A Divina Comédia (Xavier Pinheiro)/grafia atualizada/Paraíso/XVI
O poeta orgulha-se pela nobreza da sua família. Cacciaguida continua falando a respeito da própria família e da antiga Florença. Deplora a chegada em Florença de cidadãos de outras terras. Lembra as maiores famílias da cidade, muitas das quais, no tempo de Dante, eram empobrecidas ou maculadas de infâmia.
Ó mesquinha nobreza de alto sangue!
Se tanto homem de haver-te se gloria
Neste mundo, em que o afeto enfermo langue,
Maravilhar-me já não poderia,
Pois me senti, por causa tal, ufano
No céu, onde o apetite não varia.
És manto exposto em breve a estrago e dano:
Se te faltar reparação constante,
A mão do tempo te cerceia o pano.
A responder começo à luz brilhante
Por “vós” de que, primeira, Roma usara,
Mas que em vulgar dicção não foi avante.
Beatriz, que algum tanto se afastara,
Fez, sorrindo-se, como a que tossira,
Quando a primeira vez Ginevra errara.
— “Vós sois meu pai” — disse eu — “em vós se inspira
Para falar-vos do ânimo a ousadia,
Me alçais mais do que a mente própria aspira.
“Por tantos rios se enche de alegria
Minha alma que em ledice é transformada,
Pois do prazer não vence-a a demasia.
“Dizei-me, pois, minha primícia amada,
Os ascendentes vossos e em qual era
Foi a vossa puerícia assinalada.
“De São João a grei como vivera
Dizei-me e os que em seu seio se mostraram,
A quem mais alta distinção coubera.” —
Como ao sopro do vento mais se aclaram
As flamas no carvão, dessa arte àquela
Luz, me ouvindo, os fulgores se avivaram;
E quanto aos olhos se ostentou mais bela,
Tanto com voz mais doce e mais suave
Respondeu, sem falar vulgar loquela.
Disse: — “Do dia, em que se ouvia o Ave
Ao momento, em que ao mundo a mãe querida,
Hoje santa me deu no transe grave,
Do Leão foi aos pés reacendida
De Marte a luz quinhentos e cinqüenta
Vezes mais trinta na incessante lida.
“O lugar, onde o sesto último assenta,
Dos jogos anuais termo à carreira,
Meu berço e o dos avós te representa.
Deles te baste esta noção primeira:
O que hão sido, onde é sua permanência
Calar prefiro a dar notícia inteira.
“Dos que haviam então suficiência
Para a guerra, entre Marte e João Batista,
São quíntuplo os que têm ora existência.
“Toda gente, porém, que se vê mista
Co?a de Campi, Certaldo, e mais Figghine
Pura estava, do nobre até o artista.
“Acerto fora do que bem combine
Tê-los vizinhos, linha demarcando,
Que com Trepiano e com Galuz confine,
“Em lugar de hospedar o infeto bando
Dos vilões de Aguglion junto aos de Signa,
Da fraude expertos no mister nefando.
“Se a gente, hoje no mundo a mais maligna,
A César não se houvesse declarado
Cruel madrasta em vez de mãe benigna,
“Quem se diz Florentino e à usura é dado,
Vende e merca, tornava a Simifonte,
Onde o avô mendigava esfarrapado.
“Ainda em Montemurli foram Conti,
Os seus Cerchi ainda Acone conservara
E, talvez, Valdigrieve os Buodelmonti.
“Sempre de castas confusão depara,
Como a de cibo em corpo mal disposto,
Mal à cidade, e danos lhes prepara.
“Touro cego primeiro em terra é posto
Que anho cego; e melhor corta uma espada
Do que cinco num feixe bem composto.
“Se de Urbisaglia a sorte desgraçada
E a de Luni tu vês, se igual espera
Chiusi e Sinigaglia malfadada:
“Dos solares mau fim não perecera
À tua mente estranheza ou caso forte,
Pois no exício de Estados considera.
“Terrenas cousas todas sofrem morte,
Como vós; mas de algumas, perdurando,
Quem curta vida tem não sabe a sorte.
“E como a lua, sem cessar girando
Cobre ou descobre as praias do oceano,
De Florença a fortuna vai mudando;
“Assim que não suponhas mais que humano
O que eu disser de exímios florentinos,
A cuja fama o tempo já fez dano.
“Eu vi os Ughi, vi os Catellinos,
Fillippe, Greci, Ornami e os Albericos
Decadentes, mas ainda nobres, di?nos.
“Grandes em fama, de virtudes ricos
Os de Sanella vi; também os de Arca,
Soldanieri, Ardingos e Bastichos.
“À porta de São Pedro, que ora abarca
Infâmia nova tanto em peso ingente,
Que fará soçobrar em breve a barca,
“Estavam Ravignans; seu descendente
Foi Conde Guido e quantos ao diante
De Bellincione o nome têm fulgente.
“Della Pressa em governo era prestante
E Galligaio no solar dourara
Punho e copos da espada fulgurante.
“A Coluna do Esquilo se elevara,
Sacchetti, Giuochi Fifanti e Barucci
Galli e quem pelo alqueire se pejara.
Era já grande o tronco dos Calfucci
E às cadeiras curuis tinham subido,
Assumindo o poder, Sizi e Arragucci.
“Quanto lustre daqueles, que abatido
Tem soberba! Que feito viu Florença
Sem ser de Esfera de Ouro enobrecido?
“Eram pais dos que julgam glória imensa
No concistório, vago o episcopado,
Cevar-se dos banquetes na licença.
“Surgia o bando já sem pejo e ousado,
Dragão que investe a quem lhe teme a ira,
Cordeiro em vendo bolsa ou braço armado;
“De princípio tão vil a origem tira,
Que Donato Ubertino se afrontava,
Quando a um desses o sogro a filha unira.
“Já Caponsacco no Mercado estava,
De Fiésole vindo; e lá já era
Giuda, Infangato: o nome os ilustrava.
“Incrível cousa vou dizer, mas vera:
No recinto uma porta outrora havia,
À qual deu nome a gente della Pera.
“Fidalgo, que o brasão belo trazia
Do barão cujo nome, glória e vida
De São Tomé celebra-se no dia;
“Lhe deve o privilégio e honra subida;
Mas hoje ao popular partido se une
Trazendo de ouro a faixa guarnecida.
“Já Gualterotti viam-se e Importuni;
E em Borgo a paz de todo se perdera,
Quando uma turba nova em si reúne.
“A casa, de que o mal vosso nascera,
Que vos deu morte, justamente irada,
E ao feliz viver vosso o fim pusera,
“Em si, na prole sua fora honrada:
Por que sua aliança recusaste
Por sugestão, o Buondelmonte, errada?
“Quando à cidade a vez primeira entraste,
Se do Ema às águas Deus te houvesse dado,
Ledice fora o pranto, que causaste:
“Forçado era que ao mármore quebrado,
Da ponte guarda, vítima imolasse
Florença, de sua paz o fim chegado.
“Com esses e outros, que inda eu mais lembrasse,
Florença vi gozar fausto repouso,
Sem motivo que pranto lhe excitasse.
Com esses e outros vi tão glorioso
E junto o povo, que ao rever lançado
Não era na hástea o lírio seu formoso,
Nem por facções em rubro transformado.” —