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Viagens na Minha Terra (grafia de 1943)/XXXVIII

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Jantar nos reais paços de Afonso Henriques — Sautes e salmis — Desde o A. Ribeira de Santarém em busca da tenda do Alfageme — A espada do Condestável — Desapontamento. — O salão elegante Dissipam-se as idéias arqueológicas. Os fósseis. — Tudo melhor quando visto de longe.— O baile público. — Soirée de piano obrigado. — Teatro. Desafinações da prima-dona. Sífilis incurável das traduções. Destempero dos originais. — A xácara de rigor, o subterrâneo e o cemitério. — Sublime galimatias do ridículo. — A bela e necessária palavra “galimatias". — Se as saudades matam. — Perigo de aplicar o escalpelo ou a lente ao mais perfeito das coisas humanas. — De como a lógica é a mais perniciosa de todos as incoerências.

Esperava-nos com efeito em casa do nosso bom hóspede, nos régios paços de Afonso Henriques, um esplêndido jantar a que assistiram quase todos os cavalheiros da terra. — Não quero dizer as notabildades, por ser palavra peralvilha a que tenho invencível zanga. — As iguarias de legítima escola portuguesa, não menos saborosas e delicadas por aparecerem estremes de sautés e salmis estrangeirados. Brilharam sobretudo os produtos das duas grandes vindimas rivais, do Ribatejo e Ribadouro. Foi largo e alegre o jantar.

Acabamos tarde, montamos logo a cavalo, e pela ponta de Atamarma descemos à Ribeira; era quase sol posto quando lá chegamos.

É o subúrbio democrático da nobre vila, hoje o rico e o forte dela. Faz lembrar aquelas aldeias que se criaram á sombra dos castelos feudais e que, libertas, depois, da opressora proteção, cresceram e engrossaram em substância e força: o castelo, esse está vazio e em ruínas.

Por aqui se faz quase todo o comércio da Estremadura e Beira com o Alentejo. Os habitantes laboriosos e ativos conservam os antigos brios e independência do caráter primitivos é a única parte viva de Santarém.

Cruzamos a povoação em todos os sentidos, procurando rastrear algum vestígio. confrontar algum sítio onde pudéssemos colocar, pela mais atrevida suposição que fosse, a tenda do nosso Alfageme com as suas espadas bem "corrigidas", as suas armaduras luzentes e bem postas — e o jovem Nuno Álvares passeando ali por pé, ao longo do rio — como diz a Crônica — namorado daquela perfeição de trabalho e dando a “correger” a bela espada velha de seu pai ao rústico profeta que tantos vaticínios de grandeza lhe fez, que o saudou condestável, conde de Ourém e salvador da sua pátria.

Nada pudemos descobrir com que a imaginação se iludisse sequer, que nos desse, com mais ou menos anacronismo, uma leve base tão-somente para reconstruirmos a gótica morada do célebre cuteleiro-profeta que a história herdou das crônicas romanescas, e hoje o romance outra vez reclama da história.

Em Santarém há poucas casas particulares que se possam dizer verdadeiramente antigas; na Ribeira, nenhuma. As emplastagens e replastagens sucessivas têm anacronizado tudo. É uma feliz expressão do Sr. Conde de Raczynski[1] bem aplicada por ele ao estado de quase todos os nossos monumentos, esta de anacronismo.

Mas ali, na vila alta ou Marvila, no Santarém propriamente dito, há os templos, os conventos, a cerca das muralhas que todavia conservam a fisionomia histórica da terra: aqui nem isso há.

Voltei completamente desapontado da Ribeira, isto é, da sua pedra e cal: gosto imenso da sua gente.

Outra surpresa de mui diferente gênero nos esperava à noite em Marvila, no elegante salão da B. de A., com quem fomos tomar chá. Em meio das ruínas e desconforto daqueles desertos e mortos pardieiros circunstantes, ir encontrar uma casa em plena florescência de civilização e de vida; ver a amabilidade e a elegância fazendo graciosamente as honras dela — por mais que se devesse esperar — sempre espanta a primeira vista: parecia golpe de varinha de condão.

Em tão agradável e jovem companhia todas as idéias arqueológicas se desvaneceram, apesar de dous ou três fósseis que ali apareciam para se não perder de todo a cor local talvez.

Largamente se conversou, de Lisboa principalmente, dos nossos mútuos amigos, das festas do último inverno, das probabilidades que se deviam esperar do futuro.

Ralhamos muito da sociedade portuguesa; exaltamos Paris e Londres e não sei se Pequim e Nanquim também, e concluímos que antes Timboctu do que a secante capital do nosso pobre reino. E contudo estávamos com saudades dela: e concessão daqui, concessão dali, viemos a que não era tão má terra como isso.

