Vida do Padre José de Anchieta/II/I

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Havendo de tratar neste livro das sólidas e religiosas virtudes do Padre José, é bem que demos princípio a esta matéria, pela oração, porque a comunicação familiar com Deus, que nela se aprende e exercita, é a fonte donde todas elas nascem, e donde tomam lustre e perfeição. O espírito da oração é o que dá ser à vida religiosa, acende o zelo das almas, e é o fundamento das profecias e milagres, quando Deus é servido de os fazer, por algum instrumento digno de sua santa mão.

Muitas virtudes do Padre José se mostram no que de sua santa vida se escreveu, no livro primeiro. Mas de propósito colhi e guardei algumas flores, para este segundo, porque consideradas juntas por si, fora de guerras e outros negócios, farão maior impressão na memória e maior desejo de as imitar, a quem as ler, ou ouvir ler.

Oração contínua[editar]

Era o Padre José homem de muita oração, muito exercitado e contínuo nela, dormia muito pouco e quase toda a noite gastava com Deus, ora passeando pelos corredores sem sapatos, ora de joelhos a um canto, ora na igreja. E às duas horas depois de meia noite, se ia encostar sobre o catre, vestido, sem nunca usar de lençóis.

Em todas as coisas que tratava, grandes e pequenas, prósperas e adversas, sempre achava e andava com Deus. E o que é muito de espantar, com tanta destreza descia a cumprir com as empresas do serviço de Deus, que trazia entre mãos, que parece que nem a terra, nem no céu faltava um ponto. Assim sabia temperar a obrigação de Marta com a contemplação de Madalena, que nem o cuidado exterior do bem do próximo o perturbava, nem o trato contínuo com Deus dava lugar a o terem por ocioso. Antes muitas pessoas, quando menos o esperavam, o achavam consigo, em seus perigos da alma e do corpo, como ao diante se verá.

Tal foi o Padre José em todo o tempo de sua vida, sempre um, sempre semelhante a si mesmo, no espírito da oração, pelo que não há que espantar das maravilhas que dele se contam, nem da grande perfeição da virtude a que chegou, pois nesta escola do Espírito Santo continuou com muita diligência, por espaço de quarenta e quatro anos, que tantos viveu no Brasil.

Composição exterior na oração[editar]

A exterior composição na oração devia de ser sempre, tal qual foi aquela em que por vezes foi visto: de joelhos, no meio da casa, as mãos postas, os olhos fechados, que de quando em quando abria, olhando amorosamente para o céu, o rosto abrasado, brandos e afetuosos suspiros, nomeando os mistérios da Sagrada Paixão de Cristo Nosso Senhor, como quem neste tesouro tinha todo seu amor, com muitas mostras de interior sentimento. Muitas vezes foi visto, estando dormindo, bater no sobrado e pronunciar o nome de Deus mui afetuosamente, como deu testemunho um homem, que fora companheiro do padre muitos anos, por nome Estevão Ribeiro, morador na vila São Paulo.

A um padre da Companhia disse o Padre José, que nos dias em que estivara recolhido para fazer profissão, meditara na Paixão do Senhor, e que ali sentira muito do que o mesmo Senhor padeceu, experimentando dores intensíssimas.

Levantando do chão na missa e oração — Gaspar Lopes[editar]

Estando em uma aldeia com outros três sacerdotes, além de dizer missa cada dia ouvia a dos outros, de joelhos, e o mesmo fazia na casa do Espírito Santo, sendo ali superior; desta grande continuação lhe nasceu ter calos nos joelhos, e às vezes se lhe gretavem; e uma testemunha jura que lhe viu um joelho em carne viva, por esta ocasião. Ordinariamente o não achavam desocupado que não estivesse em oração; até na mesa algumas vezes se esquecia de comer, fazendo jaculatórias e falando com Deus; e essa devia ser a causa por que costumava andar sem barrete na cabeça, por andar falando com tal Senhor, como notou o Padre Miguel Viegas em sua informação.

Costumava dizer que nenhuma coisa nos impedia o andar com o pensamento em Deus, senão nossa pouca providência. Também dizia de si, que lhe não dava trabalho a guerra dos pensamentos impertinentes, de que os mais nos queixamos.

Nove pessoas juram, em seus testemunhos, terem ouvido a muitas outras, e correr disso pública fama, que o Padre José por muitas vezes fora visto estar levantado do chão, por algum espaço, estando dizendo missa ou em oração na igreja.

De vista o afirma um morador de São Vicente, por nome Gaspar Lopes, que o viu com seus próprios olhos levantado do tabernáculo do altar, obra de um palmo, antes de levantar a Deus; foi isto na Capela de São Jorge, perto da vila, no engenho de açúcar que é uns senhores principais, de Flandres, muito católicos e devotos da Companhia, por nome de Erasmos Esquetes.

Também disse que o vira posto em oração, levantado no ar, na igreja de Nossa Senhora da Escada, perto desta cidade da Bahia, Isabel Nogueira, dona viúva, com outra sua vizinha, e fazendo estrondo na igreja, para ver se tornava em si, e vendo que nada bastava, confusas e edificadas do que viam, deram graças a Deus.

Dizendo missa na igreja de Nossa senhora de Porto Seguro, o viram dez ou doze pessoas principais levantado do chão obra de um côvado, e espantados olharam uns os outros, dizendo: autentiquemos este milagre. A que disseram outros que o não fizessem, por ser o padre ainda vivo, que o não tomaria bem.

Presença contínua de Deus[editar]

Muito ajuda para uma pessoa ter bem oração, buscar tempo desocupado e lugar recolhido, porém ao Padre José todo o tempo lhe era desocupado, e todo o lugar recolhido, o altar, o coro, o cubículo, a mesa, os corredores e as praças, os navios, a praia e os pés das árvores, o dia e a noite, levantado sobre a terra, mergulhado debaixo da água, rodeado de bárbaros furiosos no sertão, ou cercado de onças em as brenhas; sempre achava a Deus, e sempre andava em sua divina presença.

Destes passos alguns já estão escritos, e outros se apontarão adiante.