A Esperança Vol. I/Clotilde/IV

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IV
O regresso

Oito dias são já decorridos desde o passeio á Ermida.

As duas meninas estão assentadas no jardim, e pela anciedade com que chegam á porta ao ouvirem o menor ruido vê-se que esperam alguma coiza.

― Como Leopoldo tarda ― disse Josefina com uma insofrida impaciencia.

― Não tem desculpa, redarguiu a outra menina, por que eu recommendei-lhe que não poupasse o cavallo; que o rebentasse sendo preciso para nos trazer breve a desejada carta de teu pai. Mas se elle não escreveu, é mais dois dias de horrivel incerteza que se veem juntar a estes, que já passaram?

― Não digas ao menos isso Clotilde! Escuta... parece-me que d'esta vez me não engano: é elle, é elle.

Com effeito o velho creado coberto de suor, e de poeira entrava no jardim.

― A carta, a carta ― exclamaram ambas as meninas estendendo as mãos.

― Aqui está, disse o criado ― e o ceu me conceda a felicidade de eu ser o portador da noticia das melhoras do meu querido menino. Magoava-me a ideia de o não tornar a vêr, por que lhe quer muito, trouxe-o tantas vezes ao colo!

― Que felicidade, Clotilde, ― exclamou a filha do Marquez lançando-se ao pescoço da sua amiga ― elle está livre de perigo, vê, o que me diz meu pai:

«Minha Josephina, são satisfactorias as noticias que tenho a dar-te; Paulino está livre de perigo.

«A scena que vi presenciar no dia em que cheguei, compensa com usura os desgostos que a sua molestia nos cauzou. A enfermidade tinha feito crise n'esse dia. O medico sahia do seu quarto declarando-o livre de perigo. Apenas elle sahiu, o quarto encheu-se de estudantes, e todos á porfia, queriam chegar primeiro ao leito do doente!! Eu, que entrava n'este momento, não me foi possivel chegar ao pé de Paulino se não desde que estes generosos mancebos lhe testemunharam o seu contentamento. Nunca vi um enthusiasmo tal!

«Como eu me ufano de ter um filho adorado por quantos o conhecem!...

«Eu pedia em altas vozes, que me deixassem vêr meu filho, e apenas as minhas palavras poderam ser ouvidas, todos me deram passagem, e ficaram mudos espectadores dos transportes d'um pai que torna a abraçar o seu filho caro que julgou perdido.

«O que se passou no meu coração n'este momento não posso explicar-te!... Só o condemnado, que, debroçado já sobre a prancha fatal, ouve lêr o seu perdão, poderá ter alegria comparada á que eu senti ao vêr meu filho vivo.

«Tão grande prazer tirou-me os sentidos, e eu cahi inanimado sobre a cama de Paulino.

«Quando acordei encontrei-me n'outro quarto e estava rodeado dos condiscipulos de meu filho. Foi então que elles me disseram que o medico o julgava livre de perigo; mas que tinha recommendado reinasse silencio no quarto do doente.

«Eu não achava expressões com que podesse agradecer a estes corações nobres os disvélos com que tinham tratado meu filho, mas elles disseram-me: ― A amisade de Paulino é para nós tão honrosa, elle faz-se tão digno por suas virtudes, que nós estamos sobejamente recompensados vendo as suas melhoras.

«Fui em seguida vêl-o e fiquei satisfeito porque o encontrei sem febre.

«Se assim continuar com melhoras ahi appareceremos no dia tres de Maio.» etc. etc.

― Como Deus ouviu os nossos rogos ― disseram as duas meninas chorando d'alegria.

O snr. Anselmo, e Rosa desciam appressadas para saber as boas novas; as duas amigas entregaram a carta ao snr. Cunha, e subiram para casa.

Havia poucas horas que ellas julgavam suprema felicidade o receberem carta do Marquez, mas a nossa ambição é insaciavel, por isso nunca se pode satisfazer!

A mesma anciedade as dominava esperando pelo dia tres de Maio!

O mez de abril despedia-se com um formoso dia!

Grande quantidade de flôres proprias da estação, enfeitavam o jardim de Clotilde, bellas mariposas de matizadas côres, adejavam em volta d'ellas. Em um povoado viveiro cantavam á porfia lindos canarios, e attraiam com seus gorgeios ledos pintasilgos que vinham poizar-se n'uma flôrida acacia que estava em frente.

Toda a natureza parecia sorris contemplando-se tão enfeitada.

As duas emninas não gosam d'estes encantos: estão ambas inclinadas sobre o vestidor, e bordam com actividade um rico manto de setim azul aonde ellas semeia prateadas estrellas.

Este manto haviam-n'o promettido á Virgem dos Remedios, se Paulino melhorasse, e ellas queriam cumprir a promessa antes da vinda do mancebo.

― Tu já deves estar cançada, Josephina?

― Oh! não estou, bem vês que quando se trabalha com gôsto não ha fadiga; e de mais tu é que tens bordado o manto quasi todo, e eu apenas bordei o véu do calix que promettemos ao Santissimo Sacramento.

― Não importa, eu quero acabar o manto; e tenho bastante tempo, pois ó ámanhã o levaremos á Ermida.

― Ainda temos tres dias de espera, e elles passam tão devagar!

― Quem sabe se teu irmão poderá vir?

― Já me lembrou isso mesmo, e talvez meu pai não possa esperar por elle.

― Pois a mim parece-me que teu pai o não deixa lá ― o dia tres de maio acabava de raiar.

Ainda o sol não tinha nascido, e já as duas meninas estavam levantadas.

― Eu vou mandar preparar um quarto e cama para teu irmão.

