A Carne/VI
Terminára a moagem, ia adiantada a primavera.
A flora tropical rejuvenescera na muda de todos os annos : os gomos, os brotos, a fronde nova rebentára pujante, aqui de um verde claro deslavado, velludoso, muito tenro ; alli lustrosa, vidrenta, côr de ferrugem ; além rubra. Depois tudo isso se expandira, se robustecera, se consolidára em uma verdura forte, sadia, vivaz.
A natureza mudára de toilette, e entrára no periodo dos amores.
Irrompia a florescencia com todo o seu luxo de fórmas, com toda a sua prodigalidade de matizes, com todo o seu esbanjamento de perfumes.
Por sobre os cafezaes escuros atirára ella, com suave monotonia, um lençol de corollas alvissimo, deslumbrante.
Na matta toda arvore, todo arbusto, toda a planta tomava-se de extranha energia.
As flores, em uma abundancia impossivel, comprimiam-se nos galhos, empurravam-se, deformavam-se. No quebrantamento volupia amorosa pendiam, reviravam os calices, entornavam no ambiente ondas de pollen, de pulverulencia fecundante.
Á lascivia da flora se vinha junctar o furor erotico da fauna.
Por toda a parte ouviam-se gorgeios e assobios, uivos e bramidos de amor. Era o trilar do inambú, o piar do macuco, o berrar do tucano, o grasnar gargalhado do jacú, o retinir da araponga, o chiar do serelepe, o rebramar do veado, o miar plangente, quasei humano dos felinos.
A essa tempestade de notas, a esse cataclysma de gemidos cupidos, sobrelevava o regougo aspero do cachorro-do-matto, o guincho lancinante, phrenetico do cará-cará perdido na amplidão.
A folhagem tremia agitada, esbarrada, machucada. Insectos brilhantes, verdes como esmeraldas, rubros como rubins, revoluteavam em sussurro, agarravam-se frementes. Os passaros buscavam-se, beliscavam-se, em vôos curtos, fortes, sacudidos, com as pennas arrufadas. Os quadrupedes retouçavam, perseguiam-se, aos corcóvos, arripiando o pello. Serpentes silvavam meigas, enroscando-se em luxúria aos pares.
A terra casava suas emanações quentes, ásperas, elétricas com o mormaço lúbrico da luz do sol coada pela folhagem.
Em cada buraco escuro, em cada fenda de rocha, por sobre o solo, nas hastes das ervas, nos galhos das árvores, na água, no ar, em toda a parte, focinhos, bicos, antenas, braços, élitros desejavam-se, procuravam-se, encontravam-se, estreitavam-se, confundiam-se, no ardor da sexualidade, no espasmo da reprodução.
O ar como que era cortado de relâmpagos sensuais, sentiam-se passar lufadas de tépida volúpia. Sobressaía a todos os perfumes, dominava forte um cheiro acre de semente, um odor de cópula, excitante, provocador.
Lenita estava preguiçosa. Internava-se na mata e, quando achava uma barroca seca, uma sombra bem escura, reclinava-se aconchegando o corpo na alfombra espessa de folhas mortas, entregava-se à moleza erótica que estilava das núpcias pujantes da terra. Voltava à casa, estendia-se na rede, com uma perna estirada sobre outra, com um livro que não lia caído sobre o peito, com a cabeça muito pendida para trás, com os olhos meio cerrados, e assim quedava-se horas e horas em um lugar cheio de encantos.
Pensava constantemente, continuamente, sem o querer, no caçador excêntrico do Paranapanema, via-o a todo o momento junto de si, robusto, atlético como o ideara, dialogava com ele.
Ficara cruel: beliscava as criolinhas, picava com agulhas, feria com canivete os animais que lhe passavam ao alcance. Uma vez um cachorro reagiu e mordeu-a. Em outra ocasião pegou num canário que lhe entrara na sala, quebrou-lhe e arrancou-lhe as pernas, desarticulou-lhe uma asa, soltou-o, findo com prazer íntimo ao vê-lo esvoaçar miseravelmente, com uma asa só, arrastando a outra, pousando os cotos sangrentos na terra pedregosa do terreiro.
O escravo, a quem ela fizera tirar o ferro do pé, fugira de fato, como tinha previsto o coronel: um dia voltou preso, amarrado com uma corda pelos lagartos dos braços, trazido por dois caboclos.
