Vila Rica (Cláudio Manuel da Costa)/VII

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A Madre de Mêmnon dourava a terra,
E já se descobria uma alta Serra
Com três dias de marcha; de Itamonte
O carregado aspecto está defronte.
Não repugna do Herói à nobre entrada,
Mas tem presente ainda a retirada
De Fernando; inda vê de sangue tinto
O campo; e nota o ódio mal extinto
Dos infames rebeldes, conjurados.

Embaraçar pertende os apressados
Passos que vêm trazendo, e quer primeiro
Co'a vista de um obséquio lisonjeiro
Demorar a Garcia: teve o indulto
Este Vassalo de avançar-se oculto
E entrar na povoação, notando o estado
Da levantada gente: era chegado
À margem de um ribeiro; e os olhos tendo
Mal enxutos ainda, se está vendo
Na prisão insensível de um encanto,
Que enfim lhe acaba de pôr termo ao pranto.

Uma voz se lhe finge, que feria
Os ares docemente e assim dizia:
Saudoso Ribeirão, Mancebo infausto,
Seja perdida a pompa, a glória, o fausto,
Em pequena corrente convertido
Vás regando este vale, o teu gemido

Não acuse de Eulina o brando peito;
Talvez Amor tirano a teu respeito
Quis que eu fosse cruel, e involuntário
Seguiu meu pensamento esse contrário
Influxo das Estrelas; eu te amava,
E dentro da minha alma protestava
Não render o troféu desta beleza
Mais que aos suspiros teus, e à chama acesa
De Amor, que nos teus olhos percebia.
Apolo, o ingrato Apolo é quem devia
Ser contigo mais brando e mais propício:
A culpa é só de Aucolo; o sacrifício,
O voto que ele fez ao Deus tirano,
Tudo enfim se ajuntou para o teu dano.

Talvez não conhecia eu, desgraçada,
Que eras tu o que então com mão armada
Me estavas a esperar lá perto à fonte.
Este aleivoso Deus, para que conte
Da minha história a triste desventura,
Depois que presa a minha formosura
Entre a nuvem levara enganadora,
Faltando a toda a fé, me ordena agora
Que eu torne ao pátrio berço, e convertida
Em Ninfa destas águas, passe a vida
Entregue sempre a míseros lamentos.
Oh! e quem crê de um Deus nos juramentos!

Aqui o teu sussurro estou ouvindo,
E nele a tua queixa inda sentindo,
Quando escapada aos amorosos laços
Dizer-te escuto: "Onde a meus ternos braços,
Onde te escondes, onde, amada Eulina,
Quem tanto estrago contra mim fulmina?"


Aqui teu duro mal percebo e noto,
Quando, do agudo ferro o peito roto,
Dás à cega ambição em cópias de ouro
O que roubaste, mísero tesouro
De Itamonte, teu Pai, que não sabia
Que a seus cansados anos deveria
Suceder um tão fúnebre desgosto.

Cheio de mágoas te estou vendo o rosto
Com que acusas o humano atrevimento,
Quando lhe acordas o furor violento
Que faz de Polidoro a desventura,
Oh! ambição! Oh! sede! Oh! fome dura!

Ouve Garcia o canto, e não atina
De onde tanto prodígio, mas de Eulina
A delicada face está patente:
Fita os olhos, e vê desde a corrente
Lançar a mão à praia a Ninfa bela;
Toma uma areia de ouro, e já com ela
Pulveriza os cabelos: neste instante
O sonho de Albuquerque o faz avante
Passar; os braços abre, à Ninfa chama;
Ela o vê, e não teme, e já se inflama
De amor por ele; aos braços o convida,
E abrindo o seio o Rio, uma luzida
Urna de fino mármore os sepulta,
Recebendo-os em si: ficou oculta
A maravilha a quantos o acompanham.
Em busca de Garcia já se entranham
Pelos matos mais densos, mas perdida
A esperança de achá-lo, e recolhida
Volta ao Herói a esquadra aventureira.

