40 anos no interior do Brasil/Quadros de uma revolução
“Levem esse cachorro pras estacas!”.
Mãos ágeis agarraram o infeliz espião federalista[1]. que havia se infiltrado sorrateiramente no terreno inimigo. Quatro estacas foram postas no chão, ao sol escaldante, o prisioneiro foi amarrado com tiras de couro cru nos pulsos e tornozelos e ficou com os braços e as pernas estendidos, tanto que seu corpo ficou suspenso alguns centímetros do chão, fazendo com que sua cabeça logo caísse pra trás, enquanto as correias cortavam a pele, sem piedade.
“Quanto tempo esse cara deve ficar pendurado?”
“Deixe-o aí até amanhã cedo, então espero que já esteja morto!”.
As estacas foram a pior tortura empregada nas fronteiras castelhanas durante as guerras revolucionárias e foram adotadas pelos brasileiros.
Anoiteceu. A sentinela andava para lá e para cá e o prisioneiro gemia. Por fim o posto se tornou monótono. Ele verificou novamente as amarras, e como tudo estava em ordem foi para sua tenda. Por que deveria ficar vigiando, se aquele homem não poderia fugir. O vento noturno passava pelo infeliz, as estrelas estavam brilhando como se não soubessem nada a respeito da fera mais cruel, o homem. O prisioneiro perdeu a consciência. E quando acordou depois de algum tempo, se deu conta da horrível situação em que se encontrava. Então agitou violentamente seu corpo jovem e — graças a Deus! — conseguiu puxar seu braço mais para perto, a estaca inclinou-se, pois não estava suficientemente enterrada. Mais um solavanco e ele caiu! Com um ímpeto selvagem o corpo do infeliz se virou de forma que ficou pendurado com as duas mãos na outra estaca, puxando-a com toda a força, esta também cedeu. Então ele se inclinou até as estacas dos pés, soltou-as também, ficando, desta forma, livre. Seu batimento acelerado voltava ao normal pouco a pouco. E se arrastando consigo as estacas, ele deslizou como uma cobra até se aproximar do leito do riacho. Nisso feriu sua mão em algo cortante, e apalpando, sentiu que era uma garrafa quebrada, então com a ajuda dela cortou as cordas e pode se livrar das estacas. Contudo o perigo ainda não havia terminado, pois o campo parecia sem fim, sem que a sombra de floresta houvesse oferecido cobertura. O prisioneiro ordenou seus pensamentos sobre que direção a tomar, e primeiro arrastando-se, depois em pé, afastou-se mais e mais do local de seu sofrimento. Mas quando amanheceu ele ainda não estava longe o suficiente. Sua respiração estava ofegante. O campo se estendia infinitamente, nada mais além de coxilhas, uniformemente cobertas com o capim seco do outono. Em parte alguma um lugar para se esconder, somente no horizonte a faixa esverdeada de uma floresta. Era lá que o infeliz desejava chegar. Quando ele chegava no topo de uma coxilha se arrastava de quatro e espiava para trás; e para descer andava agachado como um cão e ia devagar coxilha acima, apoiando as mãos inchadas nos joelhos para ajudar os pés cansados. Novamente subiu uma coxilha e o olhar se prendeu interrogativo para trás, mas imediatamente se fechou amedrontado e o corpo se estendeu no chão entre o capim alto; pois lá no horizonte o olhar fixo viu dois pontos se movendo, que ele acreditou serem cavaleiros. Procurou com a mão um pedaço de vidro da garrafa quebrada que ele tinha enfiado no bolso. Com a ajuda dele poderia cortar os pulsos e então deixar seu sangue correr tranquilamente, isso seria bem melhor do que cair nas mãos dos seus inimigos novamente. Mas eles o descobrirão? Um pequeno fio de esperança o invadiu. Está de quatro em cima da coxilha, então desce saltando e rolando e de novo lentamente coxilha acima e então mais uma olhada para trás. Um som estridente. Os cavaleiros estavam mais perto. Ele continuava subindo e descendo as coxilhas! E o sol castigando. O infeliz ainda fez isso mais três vezes — até que eles o avistaram. Uma alegria selvagem e a caçada começa. À rédea solta o laço é atirado, mecanicamente se arruma a corda na mão esquerda, enquanto a direita só segura a laçada, ou armada, e duas pequenas argolas no pulso. A armada é tão grande que ela arrastaria no chão se estivesse parada, mas o ritmo do galope do cavalo e o rápido girar do pulso com o braço para cima formam um movimento circular sobre a cabeça do cavaleiro. Os cavalos bafejando cada vez mais perto da vítima. Estes animais de luta estão acostumados a caçar, quando os cavaleiros precisavam perseguir o gado fugitivo, e davam o seu melhor quando o laço girava sobre suas cabeças. O desgraçado corria segurando ainda o pedaço de vidro com o qual pretendia cortar o pulso. Ele virou quase toda a cabeça para trás e seus saltos se tornaram hesitantes. De repente um leve zumbido, uma sombra, um terrível toque e o laço o capturou, derrubando-o, e prendendo-o sobre o ombro e o corpo. Mecanicamente tentou erguer o impiedoso laço e cortar a corda com o pedaço de vidro, mas em vão. O corpo voou pelo ar, pois o cavaleiro virou o cavalo e começou a arrastar a todo galope pelo campo aquela infeliz massa, que já fora um homem. Então ele para. O segundo caçador de gente se aproxima, salta do cavalo e tranquilamente desembainha o enorme facão, e golpeia a jugular da vitima, então solta o laço, vê os cortes causados pelo vidro e diz para o companheiro: “Esse condenado cortou o teu melhor laço!”, virou se e ainda deu mais um chute no corpo enquanto o sangue escorria e formava uma poça marrom no chão. O laço foi enrolado, preso em uma tira na parte de trás da sela, fizeram um cigarro de palha e troteando voltaram para o acampamento.
O corpo ficou só na grama marrom, o sol queimava e já aparecia a uma altura vertiginosa o primeiro urubu, voando em círculos.
- ↑ O episódio narrado neste capítulo refere-se à Revolução Federalista, revolta ocorrida entre 1893 e 1895 no sul do país. Embora tendo origem no Rio Grande do Sul, estendeu-se para Santa Catarina e Paraná e ficou conhecida pela violência extrema, ao utilizar práticas como a degola dos inimigos. Até onde sabermos Helling não vivenciou diretamente esse acontecimento histórico. (NdH)
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