Vida do Padre José de Anchieta/II/VII

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Profecias[editar]

Antes que saiamos desta praia, apontarei dois casos, um que sucedeu ao Padre José, posto que pertencia mais ao espírito da profecia, o segundo a outros dois padres, e foi uma horrenda visão mui celebrada por toda a costa do Brasil e ainda em Portugal.

Quanto ao primeiro: Estevão Ribeiro, morador na vila de São Paulo, vindo um dia pelo campo comigo e com o Padre Manuel de Oliveira, superior que então era das casas de São Vicente e agora reitor deste Colégio da Bahia, nos contou com muita devoção como, sendo ele moço, e acompanhando o Padre José pela praia, lhe perguntou se levava no seu cofo ou cestinho alguma coisa para comer.

E respondendo ele que não, lhe disse o padre: “pois Estevão, eu vos direi agora o que há de ser; primeiro havemos de encontrar neste caminho com um peixe que não presta para comer, e depois havemos de encontrar com outro pequeno que nos servirá, que vós metereis nesse cofo, e daí a outro pedaço, dentro no mesmo cestinho o haveis de cozer para comermos” .

Tudo assim sucedeu, porque primeiro havemos de encontrar com um baleato, e depois com uma tainha que na baixa mar estava saltando em seco, que o menino meteu no cesto, e indo mais adiante acharam uma índia velha, que estava com um tacho ao fogo, cozinhando água do mar, para a tornar em sal, diminuindo-a até certa quantidade; meteu Estevão o cesto no tacho, e ali o cozinhou. O padre falou com índia coisas de sua salvação, e continuou sua jornada.

Visão horrenda de danados[editar]

O segundo caso me contou na casa de São Paulo, diante dos padres e irmãos dela, o Padre Manuel Viegas, que foi um dos que viram aquela visão. A coisa passou-se desta maneira: no ano de mil quinhentos e setenta e seis, indo uma noite por esta praia o Padre José Morinelo, e o Padre Manuel Viegas, viram ao longe, como em distância de três ou quatro léguas, pela praia adiante, um fogo grande, e, afastado dele, outros menores, cuja vista os atemorizou grandemente.

E falando entre si daquela visão, ela se lhe apagou e desapareceu da vista, senão quando de repente a tornam a ver pelo mesmo modo, mas tão perto de si, que claramente a enxergavam ser como um corpo humano que botava grandes chamas de fogo da cabeça, como se cada cabelo fora uma grande tocha, e a luz de cada uma de diversa cor. E posto que esta vista era mui horrenda, muito mais o era quando abria as costas, e pela abertura lançava maior labareda do que a que sai pela boca de uma fornalha de engenho; e isto com tanta claridade, que os padres distintamente enxergavam os ossos e as entranhas do que quer que era, que tal fogo lançava de si.

Da mesma maneira eram, ainda que menores, os fogos que as outras dez ou doze figuras humanas lançavam de si, que eram de menor estatura, que representavam moços de doze até quinze anos. Estes iam em contínuo baile, ora todos diante, ora ao redor do grande amo, que lhes fazia festa.

E esta visão os padres por espaço de três horas ou mais, por muitas vezes, indo sempre caminhando, ora mais perto ora mais longe.

O Padre Manuel Viegas quando estas figuras se chegavam a ele, escondia o rosto detrás das costas do outro padre, o qual foi sempre atento, e dizia depois que os ouvia falar pela língua da terra, mas que os não entendia. Este padre italiano ficou depois tão assombrado, que, quando daí a muitos anos, lhe perguntavam por este caso, a resposta era dar logo em tremer e perder as cores, como homem pasmado; e isto lhe durou toda a vida.

Sabendo-se o caso, houve no povo diversos pareceres, entre os quais uns diziam que eram certas pessoas, que haviam pouco tempo que morreram ali em mau estado. O certo é que semelhantes figuras são mostra das penas do inferno, as quais Deus Nosso Senhor algumas vezes permite que nos apareçam, para que quem as ouvir contar ou vir pintadas, como esta foi a Portugal, cobre temor de sua divina justiça, para emenda de sua vida.