Vida do Padre José de Anchieta/III/II

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Darei princípio, a este capítulo por uma coisa bem pequena para que se veja que nem estas se escondiam ao espírito do Padre José.

Antônio de Sousa, morador no Rio de Janeiro, caminhando um dia a pé com o Padre José e outros homens, queixou-se no cabo da jornada que perdera uma faca de preço, e que havia de tornar a buscar. Respondeu-lhe então o padre:

— “Ora já que a quereis ir buscar, a achareis em tal parte”.

Foi e deu com ela no mesmo lugar, que o padre dissera; e vindo depois ao Rio de Janeiro, contava este caso com grande admiração, dizendo que era santo e que Deus lh’o revelava, porque caminhando sempre naquela jornada diante de todos, não podia humanamente saber aonde caíra a faca, ao homem que vinha de trás.

Que era morta uma mulher em Lisboa — profecia[editar]

Estava um irmão nosso neste Colégio da Bahia, em sua câmara, escrevendo a uma irmã sua que tinha em Lisboa. Entrou o Padre José e disse-lhe: — “Que estais ai agora gastando o tempo em balde”?

— “Escrevendo a minha irmã, disse o irmão.

O padre sorrindo-se disse:

— “Ide-me vós dar de comer, a mim, e a vossa irmã mandai-lhe cartas ao céu”. Daí a algum tempo soube o irmão por outra via, ser morta sua irmã, e que morrera no mesmo tempo em que o padre lh’o dissera. Pediu então ao padre dissesse algumas missas pela alma da defunta. Respondeu o padre: — “Já lh’as disse logo quando Deus a levou”.

Há da Bahia a Lisboa, mais de mil léguas, mas a distância das terras não impede os favores do céu.

Profecia[editar]

Na Vila de Santos, dava uma mulher honrada quatro caixas de marmelada, ao Padre José, para dar a um filho seu que tinha no Rio de Janeiro, para onde o padre então partia em uma canoa. O padre lhe disse que escusasse isso, porque seu filho havia de vir ao dia seguinte jantar com ela em sua casa, e que não tomasse trabalho de lh’as mandar; insistiu ela e o padre lh’as tomou, por lhe fazer a vontade, dizendo:

— “Manoel de Oliveira, mas dará, para ajuda da minha matalotagem, hoje às horas da ceia”.

O que tudo assim sucedeu, dando todos o que o souberam muitas graças a Nosso Senhor, e tenho a seu servo em maior estima.

Estando os moradores do Rio de Janeiro, ainda com poucas forças para poderem resistir aos inimigos, mandaram pedir socorro à Capitania de São Vicente contra duas naus francesas que estavam na barra.

Fez-se a gente prestes para o socorro. O Padre José lhes disse que fossem, embora, mas que não tinham lá que fazer, porque naquele mesmo dia eram as naus partidas da barra, o que assim se achou ser verdade, com haver do Rio de Janeiro a são Vicente quarenta léguas.

Que as árvores haviam de cair sobre uma choupana[editar]

Partiram uma vez da casa de São Vicente para São Paulo, o Padre José e o Padre Vicente Rodrigues, e no meio da serra se aposentaram em uma choupana. E na mesma noite uns homens que vinham de São Paulo pela serra abaixo se agasalharam em outra, meia légua antes de chegarem donde os padres estavam.

Nisto lhes manda o Padre José recado por um índio, que se viessem logo para onde ele estava, e não dormissem ali, porque aquela noite haviam de cair as árvores sobre a choupana, e não os tomassem debaixo. Vieram logo, pelo crédito que lhe tinham, e antes que entrassem na choupana do padre, lhes disse que se confessassem todos com o padre seu companheiro. E fazendo assim todos, disse a um que se tornasse a confessar, como fez. E acrescentou, como por graça: “não entreis vós outros cá com essa mofina que trazeis, não nos abranja também a nós”.

Aquela noite fez grande tormenta e, vinda a manhã, os padres continuando seu caminho, foram dar na choupana daqueles homens, que acharam feita em pedaços, com as grandes árvores que lhe caíram em cima; e deram graças a Deus pelo modo com que livrou aqueles homens da morte.l

Este caso contou o Padre Vicente Rodrigues ao Padre Pero Leitão, que assim o depôs em seu testemunho.

Outra: que a justiça vinha a prender um homem[editar]

Na Capitania do Espírito Santo, estava um homem homiziado em sua fazenda, com sua família, fora da vila, e o Padre José em uma aldeia, obra de meia légua dele.

Nisto manda o padre um recado à mulher do homiziado, à meia noite, que avisasse ao marido se pusesse em cobro, e ela que se fosse logo para a vila, porque a Justiça lh’o ia prender; fizeram-no ambos conforme ao aviso do padre, e ela no caminho achou a Justiça que lhó ia prender. E da vila à aldeia onde o padre estava havia algumas léguas.

outra: que não morreira um índio[editar]

Em uma aldeia da Capitania do Espírito Santo, três ou quatro léguas da vila, estava um índio muito doente havia dias, nem tinha mais que os ossos, ungido já, e chorado pela aldeia, sem nenhum sinal de vida mais que alguma quentura; deu o padre conta do caso ao Padre José que estava na casa da vila, e respondeu:

“Eu o encomendarei a Deus; José não morrerá desta”.

E assim foi que viveu depois muitos anos.

Outra: que era morto outro índio[editar]

Na Capitania de São Vicente, querendo o padre dizer missa, rogou a um homem por nome Pedro Fernandes, lhe ajudasse, e estando com o amito, e vestindo a alva, disse o Pedro Fernandes ao padre que um índio doente se queria confessar a ele. Tirou logo a alva e o amito, e o foi confessar; e tornou a dizer missa, pelo mesmo doente; e estando no meio da missa: — “já lá vaia, já faleceu o índio”. E assim era.

Outra[editar]

A primeira ida que El-Rei Dom Sebastião, que Santa Glória haja, fez à África, se soube na Capitania de São Vicente pelo Padre José; e daí a um mês chegou um navio do Reino que deu as mesmas novas.

Estando já o Padre José muito mal na casa do Espírito Santo, acertou de ver um espelho na câmara, que tinha ali o Padre Jerônimo Rodrigues para pôr sobre uma imagem; e era seu enfermeiro. Tomou o padre o espelho na mão e falando consigo disse:

Vi-me agora um espelho
E comecei de dizer
Crocós, toma bom conselho
E faze bom aparelho
Porque cedo hás de morrer.
Mas, com juntamente ver
O beiço um pouco vermelho,
Disse: fraco estás e velho,
Mas pode ser que Deus quer
Que vivas, para conselho.

E assim aconteceu, porque não tardou muito que fosse do Colégio do Rio de Janeiro ordem ao padre superior da casa do Espírito Santo, que não fizesse nada sem o consentimento do Padre José.

Vendo andar um irmão, tão fraco que se não podia Ter, lhe disse: — “Essa fraqueza é de fome, porém vós não comais, porque ainda agora começais”. Profetizando-lhe grave doença, que logo lhe veio.