De inadvertido brincos ação grosseira
Turbara neste tempo a comitiva;

Querem que entre eles o partido viva
De Europeus e Paulistas, e já passa
A desafio em uns o que foi graça.
Conta-se que por mofa algum dizia
Que seguro em si só não vai Garcia;
Que ao valor europeu em pouco ou nada
Disputar do Paulista pode a espada.
Leva-se Borba do furor ardente,
Empunha o ferro, atreve-se valente
Ao mesmo tempo a rebater Pegado
O colérico ardor; vê-se insultado
No respeito Albuquerque: Olá! dizia,
Os braços suspendei; de rebeldia
É este um sinal claro; não se deve
Tanto despique à ofensa, que é tão
leve. Se ao Paulista de fraco alguém acusa,
Ele de seus espíritos só usa,
Quando a honra do empenho ao campo o chama.
Não é valente, não, o que se inflama
No criminoso ardor de a cada instante
Dar provas de soberbo, e de arrogante.
Os Europeus são fáceis neste arrojo."

Se justo imaginais foi o despojo
Das Minas, que lhes tiram, porque avaros
Se pertendem mostrar (bem que são raros
Os que entre eles se arrastam da cobiça),
Dizei: não pede a próvida Justiça
Que zele cada um, que guarde, e reja
O que adquire o seu braço, quando a inveja
Lho pertende roubar? Estas conquistas,
A quem se deverá mais que aos Paulistas?

Mas eu ponho de parte os argumentos,
Que com substância igual os fundamentos

Fazem desta disputa assaz ligeira;
Seguiremos a máxima grosseira
Dos espíritos vis, que têm formado
Nestas Minas um corpo levantado?
Acaso um mesmo Rei nos não protege?
Uma só Lei a todos nos não rege?
Do tronco português não é que herdamos
O sangue de que as veias animamos?
Não faz comuas um Vassalo as glórias
Do seu Rei? Do seu Reino? Das vitórias
Que um ganha, o outro perde, não alcança
A todos o infortúnio ou a bonança?
Somos nós dessa estirpe, que brotara
Do antigo Cadmo a bárbara seara,
Onde uns irmãos com outros pelejando
O ferro no seu sangue estão banhando?
Árbitro entre vós outros me conheço,
Do Europeu, do Paulista faço apreço,
E distinguindo em todos a virtude
Não espereis que de projeto mude.
Não faz a Pátria o Herói, nascem de Aldeias
Almas insignes, de virtudes cheias;
E nem sempre na Corte nobre e clara
Ingênua série, portentosa e rara
Se vê de corações, que resplandecem
Pela glória somente, e nela crescem

Dizia; e ao mesmo passo de Pereira
Um aviso chegava, de onde inteira
Informação o Herói já recebia
Da sacrílega, ousada rebeldia.
Sabe que ao longe os montes estão cheios
Dos conjurados Chefes; nisto os meios
Consulta de passar; e tem presente
A imagem, que no vidro transparente

Formara o Gênio; de Garcia ousado
Só quisera partir acompanhado;
Por ele chama, e teme, e se entristece
Ao ver que falta, e apenas aparece
Quem dê notícia, ou conte a sua ausência.

Teme que surprendido na violência
Ficasse dos Rebeldes; resolvido
Já tem partir sem ele; do vestido
Que traja, militar, e rica banda
Se despe; humilde capa aos ombros manda,
E por tudo disfarça o alto respeito,
Que inculca o aspecto: a todos no conceito
Segura desta empresa, e lhes ordena
Que em marcha vagarosa, entre a serena
Sombra da noite ao longe o vão seguindo;
Parte, e encostado à Serra vai subindo
Uma colina, que lhe põe defronte
O pico, o grande pico de Itamonte.

