Vida e Feitos D' El-Rey Dom João Segundo/CCXI

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Esteve el-rey assi a sesta-feira atee a tarde em que logo se achou mal, e foy en todos a mayor tristeza que podia ser, porque o aviam ja por são segundo pola menhaã até depois de comer estivera, e estava ja fora do nojo e receo passado. E assi el-rey ficou muyto triste e muy cortado, e toda aquella noyte deu muytos sospiros com muita paixam porque aquelle dia se dera por são; o qual prazer lhe durou tam pouco. E ao sabado se achou jaa muyto pior e se lhe dobrou o fruxo, com que lhe vieram desmayos e mortaes acidentes, pollos quaes el-rey conheceo sua morte. E como principe prudente e muito devoto e bom christão pelos fisicos e pessoas principaes que com elle eram, o quis saber e ser da verdade desenganado. E os chamou todos juntos e com muyta segurança e esforço lhe disse os sinaes que em si sentia, por onde lhe parecia que se chegava sua morte. E porque com suas dores e paixões poderia ser maginaçam, queria saber delles a verdade, a qual pela obrigaçam que a Deos e a elle tinham lhe nam encubrissem poys sabiam quanto nisso hia pera sua vida ou salvaçam de sua alma. E eles lhe disseram que praticariam sobre ysso e a reposta trariam a sua alteza. E depois de todos praticarem e terem por muyto certo ha morte d' el-rey, escolheram pera lhe darem o triste e mortal desengano o bispo de Tangere Dom Diogo Ortiz e o prior do Crato Dom Diogo d' Almeida. Que nam lho podendo dizer, com muitas lagrimas e saluços lhe disseram que os fisicos eram ja desesperados de sua saude, e que sua morte se nam escusava se nam fosse por millagre de Deos. E o bispo como grande letrado, e ho prior como esforçado cavalleiro, lhe disseram entam o que pera sua alma e corpo cumpria. E el-rey muito en si e com o rosto muy seguro como muito esforçado e valente principe lhe respondeo: "Essa embaixada que me ambos dais he bem triste e de muyta desconsolaçam pera o corpo, mas com ella dou muitas graças a Deos; e pois elle disso he servido ey que pera salvaçam de minha alma he muy necessaria. E pois me fez tanta merce que me deu conhecimento de minha morte espero na sua misericordia que pelos merecimentos de sua santa morte e payxam e nam polo eu merecer se lembraraa de minha alma.

E logo com muita segurança mandou desarmar a casa e armar nella altar com a cruz e hum retavolo de Nosso Senhor Jesu Christo crucificado, Nossa Senhora, Sam Joam e mandou tirar a arquelha e desfazer a cama alta e fazê-la no sobrado; tudo com tanto tento e sossego como se fora pera partir pera mais perto. E logo com muyta devaçam e lagrimas se confessou e comungou; e aa noyte com Ayres da Silva camareyro-mor fez hũa cedula alem do testamento que nas Alcaçovas fizera, e ficara em poder de Antam de Faria, o qual ahi era ja trazido. E assi com grande cuidado começou de entender nas cousas de descargo de sua alma. E por que em tal tempo o nam emportunassem com desordenados requerimentos, quisera ver pollos livros de seus moradores as pesoas a que tinha mais obrigaçam d' acrecentar, satisfazer e fazer merces, e assi tambem perdoar. E a isto dos livros da cozinha nam deu lugar a brevidade do tempo e os muitos e sobejos requerimentos das pessoas que com elle eram.

E porque o camareiro-mor Ayres da Silva sabia ja certo pola cedula que escrevera como el-rey deyxava ho duque por seu erdeyro e socessor, lhe pedio por merce que com a tal nova o mandasse ao duque por que por ella lhe fizesse honrra e merce, e que tambem elle melhor que outrem requereria as cousas do senhor Dom Jorge seu filho que el-rey na cedula muito encomendava ao duque. E a el-rey aprouve que Ayres da Silva e Dom Alvoro de Crasto veador de sua Fazenda fossem ambos por serem cunhados e muito amigos com a dita nova ao duque. E ao sabado bem noyte el-rey só com Ayres da Silva acabou a dita cedula, e assinou e cerrou Ayres da Silva e pôs o sinete; tambem foy escrita com meus aparos e penas como ho testamento; e beijou a mão a el-rey com muitas lagrimas e logo elle e ho dito Dom Alvoro partiram com ella d' Alvor bem noyte caminho d' Alcacer onde ho duque estava com a raynha.