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Viagens na Minha Terra (grafia de 1943)/XIV

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Emendado enfim de suas distrações e divagações, prossegue o A. diretamente com a história prometida. — De como Frei Dinis deu a manga a beijar à avó e à neta, e do mais que entre eles se passou. — Ralha o frade com a velha, e começa a descobrir-se onde a história vai ter.

Este capítulo não tem divagações, nem reflexões, nem considerações de nenhuma espécie, vai direto e sem se distrair, pela sua história adiante.

Frei Dinis chegava ao pé das duas mulheres, e disse:

— Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!

Joana adiantou-se alguns passos a beijar-lhe a manga. Ele acrescentou:

— A benção de Deus te cubra, filha, e a de nosso padre S. Francisco!
Benedicite, padre guardião! — disse a velha inclinando-se, meia levantada da cadeira.

Em nome do Senhor! amém — respondeu o frade aproximando-se, e chegando o braço ao alcance de lho ela beijar; — Ora aqui estou, minha irmã; que me quer? E como vai isto por cá? Vamo-nos confortando, tendo paciência, e sofrendo com os olhos no Senhor.

— Já os não tenho senão para ele, padre.
— Ah, ah! irmão Francisca, sempre esse pensamento, sempre essa queixa! Tenho-a repreendido tanta vez e não se emenda.
— Eu não me queixei, meu padre. Deus sabe que não me queixo... ao menos não por mim.
— Pois por quem?
— Ó padre!
— Irmã Francisca, tenho medo de a entender. Eu não conheço as afeições da carne nem lido com os fracos pensamentos do mundo. Sou frade, minha irmã, sou um que já não é do número dos vivos, que vesti esta mortalha para não ser deles, que a vesti num tempo em que a mofa e o desprezo são o único patrimônio do frade, em que o escárnio, a derrisão, o insulto — o pior e o mais cruel de todos os martírios — são a nossa púnica esperança. Eu quis ser frade, fiz-me frade no meio e tudo isto; já velho e experimentado no mundo, farto de o conhecer, e certo do que me espera — a mim e à profissão que abracei. Que quer de um homem que assim se resolveu a cortar por quanto prende a humanidade a esta miserável vida da terra, para não viver senão das esperanças da outra? Eu vesti este hábito para isto. O seu irmão, o seu para que o vestiu? É um divertimento, é um capricho, é uma comédia com Deus? Rasgue-o depressa, vista-se das galas do mundo, não aperte com a paciência divina, trajando por fora o saco da penitência e trazendo o coração por entro desapertado de todo o cilício e mortificação.

A velha com as mãos postas, a face alevantada e os apagados olhos para o céu, oferecia a Deus todo o amargor daquela austeridade que não cuidava merecer nem lhe parecia entender. Joaninha, que insensivelmente se fora aproximando da avó e a tinha como amparada por trás com um dos seus braços, firmava a outra mão nas costas da cadeira e cravava fita no frade a vista penetrante e cheia de luz. A expressão do seu rosto era indefinível: irisava-lho, distinta mas promiscuamente, um misto inextricável de entusiasmo e desanimação, de fé e de incredulidade, de simpatia e aversão.

Dissera que naqueles olhos verdes e naquele rosto mal corado estava o tipo e o símbolo das vacilações do século.

— Padre! — tornou a velha com sincera humildade na voz e no gesto: — se o mereci, castigai-me. Deus, que me vê e me ouve, bem sabe que o digo em toda a verdade do meu coração, e há de perdoar-me porque sou fraca e mulher.
— Pois aos fracos não é que Ele disse: Toma a tu cruz e segue-me? Quem a obrigou a fazer os votos que fez?
— É verdade, padre, é verdade: bem sei o que prometi, que me voltei a Deus de alma e corpo, que me não pertenço, que nem das minhas afeições posso dispor, mas...
— Mas o quê? Irmã Francisca, a Deus não se engana. Os seus votos não foram feitos num mosteiro, nem proferidos num altar no meio das solenidades da igreja, mas já lho tenho dito, no foro da consciência, na presença de Deus, ligam-na tanto ou mais do se o fossem . Abjure-os se quiser; nenhuma lei, nenhuma força humana a constrange. Diga-mo por uma vez, desengane-me, e eu não torno aqui.
— Oh, por compaixão, padre! pelas chagas de Cristo! Mas um pergunta só, uma só, e eu prometo não pensar, não falar mais em... Onde está ele?
— Joana, retire-se.

Joaninha apertou a avó com ambos os braços; e sem dizer uma palavra, sem fazer um só gesto, lentamente e silenciosamente se retirou para dentro de casa.

—E esta, padre? — disse a velha, sem esperar a resposta à primeira pergunta que com tanta ânsia fizera — e esta, também dela me hei de separar, também hei de renunciar a ela?
— Esta é uma inocente, e enquanto o for...
— Enquanto o for! A minha Joana é um anjo.
— Blasfêmia, blasfêmia! E o Senhor a não castigue por ela. Joana é boa e temente a Deus: esperemos que ele a conserve da sua mão. O outro...
— Que é feito dele, padre? Oh, diga-mo, e eu prometo...
— Não prometa senão o que pode cumprir. Seu neto está com esses desgraçados que vieram das ilhas, é dos que desembarcaram no Porto.
— Ó filho da minha alma! que não torno a abraçar-te...
— Não decerto; vencedores ou vencidos, toda a comunhão, toda a possibilidade de união acabou entre nós e estes homens. Nós temos obrigação de os destruir, eles o seu único desejo é exterminar-nos.
— Meu Deus! meu Deus! pois a isto somos chegados? Pois já não há misericórdia no céu nem na terra!
— A misericórdia de Deus cansou-se; a da terra não sei onde está nem onde esteve nunca. Os fracos dão sacrilegamente este nome à sua relaxação.
— Pois é relaxação desejar a paz, querer a união, suplicar a indulgência? Não nos manda Deus perdoar todas as nossa dívidas, amar os nossos inimigos?
— Os nossos sim, os d’Ele não.
— Tende compaixão de mim, Senhor!
— Se as suas aflições são as da carne e do sangue, se são pensamentos da terra, como desgraçadamente vejo que são, mulher fraca e de pouco ânimo, console-se, que para mim é claro e seguro que estes homens hão de vencer.
— Quais homens?
— Esses inimigos do altar e da verdade, esses homens desvairados pelas especiosas doutrinas do século. Esperam muito, prometem muito, estão em todo o vigor das suas ilusões. E nós, nós carregamos com o desengano de muitos séculos, com os pecados de trinta gerações que passaram, e com a inaudita corrupção do presente... nós havemos de sucumbir. Os templos hão de ser destruídos, os seus ministros proscritos, o nome de Deus blasfemado à vontade nesta terra maldita.
— Pois tão perdidos, tão abandonados da mão de Deus são eles todos... todos?
— Todos. E que cuida, irmã? que são melhores os nossos, esses que se dizem nossos? que há mais fé na sua crença, mais verdade na sua religião? Ó santo Deus!
— Faz-me tremer, padre!
— E para tremer é. A impiedade e a cobiça entraram em todos os corações. Duvidar é o único princípio, enriquecer o único objeto de toda essa gente. Liberais e realistas, nenhum tem fé: os liberais ainda têm esperança; não lhe há de durar muito. Deixem-nos vencer e verão.
— E hão de vencer eles?
— Decerto.
— Ninguém mais diz isso.
— Digo-o eu.
— Tantos mil soldados que o governo tem por si!
— E tantos milhões de pecados contra. Não pode ser, não pode ser: a misericórdia divina está exausta, e o dia desejado dos ímpios vai chegar. A sua missão é fácil e pronta; não sabem, não podem senão destruir. Edificar não é para eles, não têm com quê, não crêem em nada. O símbolo cristão não é s[ó uma verdade religiosa, é um princípio eterno e universal. Fé, esperança e caridade. Sem crer, sem esperar...
—E sem amar!
— Mulher, mulher! o amor é a última virtude...
— Mas por ela, por ela se chega às outras.
— Não, mulher fraca, não. E de uma vez para sempre, irmã Francisca, desenganemo-nos. Entre mim, entre o Deus que eu sirvo, não há uma transação com os seus inimigos. Indulgência nesse ponto não sei o que é. Vejo a sorte que me espera neste mundo, e não tremo diante dela. Quem teme, siga outro caminho; eu nunca.
— Padre, eu não temo nem receio por mim. Sou fraca e mulher, e em toda a tribulação e desgraça hei de glorificar o meu Deus e dar testemunho da minha fé. Mas... mas o meu neto é o meu sangue, a minha vida, é o filho querido da minha única e tão amada filha, ele não conheceu outra mãe, senão a mim, quero-lhe por ele e por ela. Abandoná-lo não posso, tirar dele o pensamento não sei. A vontade de Deus...
— A vontade de Deus é que o justo se aparte do ímpio, é que os cordeiros da benção vão para um lado, e o cabritos da maldição para outro. Esse rapaz... oh! minha irmã, eu não sou de pedra, não, não sou, e também o coração me parte de o dizer... mas esse rapaz é maldito, e entre nós e ele está o abismo de todo o inferno.
— Misericórdia, meu Deus!

Pálido, enfiado, mais descorado e mais amarelo do que era sempre aquele rosto, Frei Dinis pronunciou, tremendo mas com força, as suas últimas e terríveis palavras. Os olhos habitualmente sumidos e cavos, recuaram-lhe ainda mais para dentro das órbitas descarnadas; o bordão tremia-lhe na esquerda; e a direita, suspensa no ar, parecia intimar ao culpado a terrível imprecação que lhe saía dos lábios.

— Maldito! maldito sejas tu! — prosseguiu o frade — filho ingrato, coração derrancado e perverso!
— Meu Deus, não o escuteis! — bradou a velha caindo de joelhos no chão e prostrando-se na terra dura. — Meu Deus, não confirmais aquelas palavras tremendas. Não o ouçais, Senhor, e valha o sangue precioso de vosso filho, as dores benditas de sua mãe, ó meu Deus! para arredar da cabeça do meu pobre filho as cruéis palavras deste homem sem piedade, sem amor...

A velha queria dizer mais; as angústias que se tinham estado juntando naquela alma, que por fim não podia mais e transbordava, queriam sair todas, queriam derramar-se ali em lágrimas e soluços nas presenças do seu Deus que ela via sempre no trono das misericórdias, que não podia acabar consigo que visse o inflexível, o terrível Deus das vinganças que lhe anunciava o frade. Mas a carne não pode com o espírito, as forças do corpo cederam: tomou-a um mortal delíquio, emudeceu, e ... suspendeu-se-lhe a vida. Frei Dinis contemplou-a alguns momentos nesse estado e pareceu comover-se; mas aqueles nervos eram de fios de ferro temperado que não vibrava a nenhuma suave percussão: deu dous passos para a porta da casa, bateu com o bordão e disse com voz firme e segura:

— Joana, acuda a sua avó que não está boa.

Daí tornou por onde viera, e, sem voltar uma vez a cabeça, caminhou apressado; breve se escondeu para lá das oliveiras da estrada.