A Esperança Vol. I/Clotilde/III
III
A ermida
No principio d'este romance, vimos, de passagem, uma capelinha que se achava sobre um penhascoso monte; tambem vimos uma pequena casa de que é habitante um velho ermita; mas agora que temos tempo vamos examinar por miudo, Ermida, Velho, e habitação:
Junto á capella marmora um nascente d'agua crystallina, que sahindo da rocha vai cahir em um tanque feito pela natureza. Altos cyprestes, e frondosos freixos dão sombra e frescura áquelle sitio encantador: mezas, e bancas de pedra cobertos de espêsso musgo estão cimétricamente collocados debaixo das arvores.
Pinhas monstruosas vestidas de festões de hera; grutas deliciosas alcatifadas de verde relvas e forradas de arômaticas madre-silvas são os jardins, e quintas do pobre Eremita! Uma pequena sala adornada com duas cadeiras, uma mesa, e um armario; junto d'ella um quarto em que apenas cabe uma cama, e um baú, são a sua habitação.
Defronte d'esta casinha está a pequena capella da Senhora dos Remedios. Uma alva toalha veste o altar toscamente lavrado: uns castiçaes de pau, e uns vasos de barro grosseiro em que se viam alguns ramos de cypreste, são todos os armamentos que adreçam este templosinho da Virgem cuja imagem está já deteriorada pelo tempo que nada poupa. Assentado ao pé da fonte está o Ermita. É um velho de pequena estatura, fronte calva, magra, e macilenta. A expressão dos olhos já um pouco encovados, é d'uma doçura evangelhica! Tem aberta, sobre os joelhos a Biblia, mas não lê, está olhando para um caminho estreito que da planicie conduz á sua pobre morada; pelo qual caminhavam duas jovens, e uma velha.
Já os nossos leitores sabem quem ellas são, por tanto iremos vêr a recepção que lhe fez o padre.
― Como são bôas, minhas meninas, em virem visitar o pobre Ermita!
― Como passa o nosso bom amigo? ― perguntaram as duas amigas a um tempo, pegando nas descarnadas mãos do velho.
― Soffrendo sempre, minhas filhas; mas v. exc.as tambem me parecem tão abatidas! têem tido algum incommodo?
― Ah! snr., pois não sabe a desgraça que nos opprime? ― disse a filha do Marquez ― meu irmão talvez já não exista!
― Já não exista! ― repetiu o velho com admiração ― mas como é isso minhas filhas? aonde está elle? que lhe succedeu?
Nem uma das meninas lhe respondeu, por que os soluços embargaram-lhe a voz!
A velha Rosa foi a que contou ao padre o que havia succedido.
Sentidas lagrimas rôlaram pelas cadavericas faces do padre Francisco: elle amava o mancebo como se fôra seu filho.
― Resignação com a vontade de Deus minhas filhas, ― murmurou o bom velho limpando as lagrimas ― A Virgem dos Remedios ha-de melhorar Paulino, ha-de ouvir as nossas supplicas, vamos fazer-lh'as.
E o padre e as tres mulheres entraram na Ermida.
Era quasi ao pôr do sol quando d'alli sahiram.
― Eu desejava passeiar todos estes sitios que me recordam a nossa infancia, disse a filha do Marquez; vens Clotilde, e V. Mce Rosa póde ficar com o snr. padre Francisco que não póde, nem deve acampanhar-nos.
As duas meninas sem esperarem resposta dirigiram-se, correndo, para uma gruta rodeada de assentos de cortiça.
― Foi alli que nós demos bastantes lições; disse Jozefina, ainda te recordas das bellas historias que padre Francisco nos contava quando sabiamos bem a lição, e que tanto nos divertiam?
― Lembro, sim, principalmente d'uma em que elle nos dizia que uma gentil Mosulmana se vinha todas as manhãs mirar na limpida fonte; e Paulino desejozo de vêr essa Moira encantada, alcançou licença de tua mãe, e veio aqui passar dois dias! Ai! Josephina, que felizes tempos foram aquelles.
― Como passaram rapidos, murmurou a outra menina, ― e como depois tudo mudou!!
As duas amigas sahiram da gruta e foram-se encaminhando silenciosas para a beira dos rochedos.
Depois outra recordação veio quebrar o silencio que ambos guardavam.
Alli está o rochedo a que nós trepavamos para lançar pedrinhas ao rio! Lembras-te, Clotilde, da anciedade com que nós esperavamos ouvir o barulho produzido pela queda que elles davam na agua?
― Bem me recordo ― respondeu a moça.
― Subamos de novo a elle para d'alli ver os ultimos raios do sól reflectiram-se nas aguas do rio.
