Vida do Padre José de Anchieta/II/VI
Bem entendeu o servo de Deus quando se viu nestas partes do Brasil, que o Senhor o chamava principalmente para a conversão deste gentio. E como para tal empresa, procurou, com a divina graça aparelhar-se com os meios para ela necessários, que são grande cabedal de virtudes, assim das que foram um verdadeiro religioso, como das que lhe dão destreza para jogar das armas espirituais, e exercitar este santo zelo.
Empregou-se logo em aprender a língua da terra, e compor a arte dela. E com este zelo e caridade do próximo, concorria muitas vezes Deus com favores extraordinários, como por muitos exemplos se tem visto nesta história, e ao diante se verá, mais em particular.
Daqui veio que quando se soube nesta Bahia do falecimento do Padre José, em umas conferências que de sua exemplar vida se tiveram, o Padre Quirício Caxa, pessoa de muita virtude e letras disse que, de todas as virtudes do Padre José, esta o edificara e espantara muito: enterrar e meter debaixo do pé sua muita habilidade, e outras grandes partes, só por ajudar a salvar o gentio do Brasil.
Contra os que iam saltear gentios
[editar]Procurava muito a liberdade dos índios, e estorvava quanto em si era, o irem a suas terras salteá-los e cativá-los, não por justa guerra, mas por força ou engano e manifestas injustiças, com título de ir resgatar.
E vendo uma vez, que na vila de Santos se apresentavam dois navios, para irem a este roubo, do púlpito e em particular, trabalhou com as com as justiças da terra e senhorios dos navios, por estorvar a viagem, ameaçando-os com graves castigos de Deus se lá iam. Contudo foram, porque não há soltas nem freio, que tenham mão na cega e brutal cobiça.
Sucedeu que o capitão de um destes navios sonhou uma noite indo pelo mar, que caía de uma rocha abaixo, e que o Padre José o tomava pelo cabeção e livrara do perigo, repreendendo-o da má jornada que cometera; e acordando pela manhã mandou arribar, e se recolheu ao porto donde saíra. O outro navio chegou aonde ia e se perdeu, e os índios carijós que eles iam saltear os mataram a todos, tirando dois que escaparam mal feridos, para darem estas novas.
Um gentio de cem anos
[editar]Antes de ser sacerdote, o Padre José acompanhou a um padre em uma missão, e servia de intérprete; um dia, depois de cansados do trabalho, saíram à praia a tomar algum refresco da viração. Senão quando acham um índio velho que representava mais de cem anos; começou o irmão a travar prática com ele das coisas de Deus, das quais nenhuma notícia tinha, mas recebeu com elas muita consolação, mandou chamar a seus filhos e netos para ouvirem aquelas coisas, e o ajudarem a aprendê-las.
Não dormia de noite o bom velho, com o cuidado e gosto do que tinha ouvido; finalmente no cabo de alguns dias, foi bem catequizado e batizado na Igreja, de que se não queria ir para sua casa, mas logo direto ao céu, mas pouco lhe dilatou Deus Nosso Senhor sua petição, levando-o para si ele desejava.
Praia de Itanhaém
[editar]As Ilha de São Vicente para o sul corre uma mui formosa praia, muito dura e esparcelada, povoada comumente de grandes ossos e corpos de baleias, as quais, confiadas na água alta em tempo de maré cheia de águas vivas, quando se não precatam, fugindo-lhes com a vasante o mar, sem o sentirem, acham-se em seco, sem remédio. Da banda da terra correm algumas ribeiras, junto das quais vivem moradores com suas famílias e índios de serviço; chamam-se pela língua da terra a praia de Itanhaém, ou de Nossa Senhora da Conceição, que é a invocação da Igreja que ali têm, até a qual fazem oito léguas de praia.
A esta chamava o Padre José o seu Peru, pelas muitas almas que por ali achava de portugueses e índios, muito necessitadas de socorro espiritual a que dava remédio, e as estimava em mais que barras de ouro nem pedras preciosas; e hoje em dia os padres da casa de Santos, continuam esta empresa com muito proveito espiritual das almas. De quantas pessoas o Padre José por esta praia ajudou a salvar, administrando-lhes os sacramentos, não temos mais notícias que esta em geral, de fazer nela por muitos anos muito serviço a Nosso Senhor.
ìndio velho, Adão
[editar]Um só caso acho, nos testemunhos autênticos, não menos devoto que digno de admiração, no qual se vê por quão extraordinário modo executou Deus em uma alma, o efeito de sua predestinação. O mesmo Padre José o contou ao Padre Pero Leitão e foi desta maneira: indo o padre uma vez por esta praia, se desviou do caminho, sem ocasião alguma, mas como levado por outrem, se meteu um pouco pelo mato. Encontrou um índio velho, assentado ao pé de uma árvore, o qual primeiro armou a prática, dizendo: Acaba já de vir, padre que muito tempo há que aqui te estou aguardando. Perguntando-lhe o padre pelo nome, terra e aldeia. Respondeu que sua aldeia estava sobre o mar, e outras coisas das quais claramente entendeu que aquele índio não era natural de São Vicente, nem de toda a costa do Brasil, mas que viera ali ter , trazido por braço mais que humano, da parte do Oeste, da contracosta da Província do Brasil.
Perguntou-lhe mais a que viera, e que era o que ele queria, pois o estava ali aguardando; respondeu que a vinha ouvir a vida boa. Examinou o padre miudamente sua vida e achou que não tivera muitas mulheres, que nunca fizera guerra senão para se defender, pelas quais coisas e outras semelhantes, julgou que nunca pecara mortalmente contra a lei natural, e que tinha muito conhecimento natural das coisas e do autor da natureza.
Quando o padre lhe ia declarando os principais mistérios de nossa fé, respondia: assim entendia no meu coração, mas não no sabia declarar. Finalmente o padre o instruiu bastante, e batizou com água de chuva, que se conservava nas folhas dos cardos montezinhos, e lhe pôs o nome de Adão, que tanto que se viu regenerado em Jesus Cristo, pelo santo batismo, com as mãos postas e os olhos no céu, deu muitas graças a Deus, com semblante mui alegre. Agradeceu também ao padre a caridade que lhe fizera, e como quem não esperava mais que esta ditosa hora, nem tinha mais que negociar na vida, deu sua bendita alma a Deus nas mãos do mesmo padre, e se foi para o céu, cujo corpo enterrou o padre, cobrindo-o com areia. Caso por certo raro e digno de admiração, e matéria para dar muitos louvores ao Criador e Redentor dos homens.