Viagens na Minha Terra (grafia de 1943)/VIII
Eram dadas cinco da tarde, a calma declinava, montamos a cavalo, e cortamos por entre os viçosos pâmpanos que são a glória e a beleza do Cartaxo; as mulinhas tinham refrescado e tomado ânimo; breve, nos achamos em plena charneca.
Bela e vasta planície! Desafogada dos raios do Sol, como ela se desenha aí no horizonte tão suavemente! que delicioso aroma selvagem que exalam estas plantas, acres e tenazes de vida, que a cobrem, e que resistem verdes e viçosas a um sol português de julho! A doçura que mete na alma a vista refrigerante de uma jovem seara do Ribatejo nos primeiros dias de abril, ondulando lascivamente com a brisa temperada da Primavera, — a amenidade bucólica de um campo minhoto de milho, à hora da rega, por meados de agosto, a ver-se-lhe pular os caules com a água que lhe anda por pé, e à roda as carvalheiras classicamente desposadas com a vide coberta de racimos pretos — são ambos esses quadros de uma poesia tão graciosa e cheia de mimo, que nunca a dei por bem traduzida nos melhores versos de Teócrito ou de Virgílio, nas melhores prosas de Gessner ou de Rodrigues Lobo.
A majestade sombria e solene de um bosque antigo e copado, o silêncio e escuridão de suas moitas mais fechadas, o abrigo solitário de suas clareiras, tudo é grandioso, sublime, inspirador de elevados pensamentos. Medita-se ali por força; isola-se a alma dos sentidos pelo suave adormecimento em que eles caem... e Deus, a eternidade — as primitivas e inatas idéias do homem – ficam únicas no seu pensamento...
É assim. Mas um rochedo em que me eu sente ao pôr do sol na gandra erma e selvagem, vestida apenas de pastio bravo, baixo e tosquiado rente pela boca do gado — diz-me coisas da terra e do céu que nenhum outro espetáculo me diz na natureza. Há um vago, um indeciso, um vaporoso naquele quadro que não tem nenhum outro.
Não é o sublime da montanha, nem o augusto do bosque, nem o ameno do vale. Não há aí nada que se determine bem, que se possa definir positivamente. Há a solidão que é uma idéia negativa...
Eu amo a charneca.
E não sou romanesco. Romântico, Deus me livre de o ser — ao menos, o que na algaravia de hoje se entende por essa palavra. Ora a charneca dentre Cartaxo e Santarém, àquela hora que a passamos, começava a ter esse tom, e a achar-lhe eu esse encanto indefinível.
Sentia-me disposto a fazer versos... a quê? Não sei.
Felizmente que não estava só; e escapei de mais essa caturrice. Mas foi como se os fizesse, os versos, como se os estivesse fazendo, porque me deixei cair num verdadeiro estado poético de distração, de mudez — cessou-me a vida toda de relação, e não sentia existir senão por dentro. [1]
De repente acordou-me do letargo uma voz que bradou: — "Foi aqui!... aqui é que foi, não há dúvida."
— Foi aqui o quê?
— A última revista do imperador.
— A última revista! Como assim a última revista! Quando? Pois?...
Então caí completamente em mim, e recordei-me, com amargura e desconsolação, dos tremendos sacrifícios a que foi condenada esta geração, Deus sabe para quê — Deus sabe se para expiar as faltas de nossos passados, se para comprar a felicidade de nossos vindouros...
O certo é que ali com efeito passara o imperador D. Pedro a sua última revista ao exército liberal. Foi depois da batalha de Almoster, uma das mais lidadas e das mais ensangüentadas daquela triste guerra. [2]
Toda a guerra civil é triste.
E é difícil dizer para quem mais triste, se para o vencedor ou para o vencido. [3]
Ponham de parte questões individuais, e examinem de boa fé: verão que, na totalidade de cada facção em que a Nação se dividiu, os ganhos, se os houve para quem venceu, não balançam os padecimentos, os sacrifícios do passado, e menos que tudo, a responsabilidade pelo futuro...
Eu não sou filósofo. Aos olhos do filósofo, a guerra civil e a guerra estrangeira, tudo são guerras que ele condena — e não mais uma do que a outra... a não ser Hobbes o dito filósofo, o que é coisa muito diferente.
Mas não sou filósofo, eu: estive no campo de Waterloo, sentei-me ao pé do Leão de bronze sobre aquele monte de terra amassado com o sangue de tantos mil, vi – e eram passados vinte anos – vi luzir ainda pela campina os ossos brancos das vítimas que ali se imolaram a não sei quê... Os povos disseram que à liberdade, os reis que à realeza... Nenhuma delas ganhou muito, nem para muito tempo com a tal vitória... [4]
Mas deixemos isso. Estive ali, e senti bater-me o coração com essas recordações, com essas memórias dos grandes feitos e gentilezas que ali se obraram.
Porque será que aqui não sinto senão tristeza?
Porque lutas fratricidas não podem inspirar outro sentimento e porque...
Eu moía comigo só estas amargas reflexões, e toda a beleza da charneca desapareceu diante de mim.
Nesta desagradável disposição de ânimo chegamos à ponte da Asseca.[5]
- ↑ Ao final de uma descrição da paisagem do campo o solitário narrador evoca um quadro característico do romantismo para logo lembrar ao leitor "não sou romântico" ainda mais no meio das várias correntes, uma algarvia, que conviviam no movimento romântico.
- ↑ A batalha de Almoster foi em 18 de fevereiro de 1834, D. Pedro já doente deve ter feito revista à tropa logo após a vitória.
- ↑ A guerra civil foi entre os irmãos D. Pedro e D. Miguel entre 1832-1834. Numa guerra tudo é triste nessa frase memorável do autor, tanto para os vencidos, como seria de se esperar, como para os vencedores pois a economia do país se destrói
- ↑ A batalha de Waterloo em que o Duke de Wellington, representando a realeza, derrotou Napoleão, representando o povo da revolução francesa foi em 1815, logo o autor visitou o monumento erigido em 1820 em 1835
- ↑ A batalha de Almoster começou com os Miguelistas querendo tomar a ponte de Asseca