Tentaremos descrever agora o retrato da filha do Marquez de Santa Eulalia:
A estatura um pouco mais baixa que a de Clotilde, não é por isso menos elegante. Os olhos d'um castanho claro, tem uma expressão tão viva, quer amortecida, quer brilhando, que dizem tudo o que sente no coração. Os cabellos da côr dos olhos, são bastante anelados, agora flutuam livres a doudejar da aragem. A tez finissima é composta de lirio e rozas. A bocca pequena, aonde brincava sempre um angelico sorrizo, dava a taes menina um attrativo quasi inresistivel, dotada d'animo mais fraco que Clotilde, admirava a força de vontade, e a coragem quasi varonil de esta, d'onde provinha uma especie de superioridadae que Clotilde exercia sobre a filha do Marquez. Esta com uma alegria infantil, esquecendo por momentos os seus pesares, está recordando a sua infancia; Clotilde, fita o sól com vistas melancolicas.
― Oh! ― pensava ella ― quem sabe se estes raios, quasi a esconderem-se, já hoje aqueceram a campa de Paulino!
Esta ideia fez-lhe vacilar as pernas, e via-se obrigada a assentar-se sobre o rochedo.
Jozefina conservou-se em pé e disse á sua amiga:
― Já estas cançada? tu que és infatigavel!!
― Eggageras as minhas forças, Josefina ― respondeu a sobrinha do senhor Cunha, com um triste sorriso ― eu não sou infatigavel, e hoje temos andado tanto!
Deixaremos agora as duas moças para ir ouvir a conversação de padre Francisco, e da velha.
― Como está o senhor Ancelmo da Cunha!
― Optimamente; lá tudo pasa bem, á excepção da minha querida menina! essa é uma flôr que se vê murchar! Ha uns mezes para cá sempre a vejo triste, e ella, sem a propria alegria!
― Já notei isso mesmo, Rosa, e tenho pensado bem sem atinar com a causa dos seus pensares...
― Olhe, senhor, d'antes, sabe como ella se entretinha no jardim; e, agora são poucas as visitas que lhe faz, e essas breves; torna logo a subir para o seu quarto, e umas vezes péga em um livro; abre-o, mas sem o lêr, o torna a pôr no seu logar! O mesmo lhe acontece com os seus bordados e desenhos! péga nos pinceis, e nas agulhas mais d'uma duzia de vezes sem se resolver a trabalhar!! Poucas vezes vou ao seu gabinete que a não surprehenda chorando; se lhe procura a causa, responde-me com mais lagrimas!
Algumas noites o seu somno é agitado; algumas vezes falla alto sonhando; d'um d'esses sonhos percebi-lhe estas palavras: ― Se minha mãe fosse viva, como seriamos felizes todas tres! ao menos ella me socegaria, dizendo-me que ella me teria sempre amor. ― Depois continuou a fallar, mas sem ligação, e nada mais pude perceber.
― Como ficou ella quando soube da molestia de Paulino? ― proguntou o padre, depois de momentos de meditação.
― Snr. padre Francisco, com essa pergunta, vem certificar as minhas ideias; porque no meu entender, a menina ama-o! Não só me convence d'isto o choque que ella soffreu quando seu tio lhe deu a fatal nova, mas o datar a sua tristeza da época em que o snr. Paulino, foi este anno para Coimbra.
Ainda mais, d'antes passavamos dias inteiros a fallar na sua juventude, e fallava em Paulino tão socegada! nunca aquelle nome a perturbava; ella estimava-o como a um irmão. Mas este anno mal se falla no mancebo, uma viva vermelhidão lhes sobe ao rosto, e logo muda de conversa!!
A mim nada me escapa, por que eu amo-a, como se fôra minha filha.
― Talvez as suas suspeitas sejam bem fundadas, Rosa, e antes seja esse o motivo da tristeza de Clotilde, porque o snr. marquez verá com gosto a união das duas familias.
A presença das duas meninas veio pôr termo a este colloqui.
― Então passeiaram muito minhas senhoras?
― Bastante snr. padre Francisco ― respondeu Josephina, e tanto gostamos do passeio, que nos olvidamos de que a tarde estava adiantada, e não nos ficava tempo para gosarmos a sua boa companhia! Mas o senhor tem tanta bondade que nos desculpa, não é assim?
― De certo, minhas filhas; eu sei quão poderosas são as recordações da infancia! Quando ellas fallam, nada mais lembra.
― Minha Josephina, o sol já se escondeu, e a noite vai esfriando, será prudente recolherm'o-nos , para outro día vir-mos mais cedo.
― Pois sim, vamos já.
As tres mulheres despediram-se do bom velho, que lhe pediu com instancia noticias de Paulino, logo que as houvesse, e á pressa se dirigiram para casa.