Vida do Padre José de Anchieta/I/VII
Tinha o Padre Manuel da Nóbrega largado o cargo de Provincial, ao Padre Luís da Grã, por ordem do nosso muito Rdo. Padre geral Diogo Laínes, e por ordem do padre provincial era superior das casas de São Vicente, pelos anos de mil quinhentos e sessenta e três. O qual considerando como Deus ajudava os tamoios contra os portugueses, entendeu ser justo castigo da Divina mão, pelas muitas sem-razões que homens de pouca consciência tinham feitas contra eles, de mortes e injustos cativeiros; assim lhes pregavam muitas vezes, que enquanto os contrários não perdessem o direito da justiça, que contra nós tinham, não havíamos de levar o melhor deles. E por outra parte trabalhava com meios espirituais, de orações e penitências, aplacar a ira de Divina, nem cessava de pedir a Deus desse remédio a tantos males.
Mais de dois anos andou neste requerimento, e o Senhor lhe dava a sentir intentasse ir a suas terras a fazer pazes com eles. Comunicou este meio com os da governaça da vila, e a todos pareceu coisa do céu e de muito serviço de Deus, e último remédio para a Capitania, porque apertados do inimigo tratavam já de despejar a terra.
A conta que o padre fez era esta: se os inimigos aceitarem as pazes tudo se aquieta, e quando as não aceitem, ao menos ficará nossa causa justificada diante de Deus, os cristãos edificados de verem como arriscamos as vidas por seu remédio, e os mesmos contrários, com nossa estada, sempre tomarão alguma notícia das coisas de sua salvação, o que tudo resultará em glória de Deus Nosso Senhor.
Com esta resolução se partiu o Padre Manuel da Nóbrega, com seu fiel companheiro, o Irmão José, e outro homem por nome Antonio Luís, para a terra dos tamoios, que era de São Vicente para a banda do Rio de Janeiro vinte e sete léguas..
Levou-os no seu navio um homem de muito respeito e virtude, e grande amigo dos padres, por nome José Adorno, da nacionalidade italiana, da principal nobreza de Gênova, tio do nosso Padre Francisco Adorno , o qual estudou o curso das artes e teologia no Colégio de Coimbra, e depois veio a ser provincial da Província de Gênova. Por este tempo tinham os contrários feito mais de duzentas canoas de guerra, para cometerem por diversas os moradores de São Vicente, e continuarem os assaltos, uns indo e outros vindo, até os acabarem.
Porém atalhou Deus Nosso Senhor a estes males com a jornada dos padres, que se puseram por rodela a todos os combates, porque sabendo os inimigos do Rio de Janeiro que vieram os portugueses à sua fronteira, fizeram prestes suas canoas para os virem matar, e ganhar entre os seus a honra desta vitória..
Mas pela bondade Divina, em vendo a venerável presença do Padre Manuel da Nóbrega, e ouvindo a suave prática do Irmão José, logo se amansaram os bravos corações, e diziam uns para os outros: tais homens como estes são espias, bem nos podemos fiar deles. Entre outros veio um principal muito soberbo, com muita gente em dez canoas, com o intento que digo, e falando fingidamente nas pazes metia por condição que lhe dessem três principais que contra eles ajudaram a defender os protugueses e índios cristãos, em um assalto que foram dar na vila de São Paulo. Resistiu-lhe o padre com boas razões; mas como não era capaz delas, foi-se agravando e tanto que faltou pouco para matar aos padres, que não estavam menos aparelhados para darem a vida por causa tão justa, como era não consentirem que fossem mortos homens inocentes, amigos e defensores nossos. E assim escreveu o padre ao capitão de São Vicente e a toda a terra, que tal não consentissem, ainda que soubessem de certo que haviam de matar e comer a ele e a seu companheiro, porque isto era o que lá foram buscar. Mas tudo converteu Deus Nosso Senhor em bem, porque o índio feroz entrou em São Vicente de paz, e foi mui tratado dos portugueses, e tornou-se contente para sua terra.
Falam os índios com o Padre sobre a castidade prática de um índio velho
[editar]Os índios daquela aldeia se ajuntaram em casa do hóspede dos padres, que era um velho mui respeitado dos outros, e tratavam os padres assim das pazes como de sua maneira de viver, perguntando por tudo muito miudamente.
E posto que com as razões que lhes davam em suas perguntas, em todas as matérias se davam por satisfeitos, só na matéria da pureza não podiam tomar pé seus brutos entendimentos, nem cuidar que havia pessoas que guardassem a castidade; ofereciam suas parentas, conforme a seu costume, como em confirmação das pazes, mas vendo a diferente maneira da vida dos padres, mostravam grande espanto, e cobravam muito crédito de sua virtude.
É ainda neste particular incrédulos, chegaram uma vez a lhe perguntar pelos pensamentos e desejos, dizendo assim:
Nem quando as vedes as desejais?
Ao que respondeu o Padre Manuel da Nóbrega, mostrando umas disciplinas: Quando nos salteiam tais pensamentos acudimos com esta mezinha. De que ficaram muito mais espantados, cobrando maior respeito aos padres. Pregava o velho, aos que vinham do Rio e de outras partes, com intento de matar os padres, dizendo que aqueles padres eram amados de Deus, e se alguém os agravasse logo havia de vir sobre eles a morte, com que os maus entravam em si, e deixavam o mau propósito que traziam de os matar, e aos mesmos padres dizia: rogai a Deus por mim, pois vedes que eu vos defendo. E não foi em balde sua petição, porque daí há muitos anos o trouxe Deus a viver entre os fiéis, foi batizado e morreu cristão. Quanto às pazes dizia este mesmo índio: Antigamente fomos muito amigos dos portugueses, mas eles tiveram toda a culpa de nossas guerras, porque nos começaram a saltear e tratar mal, pelo que, ainda que os de sua parte eram muitos, Deus nos ajudou, por saber que éramos injustamente maltratados.
O padre lhe respondia: e porque eu sei que Deus está irado contra os meus, pelos males que vos têm feito, vim cá a fazer as pazes com vós outros, para amansar a Deus, e fazer que perdoe aos meus, os quais de sua parte não hão de quebrar as pazes, que por isso pus eu agora minha vida em perigo; mas se vós outros as quebrais, entendei que a ira de Deus se há— de virar contra vós, e haveis de ser destruídos de todo.
Isto lhe dizia o padre não por ameaças e feros, mas com tanta certeza, que parecia ter-lhe Deus revelado; porque estes tamoios daquela comarca nunca quebraram as pazes, e seus parentes do Rio de Janeiro e Cabo Frio, que as quebraram, de todo são acabados com guerras que lhes deram, assim o Governador Geral Mem de Sá, por duas vezes, como os governadores particulares da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, tirando uns poucos que se fizeram cristãos. E assim se cumpriu a profecia do padre Manuel da Nóbrega, o qual esteve ali com o Irmão José cerca de dois meses, dizendo cada dia missa de madrugada; e aos índios que a vinham ver, dava o irmão razão de algumas coisas conforme sua capacidade deles.