Admirável condição da natureza humana, que tudo nos parece melhor e menos feio quando visto de longe!

O baile público mais sensabor, detestável de barulho e confusão em que, para repousar os olhos num rosto conhecido e agradável foi preciso furar por entre centenas de cotovelos bárbaros que se não sabe donde vieram, levar desalmadas pisadelas do dançante noviço, do deputado recém-chegado, e das botas novas do novo diretor da Galocha — e, mais horrível que tudo! ver as absurdas toilettes, os penteados fabulosos, as caras incríveis e as antediluvianas figuras de tanta mulher feia e desastrada..— pois esse mesmo baile, quando já não é senão reminiscência que acorda no meio do enfado ronceiro de uma terra de província, parece outro. As luzes, as flores, a música, toda aquela animação lembra com prazer, o mais esquece, e involuntariamente se descai um pobre homem a suspirar por ele.

A soirée mais maçante, de piano obrigado com dueto das manas polca das primas e cassino das tias velhas — recordada em iguais circunstâncias, também já não acode à memória senão como uma reunião escolhida e íntima, de fácil e doce trato... oh! o verdadeiro prazer da sociedade.

Pois o teatro... Que se lembre alguém na província dos martírios que sofreu o ouvido com os berros da prima-dona, as desafinações do tenor, ou com o enfadonho ressonar daquela adormecida orquestra de S. Carlos!

A enjoativa tradução de uma comédia da rua dos Condes roída de incurável sífilis, figura-se aveludada de todas as graças do estilo de Scribe.

E o destempero original de um drama plusquam romântico, laureado das inacessíveis palmas do Conservatório para eterno abrimento das nossas bocas! Lá de longe aplaude-o a gente com furor, e esquece-se que fumou todo o primeiro ato cá fora, que dormiu no segundo, e conversou nos outros, até à infalível cena da xácara, do subterrâneo, do cemitério, ou quejanda; em que a dama, soltos os cabelos e em penteador branco, endoudece de rigor, — o galã, passando a mão pela testa, tira do profundo tórax três ahs! do estilo, e promete matar seu próprio pai que lhe apareça, — o centro perde o centro da gravidade, o barbas arrepela as barbas...[2] e maldição, maldição, inferno!.. “Ah mulher indigna, tu não sabes que neste peito há um coração, que deste coração saem umas artérias, destas artérias umas veias — e que nestas veias corre sangue... sangue, sangue! Eu quero sangue, porque eu tenho sede, e é de sangue... Ah! pois tu cuidavas? Ajoelha, mulher, que te quero matar... esquartejar, chacinar!” — E a mulher ajoelha, e não há remédio senão aplaudir...

E aplaude-se sempre.

E não é de mim que falo, que eu gosto disto; os outros é que se enfastiam e cansam de tanta barafusta, sempre a mesma... Mas enfim o que digo é que na província não há tal fastio, que esquece a canseira, e que nem o sublime galimatias do ridículo dali se percebe.

Peço aos ilustres puritanos que, á força de sublimado quinhentista, têm conseguido levar a língua à decrepitude para curar de suas enfermidades francesas, peço-lhes que me perdoem o galimatias, porque ele é muito mais português que outra coisa. A célebre oração Pro gallo Mathiae deu origem a esta bela e expressiva palavra, que sim foi procriada em francês, mas hoje precisamos cá muito mais bela que em parte nenhuma.

Volto já da digressão filológica: tornemos à ótica e à catótrica.

Grande coisa é a distância.

E dizem que saudades que matam! Saudades dão vida; são a salvação de muita coisa que, em seu pleno gozo e posse pacifica, pereceria de inanição ou morreria da opressora moléstia da sociedade.

Por isso eu não gosto de meter o escalpelo no mais perfeito da construção humana, nem de aplicar a lente ao mais fino e delicado da seu funcionar..

Vamos usando destas palavras que herdamos, sem meter louvados na herança; não suceda descobrirmos que estamos mais pobres do que se cuidava... vamos repetindo estas frases que nos formularam nossos antepassados sem as analisar com muito rigor; não suceda vermos claro demais que temos passado a vida a mentir...

Detesto a filosofia, detesto a razão; e sinceramente creio que num mundo tão desconchavado como este, numa sociedade tão falsa, numa vida tão absurda como a que nos fazem as leis, os costumes, as instituições, as conveniências dela, afetar nas palavras a exatidão, a lógica, a retidão que não há nas coisas, é a maior e mais perniciosa de todas incoerências.

Não falemos mais nisto, que faz mal, e acabemos aqui este capitulo.

Notas

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  1. Na sua obra intitulada Les Arts en Portugal, Paris, 1846 [N. A.]
  2. Centro e barbas são qualificações e nomes de empregos teatrais. [N. A.]