― E eu vou colher flores para as jarras. Nós havemos de mostrar-lhe em tudo a nossa alegria.

Seriam oito horas quando o velho marquez de Santa Eulalia entrava na casa de Clotilde. Elle dirigia-se para a sala de visitas, e as duas meninas, com as costas voltadas para a porta, enchiam as jarras de flores. Tão entertidas estavam, que não deram pela chegada do marquez!

― Como estão lindos estes rainuclos! Estas gôtas de orvalho parecem perolas.

― E talvez o sejam ― disse o marquez ao pé d'ellas.

As meninas voltaram-se surprehendidas, e lançaram-se ambas nos braços do nobre velho.

Os olhos de Clotilde procuravam Paulino, quando Josephina desprendendo-se dos braços de seu pai, lhe perguntou por elle.

― Não vem ― respondeu o marquez ― eu queria esperar mais uns dias, mas elle instou tanto para que o deixasse ficar, porque desejava fazer acto, que não tive remedio senão condescender. Venho sem cuidado, porque elle tem junto a si amigos verdadeiros.

Ao despedir-se disse-me: ― Josephina, e a sua boa amiga devem ter soffrido bastante; socegue-as, meu pai, e diga-lhes que breve irei para as acompanhar á Ermida da serra.

O coração de Clotilde batia com tanta força que fazia levantar o espartilho do vestido.

― Como chegou o meu amigo? ― dizia o snr. Cunha entrando na sala.

― Um pouco fatigado da jornada ― respondeu o marquez apertando-lhe a mão.

Clotilde e a sua amiga sahiram.

No jardim está a velha Roza desempenhando uma empreza de que a encarregaram as duas meninas, debaixo d'um caramanchão, coberto de um copado cédro, prepara ella um rico almoço com que as duas amigas querem surprehender o marquez. Depois de ter tudo prompto, foi avisar as senhoras que se dirigiram para a sala aonde estava o marquez e o snr. Cunha.

― Meu pai, eu venho pedir-lhe o favor de vir ao jardim, quero que admire o bom gôsto de Clotilde.

― Minha senhora, o meu amigo ainda não almoçou, e talvez agradecesse mais que o chamassem para a meza, do que para o jardim.

― Acho que o snr. Cunha tem razão ― objectou o marquez.

― Mas emquanto apromptam o almoço, podêmos ir ouvir os meus canarios ― disse Clotilde ― a musica tambem intretêm a fome, e elles hoje estão mais harmoniosos que nunca; e isto é para o obsequiarem, snr. marquez.

― Não ha remedio senão condescender com a vontade d'estas meninas ― disse este, pegando no chapéu; e todos quatro desceram para o jardim.

― Quero mostrar-lhe estas tolipas amarelas, snr. marquez ― disse Clotilde colhendo uma das bellas flores, e offerecendo-a ao seu hospeded.

― De certo são formozas, e é preciso que v. exc.a reparta d'ellas com Josephina.

― Vamos assentar-nos debaixo do caramanchão que fica perto do viveiro ― dizia a filha do marquez, sorrindo para a sua amiga.

― Estas senhoras querem fazer-nos jejuar! ― disse o snr. Cunha.

― Tenha paciencia, meu tio, é só emquanto Rosa não nos chama para a meza.

Ao chegarem ao caramanchão, o marquez, e o snr. Cunha, ficaram maravilhados da agradavel surpreza que lhe tinham preparado! Nos quatro cantos da meza estavam collocados grandes vasos cheios de flores; bellos fiambres, e delicados doces enchiam a meza! Em elegantes cestinhos de juncos, feitos pelas duas meninas, via-se saborosas laranjas, aromaticos morangos, e rubras cerejas.

Todos se assentaram alegremente em roda da meza.

― Não vos enganei snr. Marquez, quando vos disse que os meus canarios cantavam hoje muito melhor! Ora prestai-lhe attenção em quanto almoçamos.

― Esta surpresa tinha sido preparada para mais alguem ― disse a filha do Marquez, mas para não haver gosto completo, falta aqui o nosso Paulino!

Ninguem reparou n'uma lagrima que se escapou dos olhos de Clotilde, e que ella rapidamente limpou.

Rosa tornou a descer trazendo o chá, e no fim do almoço appareceu o padre Francisco, e as duas amigas os deixaram no jardim, e subiram para caza.

― Vão fazendo as suas despedidas, minhas meninas, porque de tarde vamos embora.

― Já?! ― disse Clotilde abraçando-se á sua amiga.

― Não ha remedio, minha senhora, bem me custa separal-as, mas dou-lhe a esperança de breve se tornarem a ver.

Este dia passou com a rapidez do relampago para as duas jovens, e com a maior afflicção viram chegar o momento da partida.

― Minha Clotilde, tem animo e paciencia: bem vês que me não posso demorar, pois meu pai precisa dos meus cuidados.

― Pois sim, Josephina, não chorarei mais, guardarei as lagrimas, no coração... Olha, vês como os meus olhos estão enchutos? ― accrescentou a menina querendo chamar aos labios um sorriso.

― Minhas senhoras, o snr. marquez está á espera ― disse Rosa entrando no quarto de sua ama.

As duas amigas abraçaram-se e desceram a escada.

Tinham chegado á porta do jardim; os labios tremulos não articulavam as palavras da despedida, mas os corações unidos n'um estreito abraço, comprehendiam-se perfeitamente. Josephina soltou-se dos braços da sua amiga, e correu para fóra da porta.

― Tenham paciencia, minhas senhoras ― dizia padre Francisco, despedindo-se da filha do marquez ― são horas amargosas que seguem sempre os dias de felicidade.