bêbados
  11. O autor vê na importação de vinhos franceses o distanciamento, que se tornará crítico em 1890 da tradicional aliança entre Portugal e Inglaterra
  12. refere-se aos vinhos do Porto e Madeira
  13. Uma alusão ao poeta inglês, rio Tâmisa de Londres, Lord Byron, que foi lutar na Grécia - rio pamisos, modelo de poeta boêmio e romântico
  14. Uma alusão que o poderio marítimo da Inglaterra diminuía e o comandante francês Príncipe de Joinville estava em seu apogeu resgatando os restos mortais de Napoleão
  15. Guizot ministro e parlamentar francês sob a Monarquia constitucionalista de junho de 1931 consegue restabelecer a aliança com a Inglaterra em assuntos diplomáticos no oriente médio. Perde o Cartaxo no sentido de uma produção excessiva de vinho sem os clientes ingleses
  16. Entre 1832 - 1834 , doze anos atrás , a região de Santarém foi palco das batalhas da guerra civil quando o Marques Santana liderando as tropas liberais derrota os soldados de Dom Miguel.
  17. hinos constitucionais eram canções militares cantadas pelos liberais dirigidos pelo Marques Saldanha. As antigas canções báquicas, de bêbados, ainda da época das batalhas entre ingleses e franceses na guerra peninsular à época napoleônica.
  18. Desde sua formação em Coimbra em 1820 o autor abraça a causa liberal. Nota Introdutória a Viagens na Minha Terra de J. Tomas Ferreira. isbn 5601072405264 pág. 16