Vida do Padre José de Anchieta/I/VIII
Sucedeu que outros índios da mesma nação deram na torre chamada da Bertioga, situada em uma das barras da ilha de São Vicente, e pondo logo fogo às portas, a entraram, e mataram a um homem com sua mulher, e destruíram toda a família, matando e levando os que quiseram.
Na mesma noite que isto aconteceu, o revelou Deus ao Irmão José, que estava em oração quase toda a noite, como costumava. E logo o disse ao padre diante de Antonio Luís, que depois o referiu em seu testemunho.
Pediu mais o Irmão José ao padre se tornasse para São Vicente, a consolar a gente, e continuar com seu cargo, que ele lhe ficaria em reféns, porque de outra maneira não queriam os contrários, deixar ir o padre.
Aceitou o Padre Manuel da Nóbrega o conselho, e chegando a São Vicente soube serem verdadeiras três coisas que o Irmão José lhe tinha dito, entre os tamoios, em vinte e sete léguas de distância: da morte da gente, e cativeiro da Bertioga, e como um homem conhecido era morto de um desastre, por passar um carro por cima dele, e que havia de chegar àquele porto um navio, como de fato chegou dali a cinco dias, do que deram os homens muitas graças a Deus, e tiveram ao Irmão José em maior reputação, como estas obras mais que humanas mereciam.
Partido o padre durou o cativeiro do Irmão José mais três meses em que esteve só por não ser possível outra coisa, e o padre conhecer bem a virtude de quem tanto confiava. Ocupava-se em fazer práticas àquela fera gente, de coisas de sua salvação, e com isto, e com seu exemplo, e de sua santa vida, muitos fizeram tal conceito das coisas da fé que bem puderam ser batizados, se estiveram em parte mais segura, para não se arriscarem a tornar strás. Tinham-lhe os bárbaros grande respeito, por dizerem que o irmão falava com Deus e também porque os curava em suas enfermidades.
O demônio que não dorme e nem perde ocasião para tentar aos servos de Deus sofria mal ver a uma mancebo metido nas chamas da Babilônia, e não se lhe chamuscar nem um cabelo, porém o soldado espiritual não largava as armas próprias daquela batalha, oração e jejum.
Na oração e familiaridade com Deus foi sempre muito contínuo, e em especial no tempo de tão evidente perigo, ajudando-se da disciplina e aflição da carne, tendo-a por principal remédio para toda a doença espiritual, e principalmente para esta tão contínua e importuna. Sobretudo se ajudava da intercessão da Virgem Senhora, de quem sempre foi mui devoto, e em especial de sua puríssima conceição.
Desenterra e batiza uma criança
[editar]Temperou Deus Nosso Senhor este seu voluntário cativeiro, com muitas consolações que fez a seu servo, umas interiores em seu espírito e outras exteriores que se deixam ver de fora. Por muito certo temos comunicar Deus ao Irmão José muito gosto dalma em todo este tempo, porque o costuma fazer com todos os que, por seu amor e bem das almas, põem a risco suas vidas, porém deste não podemos dar fé, por ser das portas adentro, entre Deus e a alma pura a quem sua divina bondade se comunica.
Das outras consolações exteriores, em que um servo de Deus vê que o toma o mesmo Senhor por instrumento para salvar alguma alma, apontarei duas. Uma menina nasceu quase morta, e batizando-a tornou de todo em si, mas depois de alguns dias se foi ao céu. Ouviu acaso falar umas índias, que uma velha enterrara viva uma criança, neto seu, por não ser de legítimo matrimônio, que também a seu modo, entre estas há aborrecimento ao adultério, que com seu fraco lume da razão o aborrecem; mas como cegos castigam com rigorosa pena a quem não teve culpa no malefício.
Ouvindo, este caso, como digo, perguntou pelo lugar e foi-o desenterrar; e com haver mais de meia hora que assim estava, o achou ainda vivo e o batizou e fez com algumas índias lhe dessem de mamar, com que viveu algumas semanas e se foi ao céu, para aquele Senhor que o guardou com vida na cova, e o tinha predestinado para tanto bem. Com estes e outros bons sucessos, aliviou Deus o cativeiro do Irmão José, e sobretudo quando, no fim dos três meses que esteve só, além dos dois da companhia do Padre Manuel da Nóbrega, alcançou o que pretendia, que era concluir as pazes com os contrários, como pela bondade de Deus concluiu.
Eles mesmos o levaram em uma canoa a São Vicente, donde foram mui bem agasalhados, e desta maneira o Irmão José com sua presença de extraordinária alegria não só ao Padre Manuel da Nóbrega, e aos mais padres da casa, mas também a toda a Capitania, por ficarem todos com esta obra mui obrigados.
E os tamoios dali por diante entravam na Capitania, sem fazer mal algum.