Que não havia remédio, disse o coronel, que dessa feita o negro tinha de tomar uma funda mestra por ter abusado do apadrinhamento de Lenita, que ia tornar a pôr-lhe o ferro, e que não o tiraria mais nem à mão de Deus Padre.
Lenita, muito de adrede, não intercedeu. Sentia uma curiosidade mordente de ver a aplicação do bacalhau, de conhecer de vista esse suplício legendário, aviltante, atrozmente ridículo. Folgava imenso com a ocasião talvez única que se lhe apresentava, comprazia-se com volúpia estranha, mórbida na idéia das contrações de dor, dos gritos lastimados do negro misérrimo que não havia muito lhe despertara a compaixão.
Disfarçadamente, habilmente, sem tocar de modo direto no assunto, conseguiu saber do coronel que o castigo havia de ter lugar na casa do tronco, no dia seguinte, ao amanhecer.
Passou a noite em sobressalto, acordando a todas as horas, receosa de que o sono imperioso da madrugada lhe fizesse perder o ensejo de ver o espetáculo por que tanto anelava.
Cedo, muito escuro ainda, levantou-se, saiu, atravessou o terreiro, e, sem que ninguém a visse, entrou no pomar.
Do lado de leste era este fechado pela fila das senzalas, cujas paredes de barro cru erguiam-se altas, inteiriças, muito gretadas.
Havia uma casa mais vasta duas vezes do que qualquer outra: era a casa do tronco.
A essa chegou-se Lenita, encostou-se e, tirando do seio uma tesourinha que trouxera, começou a abrir um buraco na parede, à altura dos olhos, entre dois barrotes e duas ripas, em lugar favorável, donde já se protraía um torrão muito pedrento, muito fendido, meio solto.
A tesourinha era curta, mas reforçada, sólida, de aço excelente, de Rodgers. A obra avançava, Lenita trabalhava com ardor, mas também com muita paciência, com muito jeito. O aço mordia, esmoía o barro friável quase sem ruído. Um rastilho de pó amarelado maculava o vestido preto da moça.
Deslocou-se o torrão, e caiu para dentro, dando um som surdo ao tombar no chão fofo, de terra mal batida.
Estava feito o buraco.
Lenita retraiu-se, ficou imóvel, sustendo a respiração.
Após instantes estendeu o pescoço, espiou. Nada pôde ver: estava muito escuro dentro. Ouvia-se um ressonar alto, igual.
Passou-se um longo trato de tempo.
O brilho das estrelas empalideceu. Uma faixa de luz branca desenhou-se ao nascente, ruborizou-se, purpurejou inflamada com reflexos cor de ouro. O ar tornou-se mais fino, mais sutil e a passarada rompeu num hino áspero, desacorde, mas alegre, festivo, titânico, saudando o dia que despontava.
Ouviu-se o sino da fazenda vibrar muito sonoro.
Lenita tornou a espiar: a casa do tronco já estava clara.
A um canto espalmava-se um estrado de madeira engordurado, lustroso pelo rostir de corpos humanos sujos. As tábuas que o constituíam embutiam-se em um sólido pranchão de cabriúva, cortado em dois no sentido do comprimento: as duas peças por ele formadas justapunham-se, articulando-se de um lado por uma dobradiça forte, presas de outro por uma fechadura de ferrolho. Na parte superior da peça fixa e na inferior da móvel havia piques semicirculares, chanfrados, que, ao ajustarem-se essas peças, coincidiam, perfazendo furos bem redondos, de um decímetro mais ou menos de diâmetro.
Era o tronco.
Sobre o estrado, de ventre para o ar, com as pernas passadas, pouco acima dos tornozelos, nos buracos dos pranchões, envolto em uma velha coberta de lã parda, despedaçada, imunda, tinha atravessado a noite o escravo fugido.
Dormira, ao bater do sino acordara.
Segurando-se a um joelho com as mãos ambas, sentara-se por um pouco, espreguiçara, volvera a deitar-se, com os membros doloridos, resignado.
Abriu-se a porta, e entrou o administrador seguido por um dos caboclos que tinham trazido o preto.
—Olá, seu mestre! gritou o caboclo, olhe o que aqui lhe trago:
E a correia na ponta do pau!
Vai chuchar cinquenta para largar da moda de tirar cipó por sua conta. Não sabe que negro que foge dá prejuízo ao senhor? Olhe só este pincel, está tinindo, está beliscando!
E sacudia ferozmente o bacalhau.
É um instrumento sinistro, vil, repugnante, mas simples.
