Vida do Padre José de Anchieta/II/IX
Não me parece que satisfaço a quem ler este tratado, com dizer em algumas partes dele, que os padres da Companhia ensinam aos índios a doutrina, sem declarar juntamente o trabalho e ocupações que com eles tomam, por amor de Deus, e o fruto que dali se colhe, assim no que toca ao conhecimento de nossa santa fé, como ao melhoramento de seus costumes.
E não trato como algumas vezes os vão buscar ao sertão, com cópia de índios das aldeias, daí mais de cem léguas, e ainda mais de duzentas, com imenso trabalho de fomes, sedes, calmas, frios, asperezas do caminho, e perigo de os saltearem, ou de lhes resistirem aqueles que vão buscar, por não conhecer o bem que lhes vão oferecer, com outros muitos descontos e incomodidades.
Mas, depois de trazidos e agasalhados em suas casas, o modo ordinário de os conservar e ensinar é o seguinte:
Rosário do nome de Jesus
[editar]Todos os dias, em amanhecendo, se tange às Ave Marias de pela manhã e daí a pouco à missa, que acabada se lhes ensina a doutrina na sua língua. E depois vai cada um a seu serviço; em algumas partes, como as aldeias da Capitania do espírito Santo, entre as Ave Marias e a missa, se ajuntam os meninos e meninas na Igreja ou à porta de fora, e repartidos em coros cantam em alta voz pelo português, o rosário do benditíssimo nome de Jesus, desta maneira.
Entoam os meninos:
Bento e louvado seja o Santíssimo Nome de Jesus.
E respondem as meninas:
E da Santíssima Virgem Maria, Madre sua, para sempre, Amém.
E no cabo das dez, dizem:
Glória Patrietc.
Desta maneira entoam os meninos e prosseguem até cinqüenta, que parece àquele tempo uma alvorada de anjos.
A doutrina que a todos se ensina são as orações e parte do Diálogo que contém a declaração dos artigos da fé, e após isto se recolhem os meninos para a escola, cada um à sua estância, uns a ler, outros a cantar cantochão e canto de órgão, e outros a tanger flautas e charamelas, para oficiarem as missas em dias de festa, e solenizarem as procissões na aldeia e na cidade, e em outros atos públicos, como quando se examinam na sala dos estudantes do curso para bacharéis e licenciados, e quando tomam os graus.
Às cinco horas da tarde se torna a tanger o sino à doutrina, a que acode a gente que se acha pela aldeia, e se lhes ensina a doutrina com a outra parte do Diálogo, que contém a declaração dos sacramentos. Finalmente à boca da noite saem os meninos em procissão, da porta da Igreja até à cruz, cantando algumas orações e encomendando as almas do fogo do purgatório.
Administração dos sacramentos — eucaristia — disciplina das endoenças
[editar]Além deste trabalho e ocupação de cada dia, têm os padres outras, a seus tempos, de não menos importância, como são: batizar as crianças, catequizar os adultos para batismo, e instruí-los para receberem o sacramento do matrimônio; procurar sua liberdade; curá-los em suas doenças; administrar-lhes o sacramento da Santa Unção, enterrar os defuntos com tumba e a modo cristãos.
E sobretudo o que dá maior matéria de admiração e amor de Deus escolhem os padres alguns de melhor vida e mais capacidade, e com práticas espirituais, pouco a pouco os vão dispondo para receberem dignamente o santíssimo sacramento da Eucaristia, assim homens como mulheres, o que eles além da obrigação da Páscoa, continuam algumas festas do ano, quando o confessor julga que convém.
À véspera do dia em que hão de comungar, está a aldeia mui quieta, tratando cada um consigo de se aparelhar para a confissão. E no dia recebem o Senhor devotamente, e o restante dele gastam em virem visitar a Igreja muitas vezes, rezando de joelhos um pouco, e outro pouco assentados, sem tratarem aquele dia de outro negócio algum.
São mui devotos da paixão de Cristo Nosso Senhor, em memória da qual não perdem disciplina, que todas as sextas-feiras da quaresma tomam. Na Igreja, depois da prática que a este fim lhes faz o padre, e principalmente na procissão das endoenças, se disciplinam cruamente, com muita edificação dos portugueses. E até as crianças seus filhos, com os rostinhos cobertos, vão arremedando os pais.
Tão poderosa é a graça de Deus, e tão eficaz sua palavra, que faz de bárbaros devotos cristãos, e de pedras filhos de Abraão, e dá a seus servos paciência e perseverança, para continuarem com alegria estes trabalhos, e deles tira o fruto tão suave.
Suavíssimo fruto é a glória de Deus, que sempre daqui se colhe o merecimento dos obreiros desta vinha, a salvação de muitas almas que não tinham outro remédio, o proveito temporal dos portugueses, a mudança dos costumes desta gente bárbara.
Têm neles os portugueses fiéis e esforçados companheiros na guerra, cuja flecha muitas vezes experimentaram os estrangeiros, que cometeram de entrar com mão armada algumas vilas deste Estado, e confessaram que mais temiam a flecha destes que o nosso arcabuz. Também têm neles um grande freio contra os negros de Guiné, de cuja multidão é para temer não ponham alguma hora em aperto algumas Capitanias da costa do Brasil. Servem mais aos moradores em suas fazendas; e para isso se põem com eles por soldada, por certos meses, por seu estipêndio, conforme ao regimento de S. M.
Vestido de que usam
[editar]Vivem os índios por sua lavoura de mantimentos que plantam e semeiam, de caça, de pescaria e criações.
As mulheres, quando hão de ir à Igreja, ou hão de aparecer diante de gente, vestem-se mui decentemente, convém a saber, com uma camisa ou hábito muito bem feito, cerrado, largo e comprido até o chão; os cabelos que são compridos enastrados com suas fitas, e nas mãos suas contas de rezar. Os homens andam com o vestido que podem, mas na Igreja e pelas festas muitos deles se tratam à portuguesa, como soldados bem pagos, seus chapéus forrados de seda, sapatos, meias e mangas de cores, e vestidos de pano do Reino, que ganham por sua soldada.
Esta é a vida dos índios do Brasil, depois de alumiados com a luz do Evangelho e cultivados com os contínuos trabalhos dos padres da Companhia. Este é o fruto que destes trabalhos se recolhe nos celeiros da Igreja, de mais de cinqüenta anos a esta parte.
E assim parece que basta o dito nesta relação, porque tão impertinente trabalho seria querer escrever a cegueira e bárbaros costumes, em que eles e seus maiores tantos mil anos continuaram, quão escusado seria trazermos nós à memória a idolatria e outros desatinos, em que nossos antepassados na Europa viveram tantas centenas de anos, antes que a verdadeira luz do céu lhes amanhecesse.