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Viagens na Minha Terra (grafia de 1943)/XXXVII

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A Graça e sua bela fachada gótica. — Sepultura de Pedro Árvores Cabral. —Outro barão que não é dos assinalados.— Igreja do Santo milagre. — Belos medalhões moçirabes.— De como, chegando o prior e o juiz, houve o A. vista do Santo milagre, e com que solenidades. — Monumento da muito alta e poderosa princesa a infanta D. Maria da Assuncão. — Casa onde sucedeu o milagre, convertida em capela de estilo filipino. — O homem das botas, e o que tem ele que haver com o Santo milagre de Santarém. — Admirável e graciosa esperteza na regência do Rossio. - Aaroun-el-Raschid e teoria[1] dos governos folgazões, os melhores governos possíveis. — Volta o paládio escalabitano de Lisboa para Santarém.

Inclinamos o nosso caminho para a esquerda, e fomos passar diante do arrendado e elegante frontispício gótico da Graça. A ausência de não sei que regedor, ou insignificante personagem de igual impor-tância[2] que tem as chaves da igreja e convento, nos fez perder toda a esperança de visitar a sepultura de Pedro Álvares Cabral, que ali jaz, assim como outras belas e interessantes antigüidades de não menor preço.

Fomos seguindo até casa do barão de A., outro ilegítimo, porque não pertence aos barões assinalados.

Que sem passar além da Taprobana
No velho Portugal edificaram
Novo reino que tanto sublimaram.

Encontramo-lo pronto a acompanhar-nos e a presidir, como juiz da irmandade que é, à grande cerimônia da exposição e ostensão do Santo milagre.

Juntos descemos à igreja, que é perto.

A igreja pequena é do pior gosto moderno por dentro e por fora... Notável não tem nada senão uns quatro medalhões de pedra lavrada com bustos de homens e mulheres em relevo, que visivelmente pertenceram a edificação antiga, e que atualmente estão incrustados na tosca alvenaria do cruzeiro.

Os bustos são de puro e finíssimo lavor gótico, altos de relevo e desenhados com uma franqueza que se não encontra em esculturas muito posteriores.

São talvez relíquias da primitiva igreja do Santo milagre que nas sucessivas reedificações se têm ido conservando. Abençoado seja o escrupuloso que as salvou deste último melhoramento que houve no desgraçado e desgracioso templo; o que não foi há muitos anos por certo.

Chamo gótico ao lavor daquelas cabeças, porque é a frase vulgar e imprópria usada de toda a gente; segundo já observei noutra parte, com mais exação se devera dizer moçárabe.

Chegou o prior, o Sr. juiz deu as suas ordens, vieram uns poucos de irmãos com tochas, distribuíram-nos a cada um de nós a sua, e processionalmente nos dirigimos à porta lateral do altar-mor, da qual se sobe por uma escada assaz larga e cômoda, à espécie de camarim que está paralelo com o mais alto do trono em que perpetuamente se conserva o grande paládio santareno.

Subimos, acompanhados do prior em sobrepelíz e estola; chegados, ao alto, ajoelhamos em roda dele que subiu a uns degrauzinhos, abriu, com a chave dourada que trazia pendente ao pescoço, uma como porta de sacrário, depois ajoelhou, incensou, tornou a ajoelhar, disse alguns versetos a que respondeu o sacristão, e finalmente tirou de seu repositório uma espécie de âmbula de ouro de fábrica antiga, mas não mais antiga que o décimo sexto, ou décimo quinto século, quando muito.

Depois de nos inclinarmos e receber a benção que o padre nos deitou com a relíquia, foi-nos permitido erguer-nos, e chegar perto para ver e observar.

Entre uns cristais já bem velhos e embaciados se descobre com efeito o pequeno vulto amarelado-escuro que piedosamente se crê ser o resto da partícula consagrada que a judia roubara para seus feitiços.

Escuso contar a história do Santo milagre de Santarém que toda a gente sabe. O bom do prior, ex-frade trino gordo e bem conservado, não nos perdoou o menor ponto dela, que tivemos de ouvir com a maior compunção.

Encerrada outra vez a âmbula com as mesmas solenidades, entramos em conversação com o prior.

Naquele mesmo camarim junto a devota relíquia se conservaram, por espaço de cinco ou seis anos, se bem me recordo do que o bom do pároco nos contou, os restos mortais da senhora infanta D. Maria da Assunção, que falecera em Santarém nos últimos meses da ocupação daquela vila pelas forças realistas. O cadáver, mal embalsamado e com más drogas, foi metido num caixão de folha-de-flandres. Em pouco tempo a corrupção estragou e rompeu a folha, e uma infecção terrível apestava a igreja. Sofreu-se isto anos, representou-se ao governo por vezes, mas nenhuma resolução se pôde obter. Até que afinal, declarando o prior que, se não mandavam tomar conta daqueles tristes restos da pobre princesa, ele se via obrigado a metê-los na terra, foi-lhe respondido que fizesse como entendesse; e ele entendeu que os devia sepultar no cruzeiro da igreja, como fez, do lado da epístola, isto e, a direita

E ai jaz em sepultura rasa, sem mais distinção nem epitáfio, a muito alta e poderosa princesa D. Maria, filha do muito alto e poderoso príncipe D. João o VI, Rei de Portugal, Imperador do Brasil, e da conquista e navegação etc.

Assim é o mundo, as suas grandezas e as suas glórias!

A visita ao Santo milagre não é completa sem se ir ver a casa onde ele se operou. Conservou-se ela por alguns séculos em grande veneração e em mil seiscentos e tantos se converteu por fim em capela. Hoje está abandonada, chove em toda ela, e apenas tem uma má porta que a defende das incursões dos animais. Pena e desleixo grande, porque é elegante e graciosa a capelinha, lavrada de bons mármores, no melhor gosto do décimo sexto século, de renascença já multo adiantada no clássico: é um verdadeiro tipo do estilo filipino, que tanto predomina nessa época em toda a península.

A história do Santo milagre de Santarém muitas vezes tem andado ligada com a história do reino; e já neste século, no tempo da guerra da independência, veio prender com um dos fatos mais importantes, e também com a mais curiosa e cômica aventura de que em Lisboa há memória.

Aludo nada menos que ao homem das botas. E perdoem-me as senhoras beatas a irreverência aparente, que bem sabem não ser eu de motejar com as coisas sérias e santas. Mas o fato é que a história do Santo milagre está ligada com a célebre historia do homem das botas.

Saiba pois o leitor contemporâneo, e saiba a posteridade, para cuja instrução principalmente escrevo este douto livro, que pela invasão de Massena, o grande paládio escalabitano foi mandado recolher a Lisboa, e aí se conservou alguns anos até muito depois da completa retirada dos franceses.

Passado todo o perigo de que o exército invasor roubasse — ou profanasse — que era o mais provável — a santa relíquia, começou a reclamá-la o senado e o povo santareno, e a mostrar muito pouca vontade[3] de lha restituir o senado e povo ulissiponense. Era uma questão de entre Alba e Roma, que dava sério cuidado aos refletidos. Numas da regência do Rossio.

Em poucas perplexidades tão graves se viu aquele pobre governo que tantas teve, e de quase todas se saiu tão mal.

Não assim desta que a evitou com o mais inesperado e admirável estratagema, digno de ornar os maravilhosos fastos do grande Aaroun-el-Raschid, ou de qualquer outro príncipe de bom humor, desses poucos[4] felizes que em felizes tempos reinaram a brincar, e zombaram com o seu povo, mas fazendo-o rir,

Pois, senhores, apertada se via a regência destes reinos com a restituição do Santo milagre que era de justiça fazer-se a Santarém, mas que Lisboa recusava, e ameaçava impedir. Temia-se alboroto no povo.

Não sei de quem foi o alvitre, mas foi de maganão de bom gosto; e bom gosto teve também o governo em o aceitar e aproveitar. Para o dia em que o Santo milagre devia sair de Lisboa Tejo acima, e que se esperava fosse com grande solenidade e pompa eclesiástica, — fez-se anunciar por cartazes que um fulano de tal passaria o rio, de Lisboa a Almada, em umas botas de cortiça nas quais se teria direito e enxuto navegando a pé sem mais embarcação, vela nem remo.

A logração era gorda e grande; melhor e mais depressa foi engolida. No dia aprazado despovoou-se a capital, e uns em barcos outros por navios, outros por essas praias abaixo, tudo se encheu de gente de todas as classes, e todos passaram o melhor do dia à espera do homem das botas.

No entanto, muito sorrateiramente embarcava o Santo milagre no seu barco de água arriba, navegava com vento e maré para as ditosas ribeiras de Santarém.

Ninguém o viu sair, nem soube novas dele em Lisboa senão quando constou da sua chegada a Santarém, e das grandes festas que lhe fizeram aqueles saudosos e devotos povos ribatejanos.

Os Aarouns-el-Raschids do Rossio riram de socapa: e nunca tão inocentemente riu governo algum de ter enganado o povo.

Nós celebramos a história como ela merecia, e fomos jantar à Alcáçova, para irmos de tarde ver a Ribeira e procurar os vestígios do seu incuto Alfageme.

Notas

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  1. Na fonte <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=1720> aparece "teori", corrigido ao disponibilizar no Wikisource por se tratar de um óbvio erro.
  2. Na fonte <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=1720> aparece "impor-tância", corrigido ao disponibilizar no Wikisource por se tratar de um óbvio erro.
  3. Na fonte <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=1720> aparece "von-tade", corrigido ao disponibilizar no Wikisource por se tratar de um óbvio erro.
  4. Na fonte <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=1720> aparece "pou-cos", corrigido ao disponibilizar no Wikisource por se tratar de um óbvio erro.