Toma-se uma tira de couro cru, de três palmos ou pouco mais de comprimento, e de dois dedos de largura. Fende-se ao meio longitudinalmente, mas sem separar as duas talas nem em uma, nem outra extremidade. Amolenta-se bem em água, depois se torce e se estira em uma tábua, por meio de pregos, e põe-se a secar. Quando bem endurecido o couro, adapta-se um cabo a uma das extremidades, corta-se a outra, espontam-se as duas pernas a canivete, e está pronto.
O administrador abriu o tronco, o negro ergueu-se bafo, trêmulo, miserável.
Sob a impressão do medo como que se lhe dissolviam as feições.
Caiu de joelhos, com as mãos postas, com os dedos nodosos enclavinhados.
Era a última expressão do rebaixamento humano, da covardia animal.
Infundia dó e nojo.
—Pelo amor de Deus, seu Mané Bento, nunca mais eu fujo!
E chorava desesperadamente.
—Não faça barulho, rapaz, respondeu o administrador. São ordens do senhor, hão de ser cumpridas.
—Vá chamar o sinhô!
—O senhor está deitado, não vem, não pode vir cá. Deixe-se de história, arreie as calças e deite-se.
—Nossa Senhora me acuda!
—Você não chama por Nossa Senhora quando trata de fugir, gritou impaciente o caboclo. Vamos, vamos acabar com isto, ande.
O infeliz volveu os olhos em torno de si, como procurando uma aberta para a fuga. Desenganado, decidiu-se.
Com movimentos vagarosos, tremendo muito, desabotoou a calça suja, deixou-a cair, desnudou as suas nádegas chupados de negro magro, já cheias de costuras, cortadas de cicatrizes.
Curvou as pernas, pôs as mãos no chão, estendeu-se, deitou-se de bruços.
O caboclo tomou posição à esquerda, mediu a distância, pendeu o corpo, recuou o pé esquerdo, ergueu e fez cair o bacalhau da direita para a esquerda, vigorosamente, rapidamente, mas sem esforço, com ciência com arte, com elegância com a elegancia de profissional apaixonado pela profissão.
As duas correias tesas, duras, sonoras, metálicas, quase silvavam, esfolando a epiderme com as pontas aguçadas.
Duas riscas branquicentas, esfareladas, desenharam-se na pele roxa da nádega direita.
O negro soltou um urro medonho.
Compassado, medido, erguia-se o bacalhau, descia rechinante, lambia, cortava.
O sangue ressumou a princípio em gotas, como rubins líquidos, depois estilou contínuo, abundante, correndo em fios para o solo.
O negro retorcia-se como uma serpente ferida, afundava as unhas na terra solta do chão, batia com a cabeça, bramia, ululava.
—Uma! duas! três! cinco! dez ! quinze! vinte! vinte e cinco!
Parou um momento o algoz, não para descansar, não estava cansado; mas para prolongar o gozo que sentia, como um bom gastrônomo que poupa um acepipe fino.
Saltou por cima do negro, tomou nova posição, fez vibrar o instrumento em sentido contrário, continuou o castigo na outra nádega.
—Uma! duas! três! cinco! dez ! quinze! vinte! vinte e cinco!
Os uivos do negro eram roucos, estrangulados: a sua carapinha estava suja de terra, empastada de suor.
O caboclo largou o bacalhau sobre o estrado do tronco e disse:
—Agora uma salmorazinha para isto não arruinar.
E, tomando da mão do administrador uma cuia que esse trouxera, derramou o conteúdo sobre a derme dilacerada.
O negro deu um corcovo; irrompeu-lhe da garganta um berro de dor, sufocado, atroz, que nada tinha de humano. Desmaiou.
Lenita sentia um como espasmo de prazer, sacudido, vibrante; estava pálida, seus olhos relampejavam, seus membros tremiam. Um sorriso cruel, gelado, arregaçava-lhe os lábios, deixando ver os dentes muito brancos e as gengivas rosadas.
O silvar do azorrague, as contrações os gritos do padecente, os fiar de sangue que ela via correr embriagavam-na, dementavam-na, punham-na em frenesi: torcia as mãos, batia os pés em ritmo nervoso.
Queria, como as vestais romanas no ludo gladiatório, ter direito de vida e de morte; queria poder fazer prolongar aquele suplício até à exaustão da vítima; queria dar o sinal, pollice verso, para que o executor consumasse a obra.
E tremia, agitada por estranha sensação, por dolorosa volúpia. Tinha na boca um saibo de sangue.