Vida do Padre José de Anchieta/III/I

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Mais de quarenta pessoas de crédito e virtude, juraram em seus testemunhos autênticos, que fora o Padre José um religioso de santa vida e obras, e muitas delas afirmam, que dizia muitas coisas que sucediam em distância de muitas léguas do lugar em que ele estava, e depois se achavam serem certas e verdadeiras.

E que outras dizia que estavam por vir, nas quais também não havia falta, e finalmente referem alguns casos, que mostram comunicar Deus a seu servo, o que passava no pensamento e consciência das pessoas com quem tratava, como tudo se verá pelos exemplos seguintes, postos por esta ordem:

MONOEL DA GAIA. – PROFECIA

Manoel da Gaia morador na Capitania do Espírito Santo, fez uma viagem para o Reino, e andou alguns anos ausente de sua casa, pelo que estava sai mulher muito triste; e vendo-a assim, sua mãe aconselhou que se fosse confessar com o Padre José, e que atentasse bem que palavras lhe dizia. Fê-lo assim, e depois da confissão lhe perguntou o padre se tinha novas de seu marido; respondeu que as não tinha boas, por que lhe diziam que fora roubado de corsários e era morto.

Disse-lhe então o padre que se não agastasse, porque era vivo e, posto que fora tomado e levado à Rochela, depois fora ter à casa de um irmão, aonde estivera doente; disse mais que não havia de vir em direitura àquela Capitania, mas primeiro havia de vir por outras partes, e ainda que viesse roubado, não deixaria de trazer algum remédio.

O que tudo ela jurou em seu testemunho, e que assim acontecera como o padre dissera; e acrescentou que fazendo seu marido outra viagem para Angola e, tornando à Capitania dos Ilhéus, se perdeu e correu fama que o gentio alevantado o comera. Mas o padre a consolou, afirmando-lhe que era vivo, e que dia de Ano Bom, depois de jantar lhe entraria pela porta, como na verdade entrou no mesmo tempo.

Antônio Jorge — profecia[editar]

Muito semelhante a este foi o caso seguinte: Antônio Jorge, morador na mesma Capitania, foi com o Capitão Miguel de Azevedo à guerra dos Guaitacases, gentio bárbaro e cruel; e por não haver novas do sucesso, estava a mulher muito triste. Foi a visitar o Padre José, que era superior da casa, e achando-a desconsolada, lhe disse que não estivesse triste, porque cedo viriam as novas do que na guerra se passava, ainda que seu marido Antônio Jorge havia de vir ferido de uma flechada no peito esquerdo, mas que nã era perigosa, por ser entre a pele e a carne.

Disse mais que, por causa da ferida, era já partido, e que dali a oito dias o fossem buscar à Vila Velha; foi a mulher ao dia sinalado, e achou o marido na dita vila; tudo isto sucedeu sem ser ainda chegada pessoa alguma da guerra. Queixava-se uma mulher, na Capitania de São Vicente, diante do Padre José, que seu marido tardava muito, que era ido à terra dos índios contrários, dali a mais de cem léguas, e não havia novas dele. Respondeu o padre: — “Ainda não sabeis que é morto?”

Depois se achou ser assim.

Profetiza duas vitórias[editar]

No tempo que o gentio tamoio molestava com a guerra a Capitania de São Vicente, sucedeu profetizar Padre José duas vitórias:

A primeira: sendo Capitão Jorge Ferreira, foram os portugueses fazer guerra aos contrários, dali a vinte léguas, e antes de haver nova alguma do sucesso dela, disse o Padre José na Vila de Santos, que naquele dia renderam os nossos a aldeia dos inimigos, sem morrer homem da nossa parte, e que ao outro dia teriam recado na vila, antes da noite, o que tudo assim passou como o padre tinha dito.

A Segunda vitória: sendo Capitão Jerônimo Leitão, foi com muita gente fazer guerra ao mesmo gentio, dali a setenta léguas, e andando lá perto de dois meses, não havia recado deles; mas o Padre José, pregando na Vila de Santos, esteve por um espaço sem falar, cobrindo os olhos com a mão, e tornando em si disse: rezemos todos, um Pater Noster e uma Ave Maria, pela vitória que Nosso Senhor no dia de hoje deus aos nossos, contra os tamoios nossos inimigos; e depois de virem da guerra, se achou que naquele dia em que o Padre José mandara dar ao povo graça a Deus pela vitória, esse mesmo dia houveram a vitória.

Do Padre Adão Gonçalves, e do irmão Bartolomeu Gonçalves — Também soube da morte deste irmão, no mesmo dia sucedeu[editar]

Entraram na Companhia dois homens, pai e filho, e dali a anos, na era de mil quinhentos e setenta e seis, o pai chamado o Padre Adão Gonçalves, veio a ser Superior na casa de São Paulo, e o filho por nome Bartolomeu Gonçalves, estava no Colégio da Bahia.

Sucedeu que estando o Padre Adão, em oração em uma varanda, com os olhos no céu, de madrugada, viu passar pelo ar um tropel de gente, mas não divisou que gente era, somente ouviu uma voz clara que lhe disse: “pai, pai, eu sou, rogai por mim a Deus”. Pareceu-lhe que era a voz do filho, e ficou espantado, e muito triste.

Sendo manhã clara viu consigo na mesma casa ao Padre José, que vivia na casa de São Vicente, muitas léguas da casa de São Paulo, que parece o não levou lá Deus, mais que para consolar ao velho, o qual sem mais outra palavra lhe perguntou:

— “Padre, como está Bartolomeu”?

O Padre José lhe respondeu:

— “Já está bem, não tem V. R. para que se entristecer”.

E mudando logo a prática não falaram mais nisso. Dali a mais de um ano, aconteceu acharem-se ambos estes padres no Colégio do Rio de Janeiro, e indo um navio desta Bahia, levou novas da morte do Irmão Bartolomeu Gonçalves. O que sabendo o Padre Adão pediu ao Padre José dissesse algumas missas pela alma do defunto, mais das que ordinariamente costumamos dizer pelos nossos que falecem. Respondeu o Padre José:

— “Já lhe disse cinco quando logo morreu, bastam-lhe, não há mister mais”.

Sendo assim que não podia saber humanamente da tal morte, logo quando faleceu, porque entre a Bahia e São Paulo há mais de duzentas léguas. Isto contou o Padre Adão Gonçalves no Rio de Janeiro, a um padre que o testemunhou com juramento.

Que um irmão havia de adoecer[editar]

O padre reitor do Colégio do Rio de Janeiro, enviou um irmão a negócios fora da cidade, e deu-lhe por companheiro ao irmão Francisco de Lemos; passado ambos por uma aldeia, onde estava o Padre José, disse ao irmão que ia negociar deixasse ficar ali aquele irmão, e ele fosse ao Colégio buscar outro, porque lhe bastava a ele seus trabalhos.

Assim o fez; dali a dois ou três dias, adoeceu este irmão tão gravemente que chegou quase ao ponto da morte, donde se conclui que o Padre José anteviu a doença, que a um havia de sobrevir, e o trabalho do outro se o levava consigo, e tudo atalhou, como se achará no testemunho do Padre Estevão da Grã.