Chegava o dia ao termo derradeiro,
E ao vale vem descendo desde o outeiro
A sombra carregada; humilde tenda
Aqui recolhe o Herói; como pertenda
O Interesse adiantar o seu partido,
Bem que o Gênio a seu ímpeto escondido
Tinha as idéias com que o Herói salvava,
Na mesma tenda a um tempo abrigo dava
O indigno Monstro aos Chefes levantados.

Todos em um congresso declarados
Entre si praticando estão na vinda
De Albuquerque, nem crêem que esteja ainda
Tão próximo a chegar; longe o figuram,
E muitas vezes protestando juram

De obrigá-lo a voltar; a morte certa
Prometem, se o resiste; descoberta
A Albuquerque se faz por este modo
A torpe idéia do desígnio todo.

Recolhem-se a dormir, e se recolhe
Albuquerque também, que não lhe tolhe
A constância o temor; cauto pertende
Aos Pereiras juntar-se, e mais se acende
No desejo de ver ao bom Garcia,
Que aos três irmãos já crê que passaria.

Cheio destes cuidados entregava
Ao leito os lassos membros, e pensava
Em vencer da alta noite por diante
O caminho. Eis o Gênio vigilante,
Que o perigo iminente está prevendo,
Com seus influxos sobre o Herói descendo,
Da mão o prende e o guia a um sítio aonde
O escuro Caeté de acordo esconde
Um magnífico Paço, em que destina
Que tenha o Herói habitação mais digna.
Aqui dos três Pereiras o esperava
O nobre ajuntamento, e protestava,
Cada um em seu nome, que faria
Cair por terra a infame rebeldia;
Que de amigos, patrícios e parentes
Tinha a seu mando prontas e obedientes
Muitas esquadras, que traria ao lado.
Tudo agradece o Herói; mas tem pensado
Mover por arte e por indústria os Povos.

Estamos, disse, em uns países novos,
Onde a polícia não tem inda entrado;
Pode o rigor deixar desconcertado

O bom prelúdio desta grande empresa.
Convém que antes que os meios da aspereza
Se tente todo o esforço da brandura.
Não é destro cultor o que procura
Decepar aquela árvore que pode
Sanar, cortando um ramo, se lhe acode
Com sábia mão a reparar o dano.
Para se radicar do Soberano
O conceito, que pede a autoridade,
Necessária se faz uma igualdade
De razão e discurso; quem duvida
Que de um cego furor corre impelida
A fanática idéia desta gente?
Que a todos falta um Condutor prudente
Que os dirija ao acerto? Quem ignora
Que um monstruoso corpo se devora
A si mesmo, e converte em seu estrago
O que pensa, e medita? Ao brando afago
Talvez venha a ceder; e quando abuse
Da brandura, e obstinado se recuse
A render ao meu Rei toda a obediência,
Então porei em prática a violência;
Farei que as armas e o valor contestem
O bárbaro atentado; e que detestem
A preço de seu sangue a torpe idéia.
Disse; e deixando a todos a alma cheia
De uma nobre esperança, já passava
A saber de Garcia; nem lhe dava
Notícia dele algum dos três Pereiras.
A um fundo Rio estavam sobranceiras
Espessas matas de árvores copadas;
De seus ramos, quais) á foram mostradas
Ao Troiano, que tenta o Reino escuro,
Em vãs imagens pende o sonho; um duro

Tronco escolhera o Gênio; ali fizera
Em uma e outra fúnebre quimera
Respirar o terror, forjar-se o susto.
Dali manda se espalhe a todo o custo
Uma e outra ilusão; partem voando
As fantásticas sombras; vão pintando
Grilhões, cadeias, cárceres, suplícios,
Degoladas cabeças, artifícios
Nunca inventados de instrumentos vários
Que estão ameaçando aos temerários,
E rebeldes Vassalos a ruína:
Confundem-se os infames, e destina
Cada um desde já buscar o meio
De pôr de parte o crime enorme e feio,
E acreditar aos pés do Herói que chega
A fé, com que ao seu Rei se rende e